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domingo - 25/07/2021 - 03:42h

Tempos fugídios, normose e o conhecimento fast-food

Por Marcos Araújo

Nesses dias, temos “bebido o tempo”, na expressão do moçambicano Mia Couto. Com imagens no retrovisor da nossa memória de um mundo que não reconhecemos mais, passamos da metade de 2021. Entre os destemperos do DJ Ivis e o comportamento idiotizado da massa que o fez ídolo (e agora lhe demoniza);  para aqueles que trabalham no conforto de casa (remotamente) e os que se sujeitam à labuta sob a exposição do sol; para os que ocupam festivamente as calçadas e bares da vida, contra todas as orientações dos órgãos sanitários; àqueles que desidiosamente não querem aprender no ensino virtual; para os nossos medíocres líderes políticos e os seus pronunciamentos;  diluem-se os dias, escorrem as horas…Normose, normalidade coletiva, máscaras, multidão, rostos, caras, cabeças,Outra característica desse tempo esquisito é o surgimento de vários modismos, numa uniformidade comportamental epidêmica. De uma hora para outra, só pode ser normal quem se enturmar num desses grupos que pedalam, correm nas ruas, frequentam as academias, tomam shakes nos espaços da Herbalife, ou, praticam o must entre os costumes: joga beach tennis… A coerção da vivencia social obriga a você optar por um desses comportamentos.

Roberto Crema, psicólogo brasileiro, intitulou isso de “Normose”, o que ele chama de “patologia da pequenez: o medo de se deixar ser em sua totalidade”. Além do brasileiro, o filósofo, psicólogo e teólogo francês Jean-Ives Leloup, na década de 1980, utilizou esse mesmo termo para definir o conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos em graus distintos.

Os dois vinham trabalhando o tema separadamente até que um terceiro psicólogo, o francês Pierre Weil, se deu conta da coincidência. Perplexo, Weil conectou os dois, e os três juntos organizaram um simpósio sobre o tema em Brasília, uma década atrás. Do encontro, nasceu uma parceria e o livro “Normose: A patologia da normalidade”.

Mesmo correndo o risco de ser isolado e condenado ao degredo, confesso que não ando de bicicleta, não corro na rua, não frequento academias e não conheço o sabor dos shakes e chás da Herbalife e congêneres. Prefiro a liberdade de ser do contra.

Entre os pensadores, o alemão Erich Fromm (1900-1980), falava do medo de quem toma a liberdade como referência existencial, e o suíço Carl Jung (1875-1961) afirmava que só os medíocres aspiram a normalidade. O escritor britânico G.K. Chesterton (1874-1936) dizia que “louco é quem perdeu tudo, exceto a razão”.

Certa feita, li uma frase provocativa que traduz muito bem essa questão das maiorias: “coman mierda; mil millones de moscas no pueden estar equivocadas”. Por isso, perfilo-me entre as minorias.

Outra característica do presente é a crescente ascensão da fragmentação do saber, convertido cada vez mais em pedaços de conhecimento. O escritor T. S. Eliot bem dimensiona: “Onde está a sabedoria que se perdeu no saber; onde está o saber que se perdeu na informação?”. Vivemos em um tempo em que, cada vez mais, somos movidos por “conceitos sem coisas”. Informação não é saber.

A INTERNET TRAZ MUITA INFORMAÇÃO, mas não proporciona sabedoria. Fomos abduzidos da nossa capacidade de decisão por uma legião de formadores (?) de opinião que atuam na internet, chamados de “influencers”. Esses “alimentam” as redes com suas (des)informações sobre tudo, especialmente coisas e mercadorias. Como lembrou Umberto Eco, qualquer néscio pode alimentar o google, e a internet concedeu palco para alguns imbecis nas redes sociais.

Esse imaginário do conhecimento fast-food avança dia a dia. E chegou à televisão. Nesta semana, a repórter da Rede Globo falava do frio no Sul e, para demonstrar que estava nevando, iniciou a reportagem recolhendo flocos para formação de um boneco. Noutro programa de esportes, o repórter ao contar que um time do interior disputaria o campeonato a galope, colocou como metáfora o técnico do time montado em um cavalo. Noutro canal, para falar da enchente na Alemanha, o repórter quase fica com água pelo pescoço.

Além da metáfora, as matérias jornalísticas agora são isomórficas, isto é, têm que “colar” palavras e coisas… Agora, para “metaforizar” é preciso “mostrar” a “própria” metáfora, ou seja, “demonstrá-la”. Estamos condenados a interpretar. Não há uma imanência entre palavras e coisas. Estamos sendo tratados como idiotas.

Nos cursos de formação, as demonstrações de powerpoint são tão iterativas que as imagens suprimem as palavras. A linguagem e a operacionalidade do Direito também estão sendo modificadas. Muitos advogados têm juntado áudios e vídeos aos processos para substituir textos e palavras.

Um QR Code pode guardar mais informações do que dezenas de páginas escritas. No futuro, não conheceremos mais a utilidade do papel e do lápis. Talvez nem mais das palavras. Vamos ter leitores cerebrais para manifestação do pensamento.

Sofro porque sou um escravo do papel e da palavra, como diria o poeta Manoel de Barros. Recuso-me a ceder ao processo de robotização a que a humanidade vem sendo submetida. Sou um resistente à transumanização. Vivo, por viver, como expectador do incerto que virá. Cabe apenar relembrar Cícero, em seu célebre discurso no Senado romano, “Ò tempora! Ò more!” (“Oh tempos!; Oh costumes!”).

Marcos Araújo é professor e advogado

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. Raniele Costa diz:

    Parabéns Marcos Araújo, belíssimo texto , essa é a verdade que nos cerca , não sabemos a onde isso vai parar, as futilidades do dia a dia me irritam mas tenho que ficar calado se não vou ser acusado de alguma Fobia.

  2. Armando Lucio Ribeiro diz:

    Pasmem! Eu sempre pensei assim. Só não sabia escrever e e expressar o pensamento. Obrigado Dr Marcos Araújo, esse gênio da palavra!

  3. Rocha Neto diz:

    Mais uma vez amigo Marcos, você nos deleita com uma linguagem real e franca com a essência de uma sabedoria gigantesca, deixa-nos com a satisfação daquelas pessoas que realmente sente-se também inteligente. Obrigado mestre e que Deus nos dê sempre a alegria do encontro dominical aqui neste espaço do BCS. 👍👍

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