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domingo - 06/02/2022 - 07:14h

Maria Viana Sobrinha e Antonieta de Barros – descaso imperdoável

Por Marcos Araújo

O Brasil é um país racista, não há como se ignorar. As narrativas são diárias de casos de preconceito e de injúria racial, ou, de violência policial motivada pela cor. No viés sócioeconômico, a cor negra é vetor para demonstração da desigualdade na oportunidade de empregos, dificuldade na ascensão da carreira e a distinção salarial. Aproveitando a música de Belquior (“Como nossos pais”), não registrar corretamente o papel relevante de certos negros na história, “na parede da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais”.

Foto ilustrativa do Museu Afrodigital (1923)

Foto ilustrativa do Museu Afrodigital (1923)

Duas relevantes professoras negras foram pouco mencionadas na história regional e nacional. A primeira delas, MARIA VIANA SOBRINHA, é daqui do Rio Grande do Norte, nascida em Pau dos Ferros/RN. Maria Viana foi uma professora tradicional, do método de lápis numa mão e uma palmatória na outra. Foi ela a responsável pela educação primária de milhares de crianças. Tenho procurado seus dados biográficos com afinco, em vão. Duvido que se guarde memória dela na própria Secretaria de Educação do Estado.

Deve ter nascido no fim do século XIX, de certeza filha de escravos ou de alforriados, pois nas décadas de 50 a 70 do século XX ela já era uma mulher madura. Graças à sua inflexível postura, muitos foram levados à aprendizagem e aperfeiçoamento nas letras. Todos os meus irmãos mais velhos foram seus alunos e testemunhas do seu método eficaz, da rigidez do seu magistério e também de suas palmadas.

Além de ser professora primária na escola pública pelo turno matutino, no período vespertino ela dava aula de reforço em casa. Ensinava a dezenas de crianças brancas, de melhor condição econômica. Acredito que muitos pagavam bem, outros eram alunos por sua ação caridosa.

Recordo perfeitamente de sua casa, especialmente da sala onde ficava uma mesa grande, em cujo entorno ela volteava ensinando a escrever e a soletrar as palavras, fiscalizando, ensinando e “premiando” com uma espátula de madeira na parte frontal da mão aberta do educando, fazendo brotar lágrimas ou choro, a depender do nível de fraqueza do aluno.

Fico sempre a lembrar do preconceito que Maria Viana deve ter sofrido. Primeiro, por ser uma mulher negra e pobre; segundo, por ser uma preta a ensinar brancos de melhor condição econômica, filhos de pais descendentes de famílias escravagistas. Aquela região já foi celeiro de grande produção algodoeira até os anos 50, com grandes fazendeiros de sobrenomes Fernandes, Diógenes, Dantas…E a mão-de-obra escrava e a serviçagem pós-escravatura eram muito presentes nas fazendas cultivadoras de cana de açúcar e algodão.

Imagino o quanto ela deve ter sido contestada e admoestada pelo poder de castigar as crianças da “Casa Grande”, na incompletude das tarefas escolares. E como seria o relato das crianças aos pais, com choro incontido, sobre as palmadas recebidas de uma negra? E a reação dos pais? Hoje, ela seria “cancelada” socialmente, ameaçada de morte e condenada à prisão “perpétua”.

Maria Viana foi precursora e protagonista de um ambiente de escolarização e letramento em Pau dos Ferros/RN e região que veio ao ápice com a atividade dos Professores Gilton e Lúcia Sampaio na primeira década deste século, que na qualidade de professores da Universidade do Estado do RN (UERN), implementaram no Campus Avançado “Professora Maria Elisa Albuquerque Maia” (CAMEAM) uma política de qualificação e titulação na área de Letras inédito no Nordeste brasileiro, quiçá em todo o Brasil.

Em Pau dos Ferros, em plena tromba do elefante, uma Universidade de poucos recursos oferece cursos de mestrado e doutorado em Letras.

MARIA VIANA FOI A NOSSA MARY JANE McLEOD, uma educadora norte-americana, filha de escravos e nascida numa fazenda de algodão em 1875, que ficou especialmente conhecida por abrir uma escola particular em Daytona Beach, Flórida. A história americana a ela registrou o epíteto de “A Primeira-Dama da Luta”, por causa do seu compromisso para obter uma vida melhor para os afro-americanos.

A outra professora negra brasileira que deve ser exaltada pela história como educadora é ANTONIETA DE BARROS, nascida no ano de 1901 em Desterro (hoje, Florianópolis). Está entre as três primeiras mulheres eleitas no Brasil, sendo a única negra. Foi eleita em 1934 deputada estadual por Santa Catarina, 50 anos depois da abolição da escravatura, em um estado predominantemente de brancos, de cultura alemã racista. Num país fortemente preconceituoso quanto à classe, cor e gênero tinha orgulho de sua história.

A bandeira política de Antonieta era o poder revolucionário e libertador da educação para todos. Professora formada, tinha 17 anos quando fundou o curso particular “Antonieta de Barros”, com o objetivo de combater o analfabetismo de adultos carentes. Sua crença era que a educação era a única arma capaz de libertar os desfavorecidos da servidão. Sua fama de excelente profissional, no entanto, fez com que lecionasse também para a elite nos Colégio Coração de Jesus, Dias Velho e Catarinense.

Antonieta: Educação (Foto: reprodução)

Antonieta: Educação (Foto: reprodução)

Sua defesa acirrada pela educação fez com que ocupasse as páginas dos jornais. Além de professora, virou cronista. Em 23 anos de contribuição à imprensa escreveu mais de mil artigos em oito veículos e criou a revista Vida Ilhoa.

Tinha voz numa época que as mulheres eram silenciadas. Escreveu dois capítulos da Constituição catarinense, sobre Educação e Cultura e Funcionalismo, até ser destituída do cargo pelo golpe de Getúlio Vargas.

Lembrei dessas duas mulheres, a quem a história não deu o resguardo e o registro merecido. Uma no Sul, outra no Nordeste, com um desafio comum: dar liberdade aos cativos da “senzala” da ignorância e do analfabetismo,  essa a pior forma de escravidão. Do mesmo modo, se empenharam em provar que a “Casa grande” da educação é o melhor ambiente para uma transformação social.

Em tempos de dúvidas, de críticas à educação e à ciência, vivas sejam dadas à Maria Viana e Antonieta de Barros!

Marcos Araújo é professor e advogado

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Raniele Alves diz:

    Parabéns Marcos Araújo por nos mostrar e lