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Depoimento – VII

Por Ayala Gurgel

Imagem gerada com Inteligência Artificial para o BCS

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B.O: N° 08-6492/2020

NATUREZA: COMUNICAÇÃO DE ANIMAL DESAPARECIDO

DATA DA COMUNICAÇÃO: 06 DE JUNHO DE 2020

COMUNICANTE: OLEGÁRIO DE MARIA ANUNCIADA

O senhor Olegário de Maria Anunciada, vulgo padre Olegário, cinquenta anos, celibatário, sacerdote, formado em filosofia e teologia, pároco e morador desta freguesia, compareceu a esta delegacia para comunicar o sumiço de animal equino de propriedade paroquial e solicitar toda a ajuda policial e civil possível para captura ou obtenção de informações sobre o seu paradeiro. O depoente, perante mim, escrivã de polícia, comunicou que se deslocou nesta quarta-feira passada ao sítio de nome Oiteiro, propriedade do popular conhecido como seu Malaquias, a pedido do mesmo, para averiguar fato estranho ou provável atuação do sobrenatural e dar bênção no local. Disse que tinha conhecimento das histórias que o povo conta sobre a existência de uma maldição no local e acrescentou que a ciência dessas histórias nunca foi motivo para dar ou tirar crédito delas. Como São Tomé, gosta de acreditar depois de provar; que é assim que a Igreja ensina e os tempos modernos exigem. Explicou que a história da maldição começou assim que o coronel Manoel Bento, depois de ter morado muitos anos naquele logradouro, decidiu deixar o sítio. Uma parte do povo conta que ele decidiu sair porque encontrou uma botija no lugar, visto ser essa a regra para quem arranca esse tipo de tesouro: não tapar o buraco, não dar as costas ao sair do lugar e nunca mais voltar. E, completou, se houver algum pedido por parte da alma que revelou a botija, a pessoa fica com a obrigação de cumprir essa parte do acordo. E, disse o depoente, como o coronel não cumpriu com a parte dele, a alma continua lá, perturbando quem põe os pés na casa grande. Indagado, o depoente disse que essas crendices não são de todo contrárias à fé e acha por bem manter a mente aberta, embora não conheça nenhuma pessoa que tenha enriquecido com botija. Que o próprio coronel Manoel Bento já era rico antes dessa história. Que se ele, o padre, fosse uma alma penada nunca escolheria um homem daquela espécie para dar coisa alguma. Que pensa assim, mas acredita que os planos de Deus são sempre um mistério. Interpelado pelo delegado sobre a relevância dessa história para os fatos, pediu que fosse ouvido e depois o agente da lei decidia sobre o que fazer com a história ouvida. O depoente concordou em ser mais objetivo, porém pediu que ficasse também registrada a outra versão, a do povo, que tem outra causa para a origem da maldição, dessa vez, ligada a dona Dotinha, mãe do coronel, e os horrores que ela infligiu aos escravos naquela casa. Disse que, pelo que ouviu o povo contar, foi uma escrava, que tinha sido ama de leite do coronel, que foi escorraçada da casa e jogada no pátio para ser açoitada até à morte; que foi ela que rogou as pragas e amaldiçoou a casa, e que, desde então, ninguém mais consegue viver em paz naquela residência. Que a alma da falecida começou a perturbar o coronel e por isso ele foi embora, para nunca mais voltar, e foi nesse estado de abandono, com a habitação caindo aos pedaços, que o novo proprietário, seu Malaquias, a adquiriu e começou a reformá-la. Que, tão logo começou a reforma, apareceram os problemas. O depoente soube, por meio de populares, que a casa, em suas palavras, “começou a cuspir barro nos moradores”. Que os peões contaram que quem se atrevia a dormir lá, acordava com a rede e a boca cheia de terra. Que era muito barro caindo do teto e das paredes sobre eles. Que ouviu de um peão que um deles, um rapaz muito corajoso, ficou acordado, armado de facão e revólver, para ver o que acontecia, e o que aconteceu foi que ele amanheceu cego, de tanto barro que levou nos olhos. Que não tem mais ninguém querendo trabalhar na reforma da casa, não importa o valor que ofereçam, e, por conta disso, seu Malaquias, corajoso do jeito que é, prometeu passar a noite na casa, nem que fosse sozinho; ele disse que se houvesse algum assombramento, botava pra correr; mas se fosse desse mundo, só um dos dois sairia vivo pra contar a história. Que o proprietário estava mesmo determinado a cumprir com a promessa, e por isso passou cedinho na igreja, confessou os pecados, encomendou o corpo e pediu ao padre para ir no outro dia, o mais cedo que pudesse, fazer a bênção na propriedade ou recolher seus restos mortais. Disse que, como o acesso ao local é difícil, não dá para chegar de carro nem de moto, pegou um cavalo de propriedade da paróquia e se dirigiu ao logradouro, na montaria, como os padres de antigamente. Tão logo chegou ao pátio da casa e passou pelo tronco onde a escrava foi brutalmente espancada até à morte, deu um pé de vento tão forte que o derrubou da montaria e caiu de cara no chão, sem conseguir ver mais nada, pois havia terra saindo de tudo quanto era lugar em sua direção. Não pensou duas vezes e se apegou ao rosário pedindo a proteção da Virgem Maria. Que não sabe onde foi parar o breviário nem o frasco com a água benta, menos ainda a sua montaria. Só deu tempo de se benzer e sair correndo dali, para se esconder atrás de uma moita. Que não sabe notícias de seu Malaquias nem do animal, mas deseja muito saber como ele se encontra e recuperar o cavalo, e espera que os dois estejam bem. Perguntado sobre o que ele acha da maldição, disse que prefere não comentar mais sobre o assunto. Era o que tinha a relatar.

Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental

*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar). Veja abaixo, links para as postagens anteriores:

Leia tambémDepoimento (02/02/2025)

Leia tambémDepoimento II (09/02/2025)

Leia tambémDepoimento III (16/02/2025)

Leia tambémDepoimento IV (23/02/2025)

Leia tambémDepoimento V (02/03/2025)

Leia também: Depoimento VI (09/03/2025)

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Categoria(s): Conto/Romance

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