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domingo - 21/08/2022 - 04:36h

A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 10

Rato Branco

Por Marcos Ferreira

Como todo elemento acometido por transtorno bipolar, ou quase todos, pois sempre existem as exceções, o jornalista e literato Jaime Peçanha possui as suas severas crises de ego inflado e de humor intempestivo. Por exemplo, embora certas situações levem a crer nisto, ele enfiou na cabeça que o prefeito Wallace Batista o caça a pau e pedra no município de Mondrongo. Tal político, numa perseguição amiúde e implacável, estaria mancomunado até com o diretor administrativo da Tribuna Mondronguense, Alberto Cardoso, vínculo este, segundo o entendimento do perturbado escritor, que teria culminado na sua sumária demissão do centenário veículo.

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Também como a maioria dos autores, Jaime Peçanha padece de superestima em relação a si próprio e a tudo quanto produz no tocante à palavra escrita. Julga-se um virtuose das letras, um talento injustiçado e boicotado em sua própria terra, cidade ante a qual há muito ele alimenta uma relação de amor e ódio, com menos intensidade, possivelmente, no primeiro sentimento que no segundo.

A verdade, contudo, é que ele adquiriu uma porção de inimigos em Mondrongo. Inimigos ou desafetos que podem ser outros, obviamente, que não Wallace Batista e Alberto Cardoso. Mesmo entre os homens de letras, muitos dos quais ele já atingiu de algum modo com a sua verve contundente e não raro incivil, Jaime é malquisto. São poucos os escribas deste município que o suportam ou, mais raramente, o admiram. A maior parte dos homens de letras, sobretudo, quer vê-lo pelas costas, fodido e estrepado. Os mais ressentidos não sentam à sua mesa, tecem comentários desabonadores sobre o seu caráter e competência enquanto escritor e costumam trocar de calçada ao se defrontarem com ele em algum ponto desta cidade repleta de picuinhas.

Às vezes, tão somente por exercício do mau humor, Jaime Peçanha costumava publicar textos venenosos em sua coluna na Tribuna Mondronguense, indiretas corrosivas, ácidas, ferinas, tanto em verso quanto em prosa. Principalmente por meio de sonetos lapidares e não menos devastadores, como alguns que estampou, aos domingos, no caderno de cultura da Tribuna, intitulado Multiverso.

Dentre os presumíveis alvos do raivoso Jaime Peçanha, figurava o prefeito de Mondrongo, brindado com poemas por vezes rasteiros, desleais, embora impecáveis na sua forma e conteúdo. Nesse caso, como as poesias eram claramente direcionadas, Wallace Batista não tinha como se livrar da carapuça, composta de catorze versos decassílabos, dois quartetos e dois tercetos. Então, outra pessoa não poderia vesti-la, exceto o jovem alcaide. Apesar disso, por estratégia ou resignação, o político jamais passou recibo nem, por via jurídica, tomou nenhuma medida contra o bardo ferino, versão mondronguense de Gregório de Matos — o Boca do Inferno.

Enquanto Jaime esteve na editoria de cultura da Tribuna, outro homem público deste município foi “mimoseado” com a gaiola dos catorze versos do Boca do Inferno mondronguense. Trata-se do presidente da Câmara, o edil Leonardo Jardim. Este, no entanto, a exemplo do prefeito, também nunca se manifestou pública ou juridicamente acerca das indiretas e ilações contra ele desferidas.

Em meio a todos esses supostos desafetos, todavia, existe um que Jaime Peçanha não leva muito a sério, mas que é extremamente vingativo e perigoso. Trata-se de Mauro Mosca, mais conhecido nas redações de Mondrongo e alhures pelo apelido Rato Branco. Isto em referência ao seu porte mirrado, raquítico, e à sua cútis excessivamente nívea, parecendo-se, portanto, com aqueles ratinhos de laboratórios, mutantes albinos de ratazanas. O roedor da imprensa provinciana é um animalzinho, astuto, traiçoeiro, de hábitos sub-reptícios tanto nas relações sociais quanto profissionais. Fez com que Jaime desistisse de tentar uma vaga de revisor no Diário do Oeste.

