Sem verbos nem vírgulas
Por Marcos Ferreira
Um homem sem palavras neste começo de manhã em Mondrongo. Mudo por inteiro. Sequer um solilóquio. Fechado consigo mesmo. Entregue ao silêncio à sua volta. A vizinhança quieta. Quase inexistente neste domingo sem a fuzarca dos humanos. À exceção do canto dos pássaros nas árvores próximas. Jaime de bem com essa quietude dominical. Reservado. Discreto com os seus pensamentos sombrios. Quiçá povoados de vingança. Nenhuma conjugação verbal. Assim como este parágrafo e capítulo inteiramente sem verbos e também sem vírgulas. Não. Nada de verbos nem de vírgulas. Não ao menos por hoje. Em homenagem ao escritor Jaime Peçanha.
Bem cedo o preparo do café na nova cafeteira com jarra de inox. Semiamargo e forte. Caneca quase cheia. Degustação da rubiácea em goles demorados. Ele com ar pensativo sentado à mesa da cozinha. Os cotovelos sobre a coberta de plástico. As duas mãos em torno da grande caneca fumegante. Sem pressa ou comida àquela hora. Apenas um copo d’água pouco antes. Após o café a volta à cama.
Laura (como em outras oportunidades) de plantão no Hospital Tancredo Neves. Ali no quarto o silêncio e a meia-luz aconchegantes. A privacidade. O peculiar prazer da solidão momentânea. Além de um friozinho agradável. Cinco e cinquenta da matina. Ele encurvado sobre os tépidos lençóis. Sim. Tépidos. Não mornos. Para o desagrado de certos leitores rabugentos. Jaime em sua quietude matinal. Quase inerte. Os olhos fixos num ponto perdido do quarto. Nenhuma demonstração de interesse pelo tresoitão embalado na flanela verde na caixa de sapatos em cima do guarda-roupa. Sem qualquer curiosidade ou atração pela arma neste seu momento sorumbático.
Pois bem. O semblante impassível. A barba rala e fina à espera de lâmina. O cabelo já crescido. Revolto. A pele clara. Os olhos castanho-claros. A estatura nem baixa nem mediana. Cerca de um metro e oitenta e cinco. Físico longilíneo. Trinta e dois anos de idade. Bem-dotado. Confortável em sua bermuda jeans surrada. Com pequenos rasgos na parte fronteira das coxas. Nu da cintura para cima.
— Ahhhh! — um bocejo após longos minutos.
Porém nenhuma quebra registrada na ausência de verbos e vírgulas nesta parte da narrativa. Isto não por interesse do jornalista e escritor Jaime Peçanha. Mas tão somente por masoquismo do narrador deste capítulo desverbalizado e desvirgulado. Tarefa esta nada fácil ou de todo impossível a um elemento tacanho e espécie de equídeo da língua portuguesa como o marginal e humorista chinfrim João Claudione — nome “artístico” de João Cláudio. Traficante de armas e drogas. Vendedor do pau de fogo a Jaime por três mil e quinhentos reais. Além dos duzentos reais cobrados por cinquenta cartuchos. Tudo uma pechincha. Segundo o meliante João Claudione.
Cadê Wallace Batista nesta bela manhã ensolarada? O prefeitinho de Mondrongo. Decerto em sua imponente mansão no residencial de luxo Alphaville. E o também abastado vereador Leonardo Jardim? Presidente da Câmara Municipal. Qual o paradeiro de Alberto Cardoso? Diretor-administrativo da Tribuna Mondronguense. E o traiçoeiro e vingativo Mauro Mosca? Vulgo Rato Branco. Onde?
Jaime Peçanha agora imerso em pensamentos insondáveis até para este narrador pretensamente onisciente. Olhar distante. Remoto como aquele tempo de vigilante da empresa seguradora de numerários. Ou mais longe ainda que isso. No tempo de criança miserável no bairro Santo Antônio. Faminto em companhia do pai analfabeto e alcoólatra. Época de agressões. De vários maus-tratos. A mãe morta durante o parto de Jaime. Uma década após a morte do pai. Esfaqueado em uma briga com um colega de copo num prostíbulo de Mondrongo. Jaime sozinho no mundo. Dez anos de idade. Apenas sob os cuidados da avó paterna. Ela também viciada em álcool.
Curto período colegial. No primário o seu encontro e amizade com o futuro barra-pesada João Claudione. Ambos com breve permanência na vida escolar. Jaime (apesar dos pesares) dominado pelo hábito da leitura. Apaixonado por livros desde sempre. Mas um completo zero à esquerda em aritmética. Entregue à leitura como se esta uma fome ancestral. Um típico caso de autodidatismo nas letras.
Jaime estagnado. Engessado no mundo formal. Nenhum diploma universitário entre seus papéis. A sua maior façanha curricular resumida ao ensino médio. Esta a nomenclatura de hoje em dia. Mas nunca o divórcio das letras. Absolutamente fiel à sua vocação de literato. A devoção à escrita levada a sério. Jamais uma brincadeira. Um robby. Um passatempo. Resultado: um escritor polígrafo. Cônscio de sua arte com pouco mais de vinte anos de idade. A vida toda influenciado pelos clássicos. Literatura nacional quanto estrangeira. Ficcionista. Cronista. Poeta. Sonetista burilador — apesar de alguns leitores e críticos rançosos aversos à gaiola dos catorze versos.
