• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 17/04/2011 - 12:08h

Eu não nasci com suspensórios… eu não era assim, não


Estou aqui a remexer minha memória. São recorrentes algumas imagens. Eis-me sem suspensórios, saindo do carro à porta da casa de minha mãe.
 
Ih! faz tanto tempo! Bons tempos, que se diga.

Diante de mim, alguém esbugalha os olhos. Fita-me por inteiro e percebe o que eu mesmo não notara: em minha indumentária, a camiseta básica, a calça jeans surrada e chinelos. À mão uma sacola plástica com um "kit" de higiene pessoal: xampu, sabonete, escova dental etc.

– Cadê os suspensórios?

Paro diante dela, que seria apenas uma senhora anônima, para responder de chofre:

– Eu não nasci com suspensórios!

Faço trocadilho com uma estrofe de "Óculos", música do Paralamas do Sucesso… "Eu não nasci de óculos, eu não era assim, não (…)".

Mãos à cintura, minha inquisitora abre um sorriso largo. "Marminino", exclama numa aglutinação bem nordestina.

Àquela hora da manhã, era meu estímulo para fazer daquele dia, mais um ótimo dia. O diálogo bobo, coloquial, era o avant-premier do ritual do meu reencontro com dona Maura, minha santa mãezinha, para ouvir a mais doce expressão do seu bem-querer.

De sua boca saía um prenome no diminutivo que não me deixava crescer e mexe comigo até hoje: "Carlinhos". Enquanto isso, ainda à calçada, eu via aquela senhora sumir  em passadas largas, até dobrar a esquina.

Essas tiras que ficam presas aos cós, passando sobre os ombros, que servem para segurar as calças, me amarram até hoje. Pelo visto, viraram uma extensão do meu próprio corpo. Mas não estão aqui para sempre. Vez por outra saio por aí "à paisana".

– Por que o senhor usa "isso"? – pergunta uma adolescente, depois de encorajada a me abordar, num shopping. Minutos antes, ela e uma amiga inflavam de riso, achando estranho aquele acessório multissecular.

Sorri diante da investida.

– No começo foi achando que ficaria bonito; depois percebi que servia para segurar as calças e eu não fiquei bonito. Hoje, só segura as calças – respondi instantaneamente, para lhe provocar um sorriso solto e amistoso, bem diferente do escárnio de antes.

Com um piercing dependurado no umbigo róseo, delicado e cheio de detalhes, como se fora uma peça de artesanato barroco, minha bonita interlocutora terminou por me dar o direito à intimidade:

– E você, por que usa "isso" aí?

Ela fez o ar ingênuo de sua graça juvenil, titubeou com um "ãn!?" e reagiu: "Ah… porque é bonito, é legal, né?!"

Então, tá.

Despedimo-nos após esticarmos a prosa com outras abobrinhas. Ela, uma ninfa descrita por Khalil Gibran, não precisava daquela "ferragem" para ser linda. Eu tinha as minhas "tiras" de utilidade.

A vida é uma sequência de ciclos. São fases impostas pela própria biologia e o existir. O ser em conflito com o não-ser, em formação ou deformação.

Do corte do cabelo ao peso corpóreo, passando pela roupa que nos identifica, credenciamo-nos ou não, para sermos aceitos ou não. Viramos o "queridinho" ou somos ignorados, num tempo em que estar sob holofotes significa ter sucesso.

Talvez estejamos ainda mais distantes da felicidade, por adotarmos esse modelo de êxito feito em série, como se ele fosse um produto industrial impecável. Daí, compreensível, que muitos enxerguem a cara-metade como a parte que lhe falta, mas a seu modo, sem respeito às diferenças e peculiaridades de cada um. Sem tolerância.

– Você podia deixar de usar suspensórios –  sugeriu-me há alguns anos uma namorada muito querida.

– Tudo bem. Você poderia deixar de usar esses saltos altos – desafiei-a.

Fim de papo. O namoro decaiu um pouco à frente. Ela, nos saltos. Eu, com suspensórios.

Tempos estranhos esses, não?

Na busca pela diferenciação, cada dia o indivíduo tenta estar ainda mais na moda. Em seus "guetos" e "tribos", ao final todos se parecem entre si. Mesmo assim, todos querem ser únicos, a "última Coca-Cola do deserto", "a bala que matou John Kennedy", como jocosamente se diz.

Eu não nasci com óculos, entretanto hoje eles são-me indispensáveis à leitura. Eu não nasci com suspensórios, posso prescindir deles amanhã, ora.

Porém é certo que mudei, tenho mudado. Sobretudo porque tive a coragem e por necessidade de sobrevivência, de promover a maior de todas as revoluções: mergulhei no meu eu.

Lá encontrei a chave para quase tudo, inclusive para ser eu mesmo, sem medo. Com ou sem suspensórios. Ser Carlos. O "Carlinhos". Feio, chato, sei lá… Eu.

Compartilhe:
Categoria(s): Nair Mesquita

Comentários

  1. Edvan Queiroz diz:

    Indumentária que me serviu no passado quando precisei em uma apresentação e me foi emprestado pelo inteligente proprietário deste blog. É assim mesmo Carlos, podemos as vezes ser o patinho feio pelo que vestimos, pelo modo como nos portamos, pelas amizades que temos, pela ideologia que defendemos. É fácil ser comum ou seguir a tendência em vigor, difícill é ser diferente e ir contra os padrões atuais. Porém se nos sentimos bem com o que somos e vestimos, e ninguém paga nossas contas, releva-se qualquer comentário ou gesto de reprovação.

  2. Odemirton Filho diz:

    A individualidade de cada um é essencial. Seguir modismo, perdendo a sua essência é a tônica da sociedade moderna. Ser diferente causa espanto. Não gostar do que a maioria aprecia é ser encarado de forma enviesada. O evoluir social nos faz perder a singularidade. Poucos permanecem fiéis ao seu eu.

  3. ze roberto diz:

    Pois é !
    Menino,eu,quase imberbe,um dia inventei de usar um cavanhaque,pra que? É fato que hoje,já quase todo branco,é como se uma marca,daí,quando mando “raspar”,dizem,”Ah! Tá mais novo”,ora porra,ninguém fica mais novo,só,mais velho,aí,deixo crescer novamente,eu agora,já não quero ficar “mais novo”,sim,mais velho,sempre,durar um bom tempo,vou fazer como Luis Paula,meu avô,que para parecer mais velho,ARRANCAVA,os fios de cabelos pretos,mas,ficar velho,bem velho,como dizia minha mãe Adalgiza Paula,até enquanto estiver sabendo,”que mijo não se bebe e merda,não se come”.Quer saber ? Homi,vá cagar!

  4. Neísa diz:

    Deixe de usar não… tenha personalidade mesmo. Namorada besta essa que vc arrumou… ainda bem que já mandou passear!

  5. Larissa Gabrielle diz:

    Acabar, a cronista, sou eu.

  6. CARLOS ALBERTO BEZERRA JÚNIOR diz:

    Já dizia o velho orkut em uma de suas “frase do dia” – Os jovens “mangam” da moda antiga mas seguem rigorosamente a moda atual.

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2024. Todos os Direitos Reservados.