A desistência foi compreensível. Pois, além de ser inimigo figadal de Jaime, o esquelético jornalista é sobrinho do velho Fernando Nonato, dono do Diário do Oeste. Então, ainda que conseguisse a vaga de revisor, Jaime experimentaria toda sorte de perseguições movidas por Mauro Mosca, a quem a maioria das pessoas (exceto as mais íntimas) só chama pelo apelido Rato Branco às ocultas.

E por que essa ira de Mauro Mosca contra Jaime? Ora! Simplesmente porque foi Jaime quem o ferrou com a perturbadora alcunha. Isso ocorreu há vários anos, quando Peçanha, rigoroso na grafia das palavras, trabalhou alguns meses como revisor no Diário e se desentendeu com Mosca justamente por conta de verbetes incorretos num determinado texto do colega. Jaime o alertou sobre o equívoco, mas aí Mauro Mosca sustentou que os vocábulos estavam corretos, que o revisor se considerava a personificação do dicionário Aurélio e eles trocaram agressões verbais. Nesse momento, enfim, com a redação lotada, Jaime xingou Mauro Mosca de Rato Branco.

Não teve jeito. Jaime foi demitido naquela semana, mas o cognome grudou em Mauro Mosca, marcou-o para sempre como uma profunda cicatriz no rosto. Daí por diante, após Jaime conseguir emprego na Tribuna Mondronguense, os dois redatores passaram a trocar mensagens subliminares em suas colunas. Usavam como trincheira, aos domingos, os cadernos de cultura desses veículos.

Por mais de uma vez, ao longo de uma década, ambos perderam totalmente as estribeiras e partiram para as vias de fato. O confronto mais recente entre eles se deu há pouco mais de um ano num pequeno café do Pastagem Shopping. Não houve consequências graves devido a amigos em comum, que intervieram e separaram os contendores, tocando cada qual para destinos diferentes. Nascido em berço de ouro, mimado, cheio da grana, Mauro Mosca chegou a ameaçar Jaime de morte duas vezes. Este, por outro lado, fez pouco-caso das ameaças dizendo que o outro era um fanfarrão e que seria muito mais útil num laboratório do que numa empresa de notícias.

Depois que voltou suas baterias contra os políticos de Mondrongo, direcionadas especialmente para o prefeito Wallace Batista e o edil Leonardo Jardim, presidente da Câmara, Jaime passou a dar bem menos importância a seu opositor e hoje quase não se recorda do antigo desafeto. Mosca, entrementes, feito uma brasa moribunda queimando sob as cinzas, não se esqueceu da sua cicatriz moral.

Furioso com o epíteto que lhe foi pespegado, Mauro Mosca tentou usar de sua influência junto a Jerônimo Albuquerque Azevedo, proprietário da Tribuna Mondronguense, e do diretor administrativo Alberto Cardoso, para que seu inimigo fosse demitido. Não funcionou. Jerônimo Albuquerque Azevedo simpatizava com Jaime Peçanha, deu uma desculpa qualquer e manteve Jaime no emprego, que à época era apenas revisor e copidesque. Somente em meados de dezembro daquele ano ele ascenderia a repórter e editor de cultura. Outro aspecto em favor de Jaime é que nesse tempo o diretor administrativo não lhe devotava nenhuma animosidade.

— Aquele safado ainda vai ter o que merece — dizia Mauro Mosca nos bares, cafés e panelinhas intelectuais de Mondrongo. Noite e dia, de forma incansável, caluniava Jaime pelos quatro cantos da província, inventando toda espécie de relatos para macular o nome e a reputação do seu arqui-inimigo. Esses verbos no passado decerto são inadequados. Pois a calúnia prossegue. Não será nenhuma surpresa, então, se Rato Branco estiver envolvido nos ataques contra Jaime Peçanha.

