domingo - 20/04/2025 - 08:36h

Depoimento – XII

Por Ayala Gurgel

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

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B.O: N° 19-1402/2022

NATUREZA: INQUÉRITO INVESTIGATIVO

DATA DA COMUNICAÇÃO: 23 DE MAIO DE 2022

COMUNICANTE: VICTOR RODRIGO DOS RAMOS

O senhor Victor Rodrigo dos Ramos, conhecido popularmente como Neto de dona Zefinha, trinta e oito anos, casado, trabalhador rural e autônomo, residente no Distrito Oiticica, pertencente a esta freguesia, compareceu a esta delegacia para narrar, perante mim, escrivã de polícia, fatos ocorridos naquele distrito dos quais é testemunha. O depoente disse que conhece seu Nanô, como é chamado o senhor Juvenal Olympio de Vaz e Sousa, há mais de vinte anos, desde que começou a trabalhar na residência dele como um faz-tudo e sabe da fama que ele tem na Oiticica de ser considerado o pior velho do mundo. Disse que a fama é justa e, de fato, o velho não saía de casa para nada, nem se dava bem com a vizinhança ou com qualquer outro morador da região. Que as poucas vezes que pôde trocar algumas palavras com ele foram sobre o serviço a ser feito ou o pagamento, mas o trabalho na sua casa foi o suficiente para ficar sabendo que ele nunca se casou e gosta muito de anjos. Que começou a desconfiar desse gosto quando notou que havia para mais de cem peças de anjos na casa, entre quadros e estatuetas. Que há anjos de vários estilos diferentes, desde os gordinhos e bonitos até anjos feios, magrelos, mais puxados para o capeta do que para as coisas de Deus. Que dona Ritinha de Deoclécio falou para ele que se não fossem cinco bocas que tem para alimentar não pisava na casa daquele velho nem para fazer caridade. Ela morria de medo dos anjos mais esquisitos e, às vezes, deixava de limpá-los. Que não tirava a razão dela nem das outras pessoas que não gostam de passar em frente à casa de seu Nanô. Que entende até mesmo as Testemunhas de Jeová, que desistiram de tentar visitá-lo. Que seu Nanô é muito casmurro e ninguém gosta dele, por isso foi um espanto geral quando o povo viu, no Domingo de Ramos, que o velho havia decidido sair de casa e ir à igreja. Disse que ficou pasmo quando viu seu Nanô entrar na igreja com um ramo na mão e depois se dirigir à fila da procissão. Só acreditou no que estava vendo depois de ficar muito tempo olhando. Pensou que pudesse ser uma pessoa muito parecida com o velho ou estivesse vendo assombração. Que teve dúvidas e perguntou a seu Raimundinho, que estava ao seu lado, se era mesmo seu Nanô quem estava ali diante deles, para saber se não era mal-assombro. Que Raimundinho ficou com dúvidas, pois não via o velho há muito tempo, e disse que se havia uma pessoa que poderia confirmar ou não se aquele era o velho, essa pessoa era ele. Que, diante daquela incerteza, procurou dona Ritinha de Deoclécio, mas ela não estava na igreja, e só desfez a dúvida depois de muito olhar e perceber que ele falava com outras pessoas, dando as horas, e elas estavam lhe respondendo. Não era o único que estava vendo o velho e se convenceu de que não era assombração. Aquilo mexeu com sua cabeça e também com a das outras pessoas e quase ninguém acreditou que se tratava de seu Nanô, mas era ele mesmo. Disse que o novo comportamento se fez observar durante a semana inteira, pois na segunda-feira o velho foi ao comércio local e comprou todos os ovos de chocolate, coisa que os comerciantes acharam bom, pois os ovos estão muito caros neste ano e eles já contabilizavam o prejuízo. Que ele mesmo já havia anunciado a seus filhos não ter condições de dar ovos de páscoa para nenhum deles, por mais que isso fosse dolorido. Que a solução foi comprar chocolate e fazer os ovos em casa. Que assim foi feito e agradece muito a Deus por sua esposa ter tido a ideia, pois foi a salvação. Muitos pais ficaram surpresos e felizes quando viram que seu Nanô começou a distribuir os ovos que havia comprado à todas as crianças da Oiticica, sem fazer qualquer discriminação. Na porta da casa do velho, na tarde da quinta-feira santa, tinha mais menino em busca de ovos que na missa do lava-pés. Seus filhos ficaram tristes porque não puderam pegar nenhum ovo. Souberam tarde demais, mas ele se comprometeu a falar com seu Nanô e, caso ainda tivesse algum, iria pedir. Que a ação de seu Nanô foi tão comovente que muitos ficaram sentidos e a maioria simpatizou com a atitude. Um ou outra falou que era um milagre, afinal o acontecimento se dava na semana santa, no ano que Deus já havia acabado com a pandemia e estava de bem com o povomandando chuvas ao sertão. Que essas não foram as únicas conversas que ouviu. Também soube de pessoas dizendo que era psicológico, quando o homem está diante da morte fica com a consciência mais pesada, ocasionando mudanças no fim da vida. Dona Ritinha de Deoclécio falou a ele que aquilo só podia ser fruto de uma paixão escondida. Ouviu também o boato que Zé de Luzia, o vereador local, havia falado com o prefeito para fazer uma homenagem a seu Nanô, que tanto estava fazendo pelas crianças da Oiticica num ano tão difícil. Que soube de todo esse rebuliço e não sabia explicar o que realmente levou seu Nanô a fazer o que fez, mas começou a desconfiar, no domingo de páscoa, quando as crianças mais novas começaram a morrer. A coisa ficou feia com os pais desesperados, sem saber o que fazer, colocando a culpa numa nova pandemia. Que já haviam morrido oito crianças. Que tudo piorou e começou a fugir do controle quando alguém divulgou no grupo do WhatsApp que o médico legista diagnosticou que as crianças morreram por infecção ou, mais grave, por envenenamento. Assim que isso começou a ser divulgado, as pessoas suspeitaram logo de seu Nanô e correram à casa dele, para atear fogo com o velho dentro. Que isso só não aconteceu porque a guarda local acalmou a população. Que o depoente foi um dos primeiros a chegar ao local e chamou pelo suspeito, mas nada ouviu em resposta, e repetiu várias vezes, com batidas fortes na porta e na janela lateral. Que, incentivado por populares e pela guarda municipal, adentrou o recinto pela janela lateral, e, por conta disso, foi ele quem encontrou seu Nanô morto, com o seguinte bilhete: “não quis chegar lá sozinho, por isso levei alguns anjinhos comigo”. Era o que tinha a relatar.

Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental

*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar). Veja abaixo, links para as postagens anteriores:

Leia tambémDepoimento (02/02/2025)

Leia tambémDepoimento II (09/02/2025)

Leia tambémDepoimento III (16/02/2025)

Leia tambémDepoimento IV (23/02/2025)

Leia tambémDepoimento V (02/03/2025)

Leia tambémDepoimento VI (09/03/2025)

Leia tambémDepoimento VII (16/03/2025)

Leia tambémDepoimento VIII (23/03/2025)

Leia tambémDepoimento IX (30/03/2025)

Leia tambémDepoimento X (06/04/2025)

Leia também: Depoimento XI (13/04/2025)

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Ubernilda diz:

    Que velho safado

  2. Marcos Ferreira diz:

    Releitura (segunda vez) saborosíssima e por demais oportuna em pleno domingo de ramos. Eis, portanto, outro B.O. para seu ninguém botar defeito. De novo Mestre Ayala matou a pau.

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