domingo - 02/11/2025 - 08:10h
Reportagem especial

Venda de sentença judicial, um lucrativo negócio de família

Por Breno Pires (Revista Piauí)

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

No Tribunal de Justiça do Piauí (TJPI), o gabinete do desembargador José James Gomes Pereira funcionava como uma empresa de família. Em cima da mesa de madeira escura, um notebook permanecia conectado ao sistema eletrônico do tribunal, o PJe, com o nome do magistrado visível no canto da tela. Mas quem redigia as decisões, despachava ofícios e determinava sentenças não era o desembargador. Era sua filha, Lia Rachel, advogada.

Com o token digital do pai plugado à porta USB, Lia assinava decisões e ordens judiciais como se fosse o próprio desembargador. Segundo a Polícia Federal, ela escolhia quais causas priorizar, quais partes favorecer, quais pedidos ignorar. O gabinete era o coração de um esquema de venda de sentenças. Até que, no dia 2 de outubro, o desembargador foi alvo de busca e apreensão, por autorização do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A investigação teve início de forma acidental. Em 2024, uma apuração sobre invasões ao sistema do TJPI revelou que e-mails falsos haviam sido criados e vinculados a perfis internos do tribunal. A manipulação permitia inserir minutas fraudulentas de decisões e induzir magistrados ao erro. Ao examinar as mensagens, os agentes encontraram um arquivo intitulado Esquema-TJPI.pdf, enviado por um assessor do próprio desembargador para si mesmo.

O assessor era João Gabriel Costa Cardoso, um jovem de 26 anos que havia trabalhado no gabinete de Gomes Pereira. O arquivo continha capturas de tela, conversas de WhatsApp e bilhetes manuscritos. Nele, Cardoso descrevia, com a minúcia de quem documenta crimes para se proteger, o funcionamento da engrenagem: Lia Rachel determinava o conteúdo das decisões, e o assessor as assinava usando o token do pai dela. O arquivo valeria como um seguro de vida, já que ele se considerava o “elo mais fraco” do esquema. O cargo era da Lia e tudo o que ela determinasse deveria ser feito, orientou o desembargador, segundo o depoimento de Cardoso à PF.

De acordo com o inquérito, o gabinete de Gomes Pereira tinha uma dinâmica própria. A primeira reunião do servidor Cardoso foi na própria casa do desembargador. Em reuniões semanais, Lia Rachel entregava papéis manuscritos com números de processos e ordens diretas: “falar c/ Des.”, “pautar urgente”, “dar provimento”, “deixar parado”. O assessor executava. O token — que, pelas regras do tribunal, deveria ser guardado pelo magistrado — ficava nas mãos do assessor.

Antes dele, o dispositivo era controlado por Jailson, sobrinho da esposa do desembargador. Mesmo depois de passar em concurso para a Polícia Rodoviária Federal (PRF), Jailson continuava a frequentar o gabinete, assinando decisões “nos fins de semana”, segundo o depoente. A cada semana, Lia Rachel enviava novas instruções. Quando havia muito dinheiro envolvido, dizia Cardoso, ela pedia para avisar o pai antes de assinar. “Trate comigo e com o desembargador apenas nesses casos grandes”, ela disse, segundo relato do ex-assessor, na primeira reunião que tiveram.

Em meio a casos suspeitos na primeira vasculhada da polícia, um específico trouxe a prova que os investigadores queriam: o Relatório de Inteligência Financeira nº 118.426, do Coaf. O documento revelou uma transferência de 200 mil reais da conta do advogado Juarez Chaves de Azevedo Júnior para a filha do desembargador. A PF rastreou a operação e descobriu que, dias depois da transação, o magistrado concedeu uma liminar favorável a um cliente de Juarez — a empresa Sundeck Holding, que pedia a posse de uma fazenda de 22 mil hectares. O recurso, distribuído “por prevenção” ao gabinete do desembargador, foi decidido em menos de 48 horas. A petição da PF fala em “transferências bancárias a título de pagamento de propina”.

Várias situações suspeitas

Ampliando a apuração, a Polícia Federal (PF) viu indícios de que o empresário João Antônio Franciosi, sócio do Grupo Franciosi, corrompeu a Justiça para garantir a posse de um imóvel rural de 22.545 hectares. Não é a primeira vez, pois João Antônio Franciosi figura como réu no âmbito da Operação Faroeste, que investiga venda de sentenças e grilagem de terras na Bahia.

