Psicose do chumbo e da pólvora
Por Marcos Ferreira
Durante dois ou três minutos permaneceu imóvel, sentado sobre o colchão, as pernas trançadas, ar pensativo, contudo exibindo no rosto ainda por barbear traços de contrariedade. Acordara de súbito, o sono importunado pela memória recente dos homens que o agrediram naquela noite quando ele deixou o lançamento do livro do amigo advogado Luciano Aires, na Biblioteca Municipal de Mondrongo.
O trauma da violência física e psicológica, o cano da pistola em sua boca, os socos e pontapés, tudo isso machucava, torturava por demais o seu espírito, fazia-o se sentir impotente e não menos revoltado. Vingar-se, àquela altura, era o seu único desejo.
Na penumbra, contando com a meia-luz provinda do banheiro, pegou o telefone sobre o criado-mudo e verificou as horas: quatro e dezessete da madrugada. Sabia que depois daquilo, do pesadelo com os seus agressores, não mais conseguiria voltar a dormir. Laura estava de plantão de doze horas no Hospital Regional Tancredo Neves e só chegaria em casa por volta das sete e meia daquela manhã.
Sem a intenção de voltar a dormir, recolocou a cabeça no travesseiro e se deixou quieto, curvado sobre a cama, os olhos bem abertos, a refletir sobre a sua atual e incômoda condição de desempregado. Pensou também no dinheiro que recebera de rescisão trabalhista da Tribuna Mondronguense e começou a avaliar a possibilidade de retirar uma parte para adquirir uma arma de fogo: revólver ou pistola.
Havia servido no Exército no período de serviço militar e possuía certo traquejo com essas coisas. Noutra época, estando com vinte e cinco anos de idade, fizera curso de vigilante e chegou a trabalhar durante um tempo numa empresa seguradora de numerários.
Recordou-se, além disso, que foi forçado a deixar o ramo de segurança armada devido a problemas psíquicos, à instabilidade emocional que se lhe introduziu na mente, atacando-lhe os nervos, o autocontrole. Até culminar com o dia em que, numa agência bancária, confundiu um jovem médico negro com um pseudoassaltante, botou o revólver na cara do rapaz e o mandou deitar no chão, esbravejando.
Após uma semana de afastamento e reavaliação com supervisores da seguradora, recebeu instruções de consultar um médico psiquiatra. Então o profissional o classificou com o diagnóstico de transtorno bipolar. Jaime Peçanha entrou de benefício pelo serviço de previdência social e daí por diante nunca mais voltou a trabalhar na área nem pegar em armas. Não muito depois, graças ao seu antigo vínculo com a literatura e a escrita, conseguiu o emprego como revisor de textos na centenária Tribuna Mondronguense, onde ascendeu a copidesque, repórter e editor de cultura.
Agora, porém, a Tribuna é passado. Ele sabe que está em palpos de aranha, que a grana da rescisão não vai durar muito e que os biscates que surgirem da revisão de livros de autores locais não serão o suficiente para sustentá-lo por tempo indeterminado. Sente-se furioso, possesso, pois lembra da animosidade para com ele nutrida pelo diretor administrativo Alberto Cardoso, razão pela qual foi demitido.
Como se não bastasse, tem conhecimento de que sua cabeça foi pedida pelo prefeito Wallace Batista. Por essas e por outras, a ideia da aquisição da arma vai se fixando na mente de Jaime. E não apenas por uma questão de autodefesa, mas também por ira.
Ali recurvo sobre a cama, com uma lateral da face no travesseiro, imagina-se armado até os dentes invadindo os gabinetes do prefeito e do diretor administrativo para crivar seus desafetos de balas. Antes de executá-los, no entanto, ele primeiramente os alvejaria nas pernas e braços, romperia-lhes os joelhos com vários disparos. Não os extinguiria de imediato. Concederia a si mesmo o mórbido, o doentio prazer de vê-los suplicar, sofrer, estertorar, para só depois encher-lhes a cara de chumbo. A seguir não se importaria de meter uma bala na própria cabeça.
— Filhos da puta! — exclama baixinho.
Tais lucubrações, contudo, findam por agastá-lo. Jaime emerge num autoexame e pondera que seu acerto de contas através da psicose do chumbo e da pólvora é impraticável, impossível de ser levado a efeito. Ainda em meio à penumbra, solitário, volta a sentar-se na cama, coça os olhos e abana a cabeça negativamente. Conclui, então, que está desperdiçando energia, queimando neurônios à toa.
Seus pensamentos vão desanuviando, o semblante assume um ar sereno. A psicose do chumbo e da pólvora se foi. Ele entrelaça os dedos, move discretamente os lábios, como se fosse dizer alguma coisa, mas não emite nenhuma palavra. Sua arma, o instrumento com que pretende ajustar contas com o prefeito e o diretor administrativo da Tribuna Mondronguense, volta a ser a literatura, o livro-dossiê (meio romance e meio reportagem) em que vem trabalhando há oito meses.
Recorda-se, entrementes, que precisa convencer o senhor Pablo Licurgo, empresário do ramo de construção civil, arruinado graças às tramoias contratuais da Secretaria de Urbanismo e Obras de Mondrongo, sob ingerência do prefeito. Sim, é necessário que o senhor Licurgo respalde as provas coligidas por Jaime ao longo de quase três dúzias de cópias de uma documentação fraudulenta, com serviços superfaturados, aditivos fantasiosos e calote em fornecedores e certos prestadores de serviços, como se deu com o senhor Pablo Licurgo quando este se negou a fazer parte do esquema criminoso. No fim das contas o homem terminou falido e endividado.