Longe da cozinha. Em jejum. Sequer uma fruta. Só o café escoteiro. Curvado sobre a cama. Ora com um lado do corpo. Ora com o outro. Olhos abertos. Às vezes cerrados. Indisposto. Talvez já tocado pela bipolaridade. Daí a pouco o som das chaves na porta da frente. Laura de volta do plantão. Adeus o silêncio. A boa calmaria. A solidão provisória. E este capítulo sem verbos nem vírgulas.
ACOMPANHE
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Marcos Ferreira é escritor
Achei interessante essa forma de escrever sem verbos e sem vírgulas. A ação (verbo) e a pausa (vírgula), são necessárias a uma vida saudável. Do contrário fica tudo meio inerte. Foi o que senti nesse capítulo. Jaime está sem saber pra onde vai. Nem ouso arriscar um palpite. Ele não é muito bom de ação; é melhor na ruminação. Pensa, pensa e pensa. E nada! Vamos aguardar os próximos capítulos.
Prezada Bernadete Lino,
Bom dia.
Da parte sem verbos nem vírgulas, fico feli que tenha gostado. Não é fácil esse tipo de malabarismo com palavras, mas gosto de cetos desafios na seará da escrita. Já fiz isso com alguns sonetos. Quanto ao quase imobilismo de Jaime Peçanha, tenhamos um pouco mais de paciência. De fato, amiga, ele tem se mostrado muito mais apto às ruminações que às ações. Mas não se engane: muitas reviravoltas ainda vêm por aí. Deixe estar.
Conto com sua audiência no próximo capítulo.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.
Querido Marcos,
Grande façanha este capítulo sem verbos nem vírgulas. Esmerado artista da palavra escrita. A ti parabéns! Hoje e sempre!
Sua admiradora de longas datas
Querida Simone Martins,
Bom dia.
Você, desde aqueles bons tempos enquanto minha professora de língua portuguesa e literatura, continua uma grande inspiração. Muito obrigado pelo carinho e estímulo de sempre. Forte abraço e uma ótima semana para você.
Marcos Ferreira.
Para os simples mortais escrever é muito difícil. Escrever como foi apresentado esse capítulo é uma obra de arte,privilégios das mentes brilhantes.
Parabéns!
Meu caro Raimundo Gilmar,
Bom dia.
Você, ao reconhecer o desafio e complexidade de produzir um capítulo inteiro sem verbos nem vírgulas, mais do que demonstra a sua sensibilidde diante do fazer literário, das suas minúcias e especificidades. Muito grato por sua leitura e depoimento no decorrer destes domingo em que venho publicando este romance folhetim totalmente imprevisível, pois cada capítulo é escrito no curso da semana. Como diria o padeiro, é um pão bem quentinho. Forte abraço e até domingo.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.
Boa noite, nobre escritor!
“Sem Verbos Nem Vírgulas”, um texto rico em detalhes, numa bela escrita. Um homem, sua solidão e a arte do encantamento no uso das palavras. Parabéns, Marcos Ferreira! Abraços aqui das bandas do Norte!
Cara Rizeuda da Silva,
Bom dia.
Você, ao contrários de muitos que ignoram, possui a sensibilidade e a dimensão de uma proposta como esta, que vem a ser um pequeno presente ao leitor de um modo geral: um capítulo de um romance totalmente sem verbos nem vírgulas. Ao contrário de muitos, portantos, não deixou isso passar de maneira despercebida ou menosprezada. Muito obrigado pelo carinho e atenção de sempre. Forte abraço e uma ótima semana.
Marcos Ferreira.
Acho que a grande sacada é refletir e fazer do pensar um capítulo à parte. Particularmente, gosto de texto que nos remete para suas reminiscências. Aqui, com verbos e vírgulas.
Prezado Raí Lopes,
Bom dia.
Você, mais uma vez, observou um detalhe pertinente: parece mesmo que cada capítulo meio que tem autonomia própria, fato este que ora vem a me recordar a proposta de um livro de contos: os contos de Jaime Peçanha, com as suas cismas, ruminações e reminiscências. Aqui, por mero preciosimo do narrador, ofereço um texto sem verbos nem vírgulas. Um forte abraço e uma ótima semana para você.
Marcos Ferreira.
Marcos Ferreira sempre nos surpreende com a sua pena mágica.
É vida em celulose. É mestria mesmo! Um solitário das letras que empunha a bandeira do bem fazer literário. Um zeloso no uso do vernáculo pátria-mãe. Não é de bom tamanho o seu texto enxuto e prolixo acerca de se escrever sem verbos e sem vírgula… é para os grandes de intelectualidade e os humildes do ato de pensar e agir.
Caro poeta Francisco Nolasco,
Saudações.
Mais uma vez, amigo, com sua sensibilidade e bom domínio das palavras, posso dizer que ganhei o meu dia com esse seu belo e sincero depoimento. Muitíssimo obrigado. Uma ótima semana para você e até domingo.
Cordialmente,
Marcos Ferreira.