No Piauí, segundo Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) do Coaf, detalhados em documentos da PF, Franciosi transferiu 106 milhões de reais à empresa Villa Bella das Furnas Participações, que pertence ao advogado Paulo Augusto Ramos dos Santos. A Villa Bella, em seguida, repassou um total de 26.206.460 reais para os escritórios de advogados intermediários — sendo 16.984.480 reais ao advogado Juarez Chaves e 9.221.980 reais ao advogado Germano Coelho. Essas transferências ocorreram entre setembro de 2023 e agosto de 2024, período que coincidiu com a decisão de mérito final favorável à parte interessada (Sundeck Holding, direitos foram adquiridos pelo Grupo Franciosi) proferida pelo desembargador Gomes Pereira no Agravo de Instrumento nº 0750602-73.2023.8.18.0000 em 07/11/2023, e é considerado, pelas investigações, o pagamento final pela aquisição fraudulenta da propriedade.

No dia seguinte à publicação da reportagem, a assessoria de imprensa de Paulo Augusto Ramos Santos enviou uma nota na qual afirma que “a movimentação financeira de sua empresa é lícita e integralmente declarada ao fisco” e que “as transferências feitas a advogados investigados ocorreram após os fatos sob apuração e se referem a outros serviços sem relação com a investigação”.

Um outro episódio descrito no inquérito é uma ação da empresa de ônibus Transcol, que resultou na liberação de uma quantia entre 5 e 6 milhões de reais bloqueados em primeira instância, segundo depoimento de João Gabriel. O dinheiro foi pago pela Caixa Econômica Federal em menos de 24 horas, segundo ele. A decisão contrariava determinação expressa de outro desembargador, Ricardo Gentil, que havia proibido Gomes Pereira de atuar no caso. Mesmo assim, o despacho foi assinado — e, de acordo com o ex-assessor, “a ordem veio de Lia Rachel”.

Quando a liminar saiu, houve tumulto dentro da corte. Colegas repreenderam o magistrado. Lia Rachel, a filha do magistrado, recebia valores por decisões previamente alinhadas com os advogados, segundo os investigadores. A investigação aponta que ela quitou uma casa de 2,1 milhões no Condomínio Aldebaran com 800 mil reais em propina paga pelo advogado Juarez Chaves. O pagamento foi dissimulado por transferências diretas aos vendedores, coincidindo com a distribuição viciada de processo para relatoria do pai e liminar favorável à Sundeck.

O desembargador Gomes Pereira tinha o hábito de atrair processos por “prevenção” — um expediente que pode ser legítimo quando um magistrado reivindica para si casos que têm conexões com outros que está julgando, mas que em suas mãos tinha outro objetivo.

Nem tudo era dinheiro. Algumas decisões atendiam a pedidos políticos. Num bilhete, Lia Rachel ordenou: “Segurar o caso do Edilson Sérvulo até março. Foi pedido do deputado Georgiano [Georgiano Fernandes Lima Neto, do MDB].” Era uma referência ao prefeito de Barras, Edilson Capote (PSD), alvo de ação que poderia cassar seu mandato. Lia pediu para “deixar parado”. O assessor obedeceu. Quando a PF confrontou Cardoso sobre o bilhete, ele confirmou: “Ela disse que era um pedido de deputado. Eu só cumpri.” Em outro manuscrito, Lia escreveu ao lado do número de um processo: “Aplicar multa de 5%. Parte contrária está enchendo de embargos.” No canto inferior, a anotação: “Falar com Des.” — uma forma discreta de confirmar que o pai sabia.

Apurações apontam que gabinete do desembargador José James Gomes Pereira era um balcão de negócios escusos (Foto: Reprodução)

Apurações apontam que gabinete do desembargador José James Gomes Pereira era um balcão de negócios escusos (Foto: Reprodução)

O depoimento de Cardoso oferece um retrato completo da inversão de autoridade. O assessor trabalhava sob ordens diretas da filha do desembargador. Ela, por sua vez, reportava-se ao pai apenas quando havia risco e dizia que estava ali para blindar o desembargador. As ordens se repetiam com naturalidade de rotina administrativa: “dar provimento”, “analisar embargos”, “ver possibilidade de conceder liminar”. Lia fornecia até a fundamentação jurídica das decisões. O assessor digitava, assinava, e a Justiça do Piauí seguia em movimento — com o nome de Gomes Pereira na assinatura digital e a vontade da filha no conteúdo.

