domingo - 04/10/2020 - 10:30h

A escuridão da saúde mental; retrocesso ou luz

Por Roncalli Guimarães

A data de 16 de outubro de 2001 foi um marco para saúde mental no Brasil. A data representa a promulgação da lei federal número 12.060 que marca a transição do modelo assistencial hospitalocêntrico para um modelo de saúde comunitária.

A lei não surgiu por acaso. Ela foi fruto de um longo processo social, do avanço da psiquiatria e do evolutivo processo de compartilhamento de conhecimentos com outras ciências tais como a psicologia, terapia ocupacional e serviço social, promovendo uma rica abordagem multiprofissional e transformadora em torno da saúde mental.Ao traçar um paralelo com a saúde mental de Mossoró, onde estou inserido como psiquiatra há 6 anos, observo infelizmente um cenário desolador, uma via de contramão ao modelo legal de assistência à saúde mental, causando um prejuízo humano incalculável.

As falhas são inúmeras e isso não é de hoje, é de sempre. É regra, não exceção.

A lógica da assistência a Saúde mental é funcionar como uma rede de assistência, mas aqui ela funciona como uma porta giratória. Eu explico por que.

As unidades do Centro de Atencão Psicosocial (CAPS) são os equipamentos de acolhimento dos pacientes graves, sendo atendidas as urgências ou os pacientes intensivos ou não intensivos. Entretanto, em Mossoró eles estão sucateados e superlotados com dificuldade para acolhimento de primeira vez.

Com isso, todo mundo sabe: doente mental sem tratamento adequado corre o risco de surtar, e, surtando,  o fluxo é para apenas duas unidades onde o correto seria permanecer por 72 horas à estabilização (esse tempo de 72 horas é baseado em estudo os quais comprovaram que esse é o tempo necessário para a maioria dos casos dessa natureza). Porém, muitas vezes esse tempo é estendido.

Aguarda-se vaga no hospital psiquiátrico. Esse é outro equipamento da rede de saúde mental, periférico e necessário apenas nos casos de difícil controle, que também está sucateado.

O egresso do hospital tem alta e na maioria das vezes não tem assistência, pois além das lotações dos Caps, não contamos com Caps III, este que seria mais um equipamento para os casos mais complexos e atenderiam os pacientes diuturnamente, exatamente os pacientes que seriam para hospital psiquiátrico.

Confesso minha desolação. Minha manifestação nesse espaço cedido pelo Blog Carlos Santos, como foro de debates, onde eu e outros colaboradores e articulistas têm plena liberdade à escolha do tema e manifestação de ideias, temas e exposição de informações,

Quem tem um parente com doença mental e precisa de cuidados, com certeza sabe que eu não exagero, não estou mentindo nem sendo inconsequente. Falo como profissional, como ser humano, como cidadão preocupado e desejoso de que o serviço público sirva adequadamente àqueles que mais precisam, ainda mais em situação tão vulnerável (paciente e família), o comum na nossa psiquiatria local.

Vai compreender o que narrei e vai entender o que eu sinto. Infelizmente, não acabam aqui o desabafo e a luta para mudar isso, para envolvermos a sociedade, os gestores públicos e profissionais do setor, que possam contribuir à mudança desse quadro.

Recentemente, destaco, fui informado que existe projeto em andamento para construção de um hospital psiquiátrico. Sim , isso mesmo, um hospital psiquiátrico para confinar doentes mentais numa cidade onde não existe hospital municipal para atender à demanda geral. É o mesmo município onde o déficit de leitos é gritante para qualquer especialidade clínica. Inclusive, para o próprio doente mental, que também precisa do leito clínico, pois vez por outra tem outras patologias como qualquer indivíduo.

Construir um hospital psiquiátrico sem antes investir nos equipamentos essenciais da rede, é um retrocesso. Os princípios da rede de saúde mental são fundamentados na equidade para corrigir as iniquidades, efetividade, continuidade e abrangência do cuidado e não em ações que incentivem ou reforcem o isolamento social como política pública.

A data de 16 de outubro de 2001, já assinalei no preâmbulo desse texto, é um marco, um ponto de partida, a mudança de rumo à melhoria dos cuidados com pessoas queridas, familiares, amigos, gente que precisa não apenas de remédio e médicos, mas de cuidados especiais como ser humano.

Há uma necessidade urgente de reformulação desse modelo assistencial que deve ser baseado na apreensão de novos conhecimentos, que sejam atualizados e condizentes com as reais necessidades da população. Espero que não sejam conduzidos por interesses de grupos, lobbys profissionais ou qualquer outra razão não cientificista.

