A origem do fim
Por Marcos Ferreira
Desempregado e ainda sem ter recebido um centavo da rescisão trabalhista, Jaime Peçanha levou adiante o que prometera à esposa, Laura Gondim: vender todos os livros dele. Isso, além de amenizar o drama financeiro, faria com que ele ganhasse alguns pontos junto à mulher, que sempre manifestara o desejo de se livrar daqueles “condomínios de ácaros e fungos” que lhe atacavam a rinite alérgica.
Entre autores nacionais e estrangeiros, como Graciliano Ramos, Guilherme de Almeida, Machado de Assis, Rachel de Queiroz, Adonias Filho, Dostoiévski, Miguel de Cervantes, Tolstói, Mario Quintana, Florbela Espanca, Gabriela Mistral, Lúcio Cardoso, Olavo Bilac, Cesário Verde, Lima Barreto e Júlia Lopes de Almeida, foram quase oitocentos títulos vendidos por três mil reais. Valor este dividido em três parcelas de mil reais. O sebista também exigiu as três estantes de ferro.
A negociação, toda ela pechinchada, rolou da metade da manhã para próximo do meio-dia. Durante o tempo em que esteve no Sebo Verdugo, onde conseguiu vender a sua biblioteca de algumas centenas de volumes por esse preço simbólico, o jornalista e escritor Jaime Peçanha demorou-se mais do que imaginara devido a um assunto levantado em determinado momento — na verdade requentado — pelo astucioso sebista Antoniel Silva. É importante recordar que em Mondrongo existem somente dois sebos: o Verdugo e o Sebo Bate-Bucha, este de propriedade do xilógrafo Gotardo Luís. O xilógrafo ofereceu meramente dois mil reais pelo acervo, em duas parcelas. A cidade conta com duas pequenas livrarias. Uma está situada no Centro e a outra funciona no único shopping, o Pastagem, uma grande bodega mal refrigerada e elitista.
— Você realmente acredita nessa lenda, Antoniel? — refutou, Jaime sentado num banquinho de madeira diante de Antoniel Silva, que ocupava outro banco do mesmo tipo, ambos num local menos apertado, à entrada do comércio, que naquele instante não contava com nenhum cliente. — Isso não passa de folclore propagado pelo Cândido Besouro, tido e havido como um semideus neste cu de judas.
Com um robusto exemplar de O Propósito de Lampião em Mondrongo, já pela terceira ou quarta edição, esta última lançada pelo próprio Sebo Verdugo, Antoniel Silva usava de sua lábia e astúcia de antigo negociante de livros e egos para tentar vender o seu peixe de tinta e celulose a Jaime Peçanha por nada mais, nada menos que setenta reais. Título que já caiu em domínio público, pois a primeira edição data de 1935, O Propósito de Lampião em Mondrongo tem como lastro não o mero saque a esta comuna, mas uma conspiração do coronel Juarez Albuquerque Azevedo para que Lampião assassinasse o então prefeito de Mondrongo, Adolfo Fagundes.
— Rapaz, está tudo aqui — assegurou Antoniel folheando o livrório de umas quatrocentas páginas, novo e com posfácio de Dionísio da Costa Limeira, perpétuo presidente da Academia Santa-luziense de Letras. — Você sabe que o mestre Cândido Besouro era um folclorista e historiador sério, estudioso da mais alta credibilidade e competência ante os acontecimentos pesquisados e registrados por ele.
Daí teve início a seguinte porfia entre os dois:
— Como se não bastasse, Besouro ainda escreveu nesse calhamaço, o qual eu já li numa determinada época, que Lampião, um elemento notoriamente conhecido como semianalfabeto, teria dito que Mondrongo é “a cidade que nunca leu um livro” — contestou Jaime. — Ora! Besouro diz ainda que Virgulino Ferreira da Silva, o vulgo Lampião, o Rei do Cangaço, escrevia poemas de amor para a sua não menos valente Maria Bonita. Tenha santa paciência, meu caro! Nenhum outro folclorista deste país deu semelhante vexame historiográfico. Quando não sabia de uma coisa, para não deixar ninguém sem resposta e não ficar por desinformado, Besouro costumava inventar histórias desse tipo. Lampião não se interessava por versos, era homem de armas, não de letras, muito menos poderia dizer se Mondrongo possuía ou não leitores.
Antoniel Silva consertou os grandes óculos de grau sobre o narigão vermelho, sungou os testículos, largou dois pigarros e prosseguiu defendendo a reputação do folclorista, historiador, etnógrafo, antropólogo, poeta, advogado, jornalista, nazista, fascista e o escambau. Enquanto Antoniel tagarelava na defesa do semideus da intelectualidade santa-luziense, Jaime Peçanha teve este rápido estalo:
— “A cidade que nunca leu um livro” — falou.
— O que isso tem a ver? — inquiriu Antoniel.
— Me parece que soa bem para um romance.