Entre os itens apreendidos no quarto do desembargador, está o manual de uma máquina de contar cédulas e um caderno de capa amarela com as inscrições “Operação Paraíba”, recheado com “comprovantes, manuscritos e documentos”.

Procurado pela piauí, o escritório Almeida Castro, Castro e Turbay Advogados, que defende Gomes Pereira e Lia, enviou uma nota na qual afirma que os dois são inocentes.

Em razão das notícias veiculadas na imprensa sobre a investigação envolvendo o nome do Desembargador José James Gomes Pereira, faz-se necessário esclarecer que o Desembargador nunca solicitou, autorizou ou compactuou com qualquer prática que violasse os princípios da legalidade, moralidade e ética que sempre nortearam sua trajetória na magistratura. A defesa técnica do Desembargador e de sua filha, a advogada Lia Raquel, refuta qualquer juízo precipitado sobre os fatos. Como o processo está em segredo de justiça, neste momento, a defesa não poderá aprofundar qualquer análise técnica.

Os defensores dizem também que o manual não pertencia ao desembargador.

A Polícia Federal enquadrou os envolvidos nos crimes de corrupção ativa e passiva, fraude processual, organização criminosa e lavagem de dinheiro. A representação afirma que o desembargador “tinha plena ciência e anuía às práticas ilícitas de sua filha”. Em setembro de 2025, a PF pediu a prisão preventiva de Gomes Pereira e Lia Rachel, além de buscas e apreensões em endereços ligados ao magistrado, à filha e aos advogados Juarez Chaves e Germano Barbosa. O pedido foi encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça, no bojo da Cautelar Inominada Criminal 176/DF (2025/0342130-3).

O pedido de prisão se baseava na gravidade dos fatos e na dimensão institucional do esquema de venda de sentenças, apontado como uma estrutura criminosa que teria operado de forma reiterada dentro do Tribunal de Justiça do Piauí. A PF sustentou que as prisões eram necessárias para garantir a ordem pública e a instrução criminal, diante da possibilidade de interferência dos investigados em processos e servidores ainda vinculados ao tribunal.

O ministro Sebastião Reis Júnior, relator do caso no STJ, negou o pedido de prisão. Em sua decisão, escreveu que “a suposta atuação ilícita encontra-se adstrita à possibilidade de o magistrado representado proferir decisões” e que não havia nos autos indícios concretos de que qualquer dos alvos tivesse ameaçado, intimidado testemunhas ou atuado para dificultar a investigação. Entendeu que as medidas já em vigor — como o afastamento do cargo por um ano e as restrições de contato entre os investigados — eram suficientes para resguardar o andamento do inquérito.

O ministro, porém, concordou com o afastamento de Gomes Pereira do cargo, sob o argumento de que havia indícios robustos de uso criminoso da função pública. No despacho, registrou:

“Consoante já assinalado, existem fundadas suspeitas de que o Desembargador José James Gomes Pereira utiliza sua função pública para a prática de crimes, o que justifica o afastamento cautelar do cargo. Os supostos crimes imputados ao magistrado estão diretamente ligados ao exercício funcional, trazendo efeito deletério à reputação, imagem e credibilidade do Poder Judiciário, justificando, assim, o seu afastamento do cargo.”

Estranho

Ao fim de sua manifestação, o Ministério Público Federal pediu ao STJ a suspensão das decisões assinadas por Gomes Pereira que beneficiaram as empresas Sundeck Holding, Vila Bella das Furnas e o Grupo Franciosi, sob o argumento de que havia indícios de tratativas e possível venda de sentenças. O ministro Sebastião Reis Júnior reconheceu a gravidade dos indícios, mas negou o pedido, afirmando que o MPF não apresentou fundamentação suficiente nem indicou os processos afetados.

“Desse modo, por ora, indefiro o pedido”, decidiu Sebastião Reis.

O curioso caso em que o julgador acusado de vender sentenças é afastado, mas as sentenças suspeitas, não.

Acesse nosso Instagram AQUI.

Acesse nosso Threads AQUI.

Acesse nosso X (antigo Twitter) AQUI.

Compartilhe:
Categoria(s): Justiça/Direito/Ministério Público / Reportagem Especial

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2025. Todos os Direitos Reservados.