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domingo - 10/07/2022 - 04:24h

A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 8

Em maus lençóis

Por Marcos Ferreira

Nariz e supercílio ensanguentados, pescoço preso por um mata-leão, Jaime Peçanha tinha dificuldade de respirar. A vista de um dos olhos também estava comprometida por um soco e ele não fazia ideia de onde estariam os seus óculos. Os três homens que o dominaram na ruazinha ao lado da Biblioteca Municipal de Mondrongo, todos encapuzados, eram corpulentos, vestiam roupas pretas; e Jaime logo percebeu que eles não estavam ali para roubar-lhe nada, mas tão só para espancá-lo e ameaçá-lo. Entre as palavras hostis, ainda que de maneira vaga, os tipos fizeram referência ao suposto dossiê que o escritor estaria elaborando contra o prefeito Wallace Batista.

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— Olha só, rapazinho! — disse um dos sujeitos que estavam diante do literato, enquanto o que dava o mata-leão pareceu afrouxar um pouco o golpe. — Tome cuidado com essas coisas que você vem escrevendo contra pessoas de bem desta cidade. Estamos de olho em você faz tempo e não vamos deixar barato se você se meter a besta e publicar uma linha sequer dessas páginas. Estará cavando sua própria cova, pode ficar certo disso. Entenda que está mexendo com gente muito errada.

— Não estou escrevendo material nenhum — balbuciou Jaime tentando afrouxar os braços fortes do agressor. — Sou apenas um jornalista de cultura e homem de letras. O que eu faço, além do jornalismo, é escrever histórias puramente ficcionais. Nada a ver com personagens e acontecimentos do mundo real.

Uma dorzinha de cabeça o retirara mais cedo do evento. Eram então cerca de oito e meia da noite. Ele seguira pela rua totalmente erma e mal-iluminada. Aquele estreito pedaço da Travessa César Mendes inspirava certo receio e era por demais propício para tal abordagem truculenta. Sim, escolhera pessimamente o caminho ao deixar o coquetel de lançamento do livro de crônicas do amigo e advogado Luciano Aires. O texto impresso na segunda orelha fora escrito por Jaime. O seu exemplar de Caixa-pregos, com gentil dedicatória, devia estar por ali em algum ponto do pavimento de paralelepípedos umedecidos, pois havia pouco caíra uma rápida garoa.

— Nem no jornal eu continuo. Fui demitido há duas semanas. Não publiquei nada nesses últimos dias — alegou a vítima. — Já falei que não possuo dossiê nenhum contra ninguém, se é por causa disso que estão aqui.

— Ah, não brinca! — desta vez falou em tom zombeteiro o cara que aplicava o mata-leão. — Temos notícias de que você diz o contrário onde chega. Vem dando muito com a língua nos dentes, escritorzinho, divulgando essa sua lorota pelos quatro cantos da cidade. Começou na redação da Tribuna Mondronguense, passando às livrarias e sebos. Acho que mesmo no Cemitério São Sebastião o senhor anda sussurrando que vai destruir metade de Mondrongo com um livro bombástico contra políticos honestos, que trabalham por melhorias para o nosso município. Temos olhos e ouvidos em toda parte. O senhor está redondamente enganado se imagina o contrário.

De repente o terceiro sujeito, de porte alto e menos corpulento que os outros, sacou uma pistola e encostou o cano contra o rosto de Jaime:

— Abre essa boca! — ordenou todo furioso.

— Isso não é necessário! — alegou Jaime.

— Já mandei abrir! Ou atiro no seu joelho!

Em seguida o cara enfiou parte do cano da arma na boca do escritor e jornalista. Olhou para um lado e outro e disse que só não matava Jaime naquele instante porque recebera ordens para tão somente transmitir um recado. E o recado era que o escritor em maus lençóis desse um basta, um fim no suposto dossiê e parasse de publicar “acusações levianas na mídia contra os políticos de bem do município, homens que lutaram bravamente ao lado do povo para livrar a cidade da velha oligarquia dos caciques políticos, que dominaram Mondrongo ao longo de várias décadas”.

Quando o cano da arma lhe foi retirado da boca, Jaime lhes respondeu aliviado, embora ainda tivesse o pescoço na chave de braço:

— Podem ficar certos. Vou me comportar.

— É bom realmente que se comporte. Para o seu próprio bem — disse o encapuzado ocultando a pistola no cós, por sob a camisa.

O sujeito que aplicava o mata-leão libertou o pescoço de Jaime. Mas quando o escritor pensou que iriam deixá-lo em paz e ir embora, eis que lhes foram desferidos um forte soco no estômago e uma joelhada no rosto. Ele tombou sobre o paralelepípedo e daí em diante o cobriram com uma breve sessão de pontapés. Só então os três entraram numa picape que estava ali perto e foram embora calmamente. Jaime ainda ficou no chão por um curto espaço de tempo, porém conseguiu se erguer e localizar os óculos de grau, que tinha uma das lentes quebrada. Ele desamassou a armação e a colocou no rosto machucado. Também conseguiu localizar o exemplar de Caixa-pregos, o livro de crônicas com dedicatória do amigo cronista Luciano Aires.

— Filhos da puta! — rugiu entredentes. — Estão muito enganados se pensam que eu vou enfiar o rabo entre as pernas ou destruir tudo o que já tenho escrito e guardado contra aquele prefeito farsante. Não mais soltarei nada nos periódicos, contudo vou trabalhar na surdina. A hora de Wallace Batista vai chegar.