Trabalho, peço e manifesto minha opinião, porque sei que outros não o fazem até por temor, mesmo dividindo comigo apreensões e conceitos similares. Precisamos respeitar o democrático trabalho em equipe, esse baseado no respeito às diferenças e responsabilidades de cada um. Temos que lutar pela eficácia da assistência.

Com os que têm fé, divido a esperança de que na proximidade dos festejos da querida padroeira Santa Luzia, a Luzia de Siracusa, ela interceda e coloque luz nos olhos e na consciência de quem usa a caneta, com a promessa (e dever) de fazer o melhor por Mossoró. O melhor não pode permitir o retrocesso, o esquecimento e o desleixo em relação àquelas pessoas que perderam o seu norte. A sua razão.

É tarefa nossa guiá-los, acolhe-los, tratá-los, amá-los.

Roncalli Guimarães é psiquiatra

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO diz:

    Isso mesmo Dr . Roncalli Guimarães, constata-se, infelizmente no País de Mossoró, QUE OS PODRES CONSTITUÍDOS DA NOSSA CIDADE, SOBRETUDO O EXECUTIVO, tende a repetir o mesmo diapasão daqueles que a nível federal, intentam nos levar à idade média tanto nos costumes quanto na economia, e, cmo não poderia deixar de ser, transformar a psiquiatria e seus tratamentos num mero modelo sistemático de internação, ou seja, o velho e atávico lema de ganhar dinheiro à qualquer preço, esquecendo dos pacientes em sua essência humano/iluminista.

    No caso, mesmo não sendo médico, entendo que qualquer pessoa como um mínimo de intuição e sensibilidade, sabe, em pleno século XXI, não podemos e não devemos permitir a volta da instituição asilar, como está do prenuncio da construção de um novo Hospital Psiquiátrico em nossa cidade, que não esqueçamos, atende um sem número de cidades do Alto Oeste Potiguar de outras regiões do nosso estado.

    Felizmente, ainda não está proibido sonhar.Assim, torçamos pra que a sociedade e os profissionais que atuam na área,e, sobretudo o eleitorado do País de Mossoró, acordem na hora do sufrágio universal, levando à Câmara Municipal, edis que tenham a minima capacidade de pensar, assimilar, formular e propor novas agendas, inclusive, no campo da reestruturação do tratamento aos doentes mentais., sob o signo do humanismo e da não sistemática e infame internação hospitalar, que infelizmente tem prevalecido no País de Mossoró.

    Um baraço
    FRANSUÊLDO VIEIRA DE ARAÚJO.
    OAB/RN. 7318.

  2. Odemirton Filho diz:

    Muito bem, amigo. A Mossoró real é bem diferente daquela que
    apregoam.

  3. Evanice Fernandesc diz:

    Parabéns dr. RONCALLI, grande profissional, concordo com seu posicionamento, precisamos defender os Caps, o modelo e muito bom, faltou investimento . O caps do Alto da Conceição tem uma equipe de profissionais maravilhosa, que faz um esforço enorme para acolher seus pacientes, infelizmente as promessas que vieram de reforma, estão paradas.os gestores não dão a devida atenção para cumprir a lei. Lamentável. Sofre os pacientes, familia e os profissionais. Obrigada pelo apoio, vamos nos unir e lutar.

  4. Q1naide maria rosado de souza diz:

    Dr. Roncalli. Seu Artigo, verdadeiro, que expõe a realidade do paciente psiquiátrico, foi comovente. Desolada também, reforço suas sábias palavras. Precisamos de união para abordagem do problema para que, mesmo os que não conheçam ou não tenham, na família, portador de mal da ordem da psiquiatria, lutemos por um atendimento digno e eficaz aos que necessitem de avaliação, tratamento e ajuda. Salve, Dr. Roncalli.

  5. Suzy diz:

    Muito fácil falar. Não é todo mundo q tem condição de cuidar desses pacientes em casa. Sem falar q é sempre mulher quem cuida de criança idoso doente

  6. Q1naide maria rosado de souza diz:

    Suzy, boa noite. Você leu com atenção as palavras do Dr.Roncalli? Ele distingue bem as etapas do tratamento. O doente que vem para casa, já estaria avaliado e com medicação própria. Lançar esse paciente num Hospital Psiquiátrico, nos moldes dos que conhecemos é quase um abandono. Abrangência do tratamento sim, não ao isolamento.

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