Jaime pulou da cama como se houvesse recebido uma injeção de ânimo. Foi ao banheiro, urinou, lavou o rosto demoradamente, fez as suas abluções, penteou mais ou menos o cabelo, vestiu uma bermuda jeans e uma camiseta velha de algodão e seguiu para a cozinha. Então preparou a cafeteira e filtrou meia jarra de café puro. Serviu-se da rubiácea e bebeu seu ópio negro com vagar, pensativo.
Daí a pouco ligou o notebook sobre a mesa da cozinha e voltou a trabalhar no dossiê a que possivelmente dará o título de “A cidade que nunca leu um livro”. Quando Laura chegou, ele havia escrito quatro páginas e bebido o café quase todo. Ela disse que estava exausta, morta de sono, e foi para o quarto.
Jaime continuou entretido com a fabulação. Daí a cerca de meia hora, enquanto sorvia o restinho do café, colocava o ponto final em mais um capítulo do romance. Nesse instante pensou no quanto seria interessante se pudesse publicar aquelas páginas num jornal de Mondrongo, à maneira de folhetim. Tolice. Isso era praticamente suicídio. A truculência do prefeito Wallace não conhecia limites.
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— E se o prefeito não tiver nada a ver com o peixe? — ponderara Laura no dia seguintes às agressões. — Já parou para pensar nessa possibilidade alguma vez? Quem sabe você possui outros desafetos em Mondrongo e nem ao menos tem conhecimento disso. Até hoje, convenhamos, ninguém conhece o prefeito por essa característica. Percebo você obcecado; botou na sua cabeça que Wallace Batista é responsável por essa violência toda e talvez ele não tenha culpa no cartório.
— Como não?! — protestou. — Aquele sonso é um lobo em pele de cordeiro. Não existe mais ninguém que tenha nada contra mim; exceto ele e o safado do Alberto Cardoso. Ambos se vendem por cidadãos de bem nas colunas sociais, obedientes a Deus. Frequentam a mesma igreja protestante. Gostam de sentar nos primeiros bancos, fecham os olhos durante longos minutos e fingem estar em sintonia com Jesus. Já presenciei tal teatro uma vez, em companhia do seu primo Reginaldo.
— Hum. Estranho! — observou Laura enquanto colocava a louça do café na pia da cozinha. — Eu não sabia que você e Reginaldo frequentavam igreja alguma. Até agora eu os tinha como dois agnósticos. Não estou certa?
— Sim, está. Isso foi apenas uma noite. Recebemos o convite de uma colega da Redação, a Margareth, e aproveitamos para investigar.
— Bisbilhotar, você quer dizer. Muito bonito!
— Fomos convidados, Laura. Porém não nego que nos aproveitamos da situação para conferir o engodo do prefeitinho e de Alberto Cardoso. O povo de Mondrongo, e não é pouca gente, está muito enganado com esse sujeito.
— As pessoas gostam dele, Jaime. Admita.
— Eu sei disso. Porém tal simpatia está essencialmente ligada ao fato de ele (eu goste ou não) representar a ruptura, a libertação de Mondrongo da antiga oligarquia dos Albuquerque Azevedo. Eis o único mérito desse prefeito farsante. Afora isto, Laura, ele não passa disso: um farsante. É tão falso e corrupto quanto aqueles contra os quais apontou sujeiras, falcatruas, podres, mandos e desmandos.
— Está bem. Termine o seu café. Preciso ver seus curativos, pois tenho outros afazeres para breve. Além do hospital mais tarde.
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A casa estava silenciosa. Laura, exausta do longo plantão, fora tomar um banho e naquele instante possivelmente já havia dormido. Jaime se pôs a revisar o capítulo que dera por encerrado. Compreendia, portanto, que era preciso aguardar a ocasião certa. Aquilo não podia ser exposto como folhetim, sob determinada periodicidade, e sim de uma só vez, em formato de livro. É o que ele faria.
Como uma nuvem negra, porém, a psicose do chumbo e da pólvora ronda a sua cabeça, seu pensamento, a sua mente enfermiça. Tentará se vingar do espancamento e de outras coisas por meio da literatura, mas, lá no fundo, ele não descarta um ato camicase, tresloucado, se nada der certo através das palavras.
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Marcos Ferreira é escritor
Retalhos de uma realidade vivida por muitos neste nosso Brasil tão rico materialmente e mendigo de sentimentos humanitários.
Você amigo Marcos, a cada domingo nós deixa perplexos diante sua capacidade realista de nos mostrar os dramas da vida através da inteligência que Deus te deu tão generosamente. PARABÉNS !!!
E muito bem.narrado isso e a verdadeira realidade de tantas cidades do nosso pais que Deus meu grande irmão venha a cada dia se em sua vida e sempre te dando grandes experiências e expirações pra que você continue sendo sempre um grande exemplo de se humano que você sempre foi para todas as pessoas que conhecem verdadeiramente o valor que você tem. Deus abençoe sempre sua vida
Material não há lhe de faltar, acredito. A cada semana, parece-me, essa cidade dá o suficiente para ser introduzido nos textos já existentes. Ainda bem que o romance se torna, com isso, bem dinâmico, atualizado… Parabéns, Marcos.
Caro Marcos,
Leitura que prende a atenção por ser muito bem narrada e por constituir cenas do nosso cotidiano.
Vejamos onde chegará a saga de Jaime!
Abraço fraterno!