Na esquina do Banco do Brasil, quando subiu a calçada da Praça Vigário Antônio Joaquim, tendo o corpo cheio de dores, enxergando mal por um olho e com a cara e roupa ensanguentadas, Jaime acenou a um mototáxi que ia passando e o homem parou. O condutor não conseguiu esconder o espanto ao vê-lo naquelas condições e indagou acerca do que havia acontecido e se ele queria ir ao hospital. Foi-lhe respondido que aquilo fora a ação de três assaltantes e que ele, Jaime, iria diretamente para casa, e não para um pronto-socorro, como o mototaxista lhe havia recomendado.

Chegando em sua residência no Conjunto Walfredo Gurgel, ainda com o rosto banhado de sangue, Jaime causou um grande choque na esposa Laura Gondim e no amigo jornalista Reginaldo Marinho, que desta vez não estavam na cama, apenas conversavam à mesa da cozinha coincidentemente sobre os riscos da postura de Jaime frente ao prefeito de Mondrongo e quanto a eventuais consequências.

— Pelo amor de Deus, querido! — espantou-se Laura. — O que aconteceu? Quem lhe fez essa maldade? Jesus! Olha só isso, Reginaldo.

— Acalme-se, Laura, ele vai nos contar tudo.

— Ora! Foram homens do prefeito Wallace!

Enfermeira ágil e experiente, Laura ordenou:

— Leve ele para a mesa, Reginaldo. Vou pegar a caixa dos remédios e fazer os primeiros curativos. Depois vamos ao pronto-socorro.

— Não vou a lugar nenhum — recusou Jaime.

Laura cuidou dele, deu-lhe dois pontos no supercílio direito, ministrou anti-inflamatórios contra os vários hematomas, especialmente o do nariz, que não quebrou por sorte, e Jaime passou três dias sem botar a cara fora. Depois procurou um oftalmologista para receitar-lhe a aquisição de outro par de óculos.

— Isso não vai ficar assim — disse consigo próprio o escritor, mirando-se no espelho afixado sobre a cuba da lavanderia de roupas, no terraço, na parte posterior da residência. “A cidade que nunca leu um livro” está se delineando na minha cabeça de maneira bem clara. Deixe estar, prefeitinho pilantra!

Cogitou fazer a barba, porém desistiu; o rosto ainda muito machucado. Ali diante do espelho, sozinho, as suas mãos tremiam de raiva.

No dia seguinte ao ataque, naturalmente transtornado, Jaime cogito procurar o amigo advogado Luciano Aires e registrar o caso na delegacia. Pensou, além disso, em apontar o prefeito Wallace Bezerra como mandante do espancamento. Deu-se conta, entretanto, de que não tinha como provar tal acusação contra aquele sujeitinho influente e poderoso. Ao menos por enquanto era inútil acusá-lo de quaisquer crimes. Lançou água nos olhos e se pôs a refletir com os próprios botões.

De todo modo, por necessidade de desabafo, o escritor decidiu procurar Luciano e lhe expôs o que se passou quando deixou o lançamento do Caixa-pregos àquela noite, na travessa da Biblioteca Municipal de Mondrongo. Aires, estarrecido, insistiu que sim, que era preciso registrar o boletim de ocorrência. Mas, sem poder usufruir do prazer de apontar o prefeito como mandante, Jaime não quis.

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Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 7.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES diz:

    Por enquanto o pobre jornalista só leva a pior. Ô sina! Deus queira que essas “possíveis” provas contra os poderosos, em especial, contra o prefeito da cidade, sejam consistentes e, de fato, consigam incriminá-lo. Senão, tudo vai acabar em pizza, assim como o trisal em que ele vive. Vamos para a próxima página…

  2. Raimundo Gilmar da Silva Ferreira (Gilmar) diz:

    Jornalista ser agredido é algo frequente por algumas autoridades governamentais. Alguns ofendem a luz do dia a honra do jornalistas, principalmente das mulheres. Do forma que o personagem da cidade de Mondrongo não é uma exceção à regra. Claro que nunca aconteceria numa cidade civilizada como Mossoró. Mas em Parintins/AM o prefeito mandou dar uma surra num jornalista que fazia oposição ao seu (des) governo. Coisas daquele povo do Norte.

  3. Bernadete Lino / Caruaru - PE diz:

    A linguagem manifestada através da violência é algo muito covarde: quando faltam argumentos, são usados os recados brutais. E, quando envolve poder, sai da frente! Essa semana aconteceu um incidente comigo que me deixou reflexiva: toquei sem querer, de leve, num retrovisor de um carro estacionado. De repente um carro passa rápido por mim, parecendo em perseguição a algo, e atravessou a via à minha frente, freando em posição transversal, me impedindo prosseguir. Fiquei assustada quando um cara alto desce do carro, deixando a porta do carro aberto e veio em minha direção. Baixei o vidro do carro, do meu lado, e ele foi logo perguntando, com cara de poucos amigos: a senhora viu que tocou o retrovisor do meu carro? Eu respondi, não vi, mas percebi que meu retrovisor tinha tocado algo, Daí ele disse: vou olhar meu retrovisor. Voltou meio sem graça e disse: realmente não danificou! Vou olhar o retrovisor do seu carro(do lado direito) e voltou: também não danificou. Eu falei meio assustada: me desculpe por alguma coisa; foi sem querer. Ele rio e foi embora e eu fiquei me sentindo a pessoa mais agredida. O pior: parece que a situação me paralisou. Na hora que ele desceu e veio na minha direção eu pensei: o pior que pode acontecer é eu ter machucado o carro dele e vou pagar. Daí me equilibrei. Mas ele foi agressivo! Deus tudo certo ao final mas serviu para reflexão. A agressividade está presente nas nossas vidas. De algum modo em algum momento seremos vítimas! Que linguagem pobre e intolerante!

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