Tal possibilidade não pode ser descartada.

ACOMPANHE

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Prólogo;

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Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo  3;

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 4;

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Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Bernadete Lino / Caruaru - PE diz:

    Feliz por voltar a ler “A cidade que nunca leu um livro”; fez muita falta. Já estava habituada! Refleti agora sobre a questão dos apelidos: eles grudam feito tatuagem! Quem colocou, esquece. Mas quem foi alvo de um, terá que carregá-lo pela vida afora. Arranjar inimigos é uma coisa bem gratuita; basta ter brilho; destacar-se! Estou muito entusiasmada com o andar da carruagem! Bom domingo e não se ausente tão cedo! Abraço!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Prezada Bernadete Lino,
      Bom dia.
      Também estou feliz com esse regresso do folhetim ao Canal BCS – Blog Carlos Santos. Mais feliz ainda por saber que você continua dentre meu pequeno, porém valioso rol de leitores. Este “A CIDADE QUE NUNCA LEU UM LIVRO”, cujo título eu admito que pode mudar, pois os capítulos do folhetim são escritos conforme a temperatura de Mondrongo, ainda tem muitas voltas e reviravoltas para exibir. Nada é o que parece ser.
      Cordialmente,
      Marcos Ferreira.

  2. Raimundo Gilmar da Silva Ferreira (Gilmar) diz:

    Esse escritor nos surpreende positivamente a cada capítulo do seu livro. Parabéns!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Caro amigo Raimundo Gilmar,
      Bom dia.
      Grato por sua leitura e presença neste espaço do leitor ao longo desses domingos. Você, juntamente com outros que acompanham este folhetim “A CIDADE QUE NUNCA LEU UM LIVRO”, são a minha grande motivação e recompensa.
      Um forte abraço e até a próxima.
      Marcos Ferreira.

  3. Raí Lopes diz:

    Confesso que o quadro que se apresenta é, com todas as letras – as que faltam, claro – passível de, cada vez mais, adentrar ao universo da fantasia tornada realidade (Ou será o inverso?). Bem, de qualquer forma, e se não me engano, os personagens até agora apresentados estão, ou estiveram presentes no cotidiano das coisas comuns, e públicas, da cidade onde resido (Será Mondrongo uma filial, melhor, o metaverso do país de Mossoró? Ou será o inverso?). Vamos em frente…

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Meu caro Raí Lopes,
      Bom dia.
      Você, para variar, é um artista na dialética com que tem esmiuçado e analisado, de forma quase laboratorial, estes capítulos de “A CIDADE QUE NUNCA LEU UM LIVRO”, tíulo este que pode mudar, conforme já informei a uma fiel leitora deste folhetim. Portanto, acho até que você tem razão em todas as suas indagações por demais pertinentes. Sobretudo nesta de um metaverso entre Mondrongo e Mossoró. Vamos em frente.
      Com admiração,
      Marcos Ferreira.

  4. Simone Martins de Souza Quinane diz:

    Bom dia, meu caro escritor!
    A saga de Jaime Peçanha está cada vez mais intrigante!
    Vejamos o que está reservado para Jaime Peçanha e Mauro Mosca, vulgo Rato Branco, nos próximos capítulos na cidade de Mondrongo.
    Grande abraço!

    • Marcos Ferreira de Sousa diz:

      Querida Simone Martins,
      Boa tarde.
      Que bom saber que você continua gostando da trama e dos desdobramentos deste romance folhetim escrito, como já revelei, conforme a temperatura de Mondrongo vai oscilando. A exemplo de outras personagens, Jaime Peçanha e Mauro Mosca (vulgo Rato Branco) ainda darão muito o que falar ao longo desta narrativa.
      Um forte abraço e até domingo.
      Marcos Ferreira.

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