— Péssimo nome. E você tem um romance?
— Estou começando… Ainda faltava o título.
Antoniel Silva, que àquela altura já havia se dado conta de que não conseguiria abater o seu produto “da mais alta credibilidade e competência” no dinheiro que teria que pagar a Jaime, súbito começou a tomar a recusa do outro como uma ofensa pessoal: “Você é um invejoso, um despeitado. É isso, tem inveja da grandeza e glória do mestre Cândido Besouro”. Jaime não deu bola para o fricote. Pois outro fato notório é que o sebista-editor Antoniel Silva é um baba-ovo despudorado não somente da memória intelectual de Besouro, mas também de toda uma récua de intocáveis pavões de Mondrongo e de Cafundolândia, a capital do nosso estado de Santa Luzia.
— Mudei de ideia — disse Jaime de repente.
— A respeito de que você está falando agora?
— Decidi que vou levar esse troço do Besouro.
— Garanto que está fazendo ótima aquisição.
— Não é pela obra em si, eu também asseguro.
— Por quê, então?! Trata-se de um clássico!
— Porra nenhuma, Antoniel Silva! Porém me será útil de alguma maneira na composição do meu enredo “A cidade que nunca leu um livro”. Pronto, camarada! Agora eu já tenho um título, e você fica sabendo de antemão.
— Segundo Cândido Besouro em seu clássico O Propósito de Lampião em Mondrongo, como você talvez recorde, tem a ver com a narrativa de que o avô paterno do Rei do Cangaço supostamente abriu a primeira livraria de Mondrongo, vindo a falir em menos de um ano de atividade por falta de clientes. Isto é, leitores. Magoado, portanto, o avô de Virgulino Ferreira teria publicado um artigo na Tribuna Mondronguense afirmando que os habitantes de Mondrongo jamais leram um livro.
— Conheço essa história. O problema é que Besouro não transcreveu o referido artigo nem jamais nenhum pesquisador do estado de Santa Luzia nem de parte alguma localizou o desabafo do avô de Lampião nos arquivos da Tribuna. Na obra, sem riqueza de detalhes, Besouro diz que o homem se chamava Leopoldo Ferreira, ex-ferroviário, e que seria natural de Serra Talhada, em Pernambuco. Informa ainda que o cara, poeta bissexto e amante da literatura, teria empregado todas as suas economias nesse projeto fracassado da livraria e terminou perdendo tudo, afundando na ruína financeira, terminando os seus dias de vida como mendigo em Mondrongo.
Como era de se esperar, o sebista-editor ficou satisfeito por, enfim, ter conseguido vender seu peixe de papel. Contudo, não digerindo bem o descaso de Jaime em relação a Cândido Besouro, retrucou o que lhe pareceu uma guinada contraditória na produção literária de Jaime Peçanha: as críticas que não raro, por meio de contos, poemas e crônicas, Jaime desferia contra a hoje derrotada oligarquia Albuquerque Azevedo e a administração pirotécnica e afetada do prefeitinho Wallace Batista:
— Você por acaso virou a casaca, Peçanha?
— Não estou entendo o porquê da pergunta.
— Ora, amigo, você num domingo sim e no outro também baixava o cacete no lombo do atual prefeito em suas produções cheias de veneno e duplo sentido, mas agora resolve se voltar contra o nosso maior folclorista Cândido Besouro! Vai escrever também sobre cangaço, logo você que sempre desprezou esse tema?! Ou seja, trocará de alvo tão só para atacar o nome de um ícone das nossas letras.
Depois de uma gargalhada, Jaime respondeu:
— Larga de ser puxa-saco de defunto, homem! Já lhe basta essa intelectualidade pavonesca cujos testículos você vive osculando. Entenda que não passa pela minha cabeça, não ao menos neste momento, escrever nada contra o senhor Cândido Besouro, embora ele também mereça umas boas chibatadas.
— O que pretende fazer, então? Você não dá ponto sem nó, Jaime. Aposto que está tramando também contra o mestre Besouro.
— Não seja paranoico. Adquiri o catatau porque acho que me será útil em certos momentos da minha narrativa, de modo a embasar algumas coisas. Como eu lhe disse, Antoniel, eu já li essa porcaria e sei que tem vários ingredientes aí que, juntando com o material que tenho em curso, poderão resultar num bom caldo. Não estou livrando a cara do prefeitinho Wallace Batista de modo algum. Pelo contrário. Disponho de um dossiê devastador contra ele, desde o tempo em que foi presidente da Câmara de Vereadores, deputado estadual e hoje se aboletou na Prefeitura.
— Está louco? Vai plagiar o mestre Besouro?
— Não exija muito dos seus vinte neurônios.
— Fala sério, Peçanha! Que porra vai fazer?
