sexta-feira - 12/10/2007 - 21:02h

Um olhar de humanidade

Minha memória precária não fixa nomes com facilidade. Títulos de livros, autores e por aí vai, terminam embaralhados ou deletados.

Mas quero reproduzir um episódio em leitura feita há mais de 20 anos. Entre os principais personagens, um era comandante militar. Alguém sanguinário. Diante de um esfarrapado adolescente, guerrilheiro capturado em campo de batalha, ele tripudia da vítima e o desdenha. Mas lhe oferece uma chance à liberdade.

Sob a crença de que aquela imberbe criatura não teria sensibilidade para lhe responder corretamente, provoca-o: "Se você descobrir qual dos meus olhos é postiço, eu o deixo ir embora".

A moderna tecnologia de seu país o deixava à vontade para o jogo. Ambos pareciam idênticos em suas três camadas e movimentos sincronizados. "Biologicamente" perfeitos. Olhos frios e penetrantes.

Rosto retesado, olhar inamovível, respiração lenta e concentrada nas narinas, o menino-guerreiro nem pestaneja para decifrar o enigma: "É o esquerdo!"

Pasmado, o captor não o desmente. Mas fica intrigado com a desenvoltura. Daí lhe faz uma indagação necessária: "Como você descobriu que esse meu olho é falso?" 

– É a única parte humana que você tem. 

Remeto-me a esse quadro, para também procurar identificar qual o pedaço de humanidade que repousa em nossa elite política.

Em pleno "Dia da Criança", a gente constata que sua pobreza de propósitos nobres, a ausência de espírito cristão, a frieza manipuladora e o descaso com a vida alheia são nauseantes. O caso da UTI Neonatal de Mossoró, que continua sem existir na prática, apesar de documentalmente ser uma "realidade" desde 2001, é o retrato dessa torpeza.

Revolta, abala-nos, porque diz respeito à vida de milhares de crianças, em especial àquelas mais pobres, indefesas (elas e seus pais).

Há tempos, que as gestantes de famílias mais abastadas migram para Fortaleza e Natal, onde completam concepção e realizam parto. A recomendação parte dos próprios médicos e até do promotor da Saúde e Cidadania, Guglielmo Marconi. "Quem puder que saia de Mossoró (…). "É o que estamos aconselhando", chegou a clamar o promotor. 

Qualquer dúvida, é só rastrear as dezenas de colunas sociais na imprensa nativa.

Mães e pais sorridentes posam acalentando filhos rosados, corados, batavos, vendendo saúde e vida. Isso em maternidades longe de Mossoró. Eles não estão nas estatísticas – que sequer são feitas oficialmente – para identificar os mortos dessa carnificina fria e violenta.

Quando alguém por qualquer motivo não paga uma pensão alimentícia ou se revela depositário infiel, de bens catalogados pelo Judiciário, a prisão é imediata. Entretanto não acontece nada com quem desdenha de uma cidade inteira, brincando com a existência do próximo. Somos todos ridicularizados. Um comportamento porco e ultrajante.

O Ministério Público fala que agora vai pedir e exigir novo prazo para que a UTI Neonatal funcione de verdade. Não terá êxito. O caminho é o da radicalização, com medidas coercitivas que punam infratores e não a leniência que se arrasta há anos.

Nesse espaço de tempo, muitos já morreram e milhões de reais do dinheiro do povo foram consumidos.

Adoro Mossoró de graça, sem qualquer remuneração para isso. Sou veemente, dizem alguns. Engano. Sou humano e graças a Deus não desisti da crença numa sociedade melhor, sem o delírio da Utopia de Thomas Morus.   

"Você é muito impetuoso", ouvi certa vez do longevo empresário Emerson Azevedo (Ex-Itapetinga, Faculdade Mater Christi). "É o meu jeito", respondi. "Não é ruim; não estou criticando. Muito pelo contrário", retorquiu em seguida.

Aspiro força para continuar fazendo minha parte numa cidade que vive inebriada pela farsa do epíteto de "terra da liberdade", mas deixa suas crianças morrerem de modo infame, humilha o cidadão em postos de saúde (sem médicos e remédios) e abandona seus idosos num abrigo sustentado por filantrópicos de verdade.

Ao me calar, mesmo sendo quase inaudível e desprovido de poder, termino desestimulando mais ainda os que não têm voz, os oprimidos e inúmeros inocentes. Continuarei rosnando.

No dia que encontrar uma parte humana na face dessa elite menor, não vou pedir o direito à fuga e partir. Vou continuar. Saberei que, de algum modo, fiz minha parte. Enxerguei o próximo com olhos de homem. Sou gente.  

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Categoria(s): Blog

Comentários

  1. Francisco Delmiro Rodrigues de Moura diz:

    Parabéns.
    Comentário muito apropriado para o dia e a cidade.
    Continue desta forma. É muito bom ser livre. Você é livre para expressar seus pensamentos, como todos nós.
    Quando os govenantes fazem e ninguém diz nada, até mesmo um elogio, eles continuam da forma que estão ou pioram.
    Críticas não são necessárias. São essenciais.
    Continuo como leitor diário.
    Abraços.
    Delmiro
    Aracaju
    Um abraço.

  2. sampediatria@uol.com.br diz:

    Estou longe de minha cidade e só recebo notícias sobre festas, bailes, forrós etc. Onde enxergo a realidade por trás do circo é lendo seu Blog. Graças a Deus existe a Internet para que eu não continuasse sendo iludido a tantos quilômetros de distãncia de minha mossoró. Samuel abreu

  3. Romulo alfredo silva diz:

    Seu testo é a mais pura verdade e conheço um amigo que perdeu o fiho por falta de uti , já li em jornais muita coisa sobre o assunto, mnas a maioria só mentira. O jornal pa´gina cerat vem dizendo isso a muito tempo e muita gene nao ouve e prefere fazer de conta que nao ve. Isso tudo é um crime qu precisa ser punido

  4. José Duarte l< Silvério diz:

    Num país sério esse povo estaria preso mas em mossoro uma boa parte vive sendo paparicado por colunistas e o povo inocente, vitima inocente. Dalhe carlos SantOS, José Duarte L.

  5. Ramilson Vasconcelos diz:

    Grande Carlos, sou o amigo de Israel, o enfermeiro que trabalhou em um hospital aqui, e trabalho ainda em Recife, tenho lido suas materias, é bom saber que existem pessoas como voce, só assim podemos acredita em uma sociedade mais justa. Estive te enviando estes dias meus sentimentos acerca da nossa doente sociedade. Abraços, Ramilson Vasconcelos.

  6. João de Albuquerquer Amâncio diz:

    A filantropia desses rosados sempre foi feita com interesse político e com o dinheiro publico. Nunc aouvi falar que um deles tirasse do proporio boço dinheiro para ajudar o povo. COm dinheiro publico é assim e mesmo assim engandndo e deixando nossas crianças sozinhosas para a morte. Ou gfente ruim meu Deus. João de Amâncio (João de Albuquerque, direto de Campina Grande e com saudades de minha mossoró humilhada e escravizada).

  7. Francisco Valcídio ROdrigues diz:

    Esse povo qinada diz que é prepresentante do povo e que gosta mito de mossoro. QUem vai deovolver a vida das crianasças mortas por falta de uti? O presidio federal em mossoró vai ter muita utilidade em breve. Francisco Valcídio Roddrigues (Americana-SP)

  8. Honório de Medeiros diz:

    Perfeito, amigo. A estória com a qual vc abre o texto – o exórdio, na Retórica – é fascinante. A conclusão é personalíssima: nela a alma do seu estilo e o estilo de sua alma.
    Um abração,

    Honório de Medeiros

  9. Breno Diniz diz:

    Boa tarde! Gostaria de fazer uma pergunta: Há algo de concreto que possamos fazer além de constatar e criticar? Não quero com meu humilde recado dar a entender que não valorizo essa importante prestação de serviço que o senhor faz à cidade de Mossoró. Porém, seria bom se nós pudéssemos agir (abaixo-assinado, passeata, ação civil pública,etc.) de modo a obrigar os “nossos representantes” a cumprir com suas responsabilidades. Gostaria de ter vossa opnião.

    Paz e bem!
    Breno Diniz

  10. jb diz:

    Talvez o sr encontre alguma explicação para a UTI Neonatal esta funcionando apenas no papel, no programa Camara Ligada da Tv Camara de 16/09 as 22horas.

  11. Marcos Ferreira diz:

    Caros Amigos,

    Recomendo que leiam, nos respectivos espaços de mídia, as crônicas “Um olhar de humanidade”, autoria de Carlos Santos, e “Licença para o caos”, de Cid Augusto. Coisas absolutamente distintas no fundo e na forma, mas, no tocando à bem-aventurança da escrita, no meu entender, produziram páginas de excelente qualidade. No caso específico de Carlos Santos, uma prova inequívoca de que é possível realizar uma peça literária de alto nível artístico mesmo tratando de coisas desagradáveis, de verdades ‘inconvenientes’ e questões dolorosas. Porque a sensibilidade artística e o verdadeiro talento independem da escolha do tema ou da causa a que se dedique o homem de letras. É tudo uma questão de engenho e arte.

    Um abraço fraterno,

    Marcos Ferreira.

  12. Farias Fernandes diz:

    Carlos, aqui do Maranhão onde estou morando ha seis anos, volto a amar minha terra lendo voc~e todos os dias. e comparando com o que vejo nos jornais diarios, parece que estou vendo dois mundos num só. COmo é que a imprensa de mossoro se presta ao pepal ede omitir as verdades em troca do que heins amigo? A internet e bbogs como o seu, do erasmo estao salvando a realidade e jnos ajudando a compreender melhor mossoro, graças a Deus. José almeida farias fernandes

  13. Daniel Victor diz:

    Prezado Carlos, apesar do artigo tratar de fatos aterrorizantes, fico feliz tão-somente com a possibilidade de pudermos discutir essa questão num meio de comunicação da cidade, o que era impensável há pouco tempo atrás, quando tais críticas, raramente feitas, apenas tinha objetivo partidário e/ou eleitoreiro. Parabéns pela crônica. Emocionante e ao mesmo tempo revoltante, para nós, mossoroenses.

  14. Leonardo diz:

    Carlos Santos, o que esperar de uma cidade governada há décadas pela monocracia Rosado? O que esperar de uma cidade que passa o bastão do poder de mão em mão a membros de um só clã? É de desesperar ver que, em muitos rincões do Brasil o coronelismo já foi sepultado, mas que aqui, em Mossoró, cidade que se vangloria de seus feitos históricos em prol da liberdade, a cidade ainda seja escravizada por essa família Rosado. Uma câmara de vereadores de envergonhar qualquer um, onde não há oposição, onde não foi registrado um só veto a atos do executivo. A política mossoroense é calcada no coronelismo e assistencialismo. O que se vê são ruas e mais ruas com nomes Rosados e Escóssias. Não há outras figuras a serem homenageadas pela cidade? O maior símbolo que retrata a política mossoroense vê-se naquela estátua, na praça em frente ao Banco do Brasil, em que aparece um político gigantesco, colocado num pedestal, acenando para o povo, olhar altivo, e a renca de miseráveis a seus pés, miudinhos, olhando para o alto como a olhar para um deus ou santo. É uma lástima.

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