É claro que ele não era amigo da onça só por ter mudado de lado. Aconteceu de ela descobrir, meio ao acaso, que seu amigo de décadas lhe endereçava certa cota de paixão.
Por ela, aquela criatura que sempre abusou do abraço largo dele, das risadas largas de ambos, bem soltos e à vontade um com o outro, dos beijos cálidos no cangote e dos amassos fora de hora nos dias em que ela estava particularmente ansiosa por um ombro. Melhor se fosse amigo, é claro. Ele tinha uma estrutura já bem estabelecida, embora cansado, alquebrado e desesperançado pela ausência de afeto. E ela já tinha saltado várias dessas estruturas e não se dava por satisfeita. Queria mais.
Então, a marcha do destino se interpôs entre eles, como diria madame Natasha enquanto distribuÃa as cartas reveladoras. Foi em um dia especialmente estrelado que ele a acompanhou a um convescote na casa de familiares dela. Entre uma insanidade e outra que costumavam dizer um ao outro, ele finalmente alcançou a boca daquela querida pessoa tão próxima, tão solta, tão entregue, ela que estava em uma noite particularmente inspirada para os rompantes das paixões.
O que é um beijo senão um encontro de lábios, cavidades bucais, palato, dentes e lÃngua? Como alguém dada a terminologias cientÃficas, ela logo tratou de relativizar. Agora conheço também a boca dele, pensou tecnicamente, já refeita dos arroubos.
‘Tinha pavor, pobrezinha, de perder aquele ombro, aquele aconchego, aquele riso cristalino ecoando nos seus ouvidos, aquela nicotina mutuamente aspirada. Tão à vontade na condição de fumantes passivos! E os termos, os achados, os achaques, as ironias pérfidas.
Caramba, quanta coisa em comum, incluindo a faixa etária, ambos já calejados e com quase cinco décadas nas costas – caso dela, porque ele já caminhava célere para obter o benefÃcio do passe livre facultado aos idosos.
Com a saliva dele pelos cantos mais recôndidos de sua arcada dentária, ela perdeu o sono e dedicou-se à escrita de uma missiva que primava pelo tom confessional. Até ontem você era isso e aquilo, e hoje o tempo se esvai por entre os nossos dedos. Em trecho especialmente inspirado, choramingou: ‘Você foi aquele que me recebeu de braços abertos quando eu retornei, foi quem me deu na boca a cafeÃna que eu tanto buscava’.
Depois, revendo o texto, percebeu um tom francamente sensual naquela história de receber um néctar ao pé da boca. Nessa altura, a contenção de antes tinha virado pó. Adentravam as noites pelos cantos da cidade, em proximidade mais que reveladora, se não houvesse ainda um espoucar contÃnuo de beijaços.
Resistindo aos avanços do amigo querido para que protagonizassem cenas tórridas na intimidade, ela condicionou tudo a um escape e o presenteou com um plano estratégico. Colocou-se no final de uma senda, com um pote de mel na ponta extrema do arco-Ãris. Será que ele engendraria meios de alcançá-lo?
Stella Galvão é jornalista, professora de Comunicação Social e escritora
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