— Eu já falei que vou reler O Propósito de Lampião em Mondrongo meramente para me reiterar de certas historietas registradas nesse trabalho pelo seu mestre coleóptero. Não vou plagiar merda alguma. Confesso, todavia, que talvez eu reescreva algumas dessas anedotas, como essa, sobretudo, do cangaceiro Lampião supostamente haver dito que Mondrongo é “a cidade que nunca leu um livro”. De onde diabos Cândido Besouro tirou esse conto da carochinha? Você faz alguma ideia? Também fico imaginando Virgulino Ferreira no meio da caatinga, enquanto se escondia das volantes, de posse de lápis e papel escrevendo versinhos para a Maria Bonita dele.
— O trabalho de Besouro tem lastro, amigo.
— Francamente, um Lampião poeta não dá.
— Ora! Jesuíno Brilhante não se tornou conhecido como o cangaceiro romântico? Por que Lampião, que sabia ler e escrever, de forma precária, mas sabia, não poderia gostar de versos e escrever para a rainha do cangaço?
— Se Besouro tivesse afirmado em algum livro que a Terra é quadrada, Antoniel, até hoje você estaria defendendo tal despautério.
— Acho melhor você se ocupar com a oligarquia Albuquerque Azevedo e o prefeito Wallace Batista. Mas tome cuidado com ele.
— Por que eu deveria me preocupar em especial com o prefeitinho Wallace Batista? Você está sabendo de algo sobre a índole do jovem alcaide que não sei? Porventura devo sair de casa agora usando colete à prova de balas? E qual seria o nível de resistência a que tipo de calibres? Já estou tremendo de medo.
— É bom mesmo que tome cuidado. Você não tem peito de aço e Wallace Batista não é de levar desaforo para casa como esse pessoal da oligarquia Albuquerque Azevedo, contra quem você costuma escrever cobras e lagartos.
Jaime Peçanha se cansou daquela lenga-lenga:
— Vamos ao que importa. Assine meu cheque.
— Já vou descontar os setenta do livro, ok?
— Claro que sim! Contanto que tenha fundos.
— Você e suas piadinhas sem graça, Jaime.
— É somente força do hábito, caro Antoniel.
Naquele dia, embora bem-humorado, Jaime deixou o Sebo Verdugo com a estranha sensação de que possuía um alvo desenhado em suas costas, no peito ou na testa. Pois no fundo ele sabia que o senhor prefeito, embora não fosse homem de armas e muito menos de ação, possuía índole sub-reptícia e traiçoeira. Não duvidava, pois, que o prefeitinho fosse capaz de contratar um pistoleiro para silenciá-lo e pôr um basta em suas críticas arrimadas na literatura: contos, poemas e crônicas.
Além disso, agora Jaime também trabalhava num dossiê, um romance bombástico que detonaria, mesmo se resguardando na trincheira de peça ficcional, a carreira política de Wallace Batista, elemento este que vem se revelando até pior do que grande parte dos integrantes da oligarquia Albuquerque Azevedo.
Ali começava, portanto, a origem do fim.
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Prólogo;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Capítulo 2;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 3;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 4;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 5.
Marcos Ferreira é escritor
Vamos ver o que isso vai dar… Bom domingo… sem colete à prova de bala.
Aguardemos, cenas dos próximos capítulos! Abraços poeta e escritor Marcos Ferreira…
Esse conto tem sido uma viagem: novamente viajei à minha infância! A narrativa sobre Lampião me faz recordar meu avô materno, com quem convivi de forma bem próxima, que nasceu em 1905, 07 anos após o nascimento de Lampião. Ele narrava coisas tremendas que ouviu contar em sua infância/adolescência, daquela figura que inspirava medo a todos! Lampião era uma espécie de justiceiro frio que cometia atrocidades. Posteriormente, assisti um filme chamado Baile Perfumado, o que me surpreendeu a narrativa de que ele apreciava perfumes. Imagino que era uma maneira de se mostrar atraente. Um contraste com aquele Lampião que não poupava nem crianças. Daí ele poderia até ter um lado poético. Quem sabe… O que está me encantando no conto é que Mondrongo é uma espécie de caleidoscópio: cada hora aparece uma nova faceta! Parabéns pela criatividade e narrativa de uma cidade que é parecida com algumas cidades conhecidas! A ficção e a realidade se misturam! Estou devorando cada capítulo, Marcos Ferreira!
Bom dia, poeta!
Conhecendo a origem do título do romance (interessante). Seguindo o bonde até onde nos levará o trem da imaginação do nobre escritor…
Abraços das bandas do Norte!
Bom dia, Marcos!
Pelo visto, temos muito chão ainda a percorrer…
Mas cá para nós, fiquei imaginando o quanto custou para o Jaime – literalmente, a venda dos seus preciosos livros, mas, tudo por uma” boa e justa causa”! Fazer o quê?
Abraços
Caro Marcos!
É fascinante ver o desenrolar das ações peculiares dos habitantes mondronguenses, amo viajar na imaginação gostosa do autor.
Aguardemos os próximos capítulos!
Abraços!