domingo - 08/11/2009 - 12:21h

Um volume a qualquer custo

Queria publicar um livro a todo custo. Sim, já tivera filhos, plantara meia dúzia de árvores ao acaso, ao livrar-se de sementes em via pública e, agora, insistia em deixar para a posteridade as marcas de uma vida toda recheada de histórias dignas de riso, de um arquear de sobrancelhas, de uma crise de choro, sabe-se lá mais do quê dependendo do freguês, daquele que deitasse os olhos sobre os textos curtos que produzia.

Essa criatura crédula acreditava que poderia amealhar leitores de A a Z, mas essa fantasia já havia sido duramente golpeada por um editor amigo da metrópole, que elogiou o teor, a o edifício textual, os cômodos intrínsecos, mas disse tratar-se de volume sem atrativo comercial por envolver temas meio bizarros, inusitados, sempre tratados verborragicamente, com certa propensão pelo tom barroco etc.

Diante dessa sentença, e já instalada em sua cidade natal, a aspirante a escritora – sim, embora escrevesse febrilmente contos e crônicas, necessitava do aval do mercado editorial, condição ‘sine qua non’ para ganhar o epíteto – trazia aquele desejo ardentemente guardando nos escaninhos do hipocampo, porção cerebral armazenadora da memória, inclusive a afetiva.

Ela não via a hora, chegava a sonhar com a ocasião. Há meses preparava-se para a noite de autógrafos. Já tinha até a fatiota reservada, sapatinho e acessórios, as madeixas num coque, uma maquiagem discretamente exuberante, um sorriso contido de Monalisa para não trair a histeria íntima.

Imaginava uma fila descomunal, com toda a gente se acotovelando para adquirir o mimoso volume, lotado de ilustrações para atrair os que torciam o nariz para toda sorte de leituras, especialmente aquelas mais rebuscadas. Mas o tempo passava e o fim do ano não tardaria, com toda a arenga natalina para se interpor no caminho do lançamento.

A questão era achar a alma boa que se disporia a arcar com os custos de impressão e distribuição. Havia sido recomendada a um dos mais ativos nessa atividade. O tal editor era uma fábrica de lançamentos, um totem na localidade.

Ele assentiu, sim, edito e etc., mas o caso é que a empreitada envolvia certo volume de cédulas.E foi então que o benfeitor apareceu na figura de um distinto senhor dedicado à fruição literária, entre outros afazeres do outono laboral. Maio já se findava quando ela recebeu a simpática missiva eletrônica daquele leitor entusiasmado com as sandices perpetradas semanalmente.

Na terceira mensagem com teor de confetes, ela despachou a proposta do patrocínio – intimamente, preferia o termo mecenato pelo forte vínculo com gloriosos escribas do passado –, que ele abraçou com disposição.

Celebraram o acordo literário com café forte e finos rolos da fumaça produzida por adeptos da tabacaria livre e perigosa. Como as boas letras.

Stella Galvão é jornalista, professora e escritora – stellag@uol.com.br

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Categoria(s): Nair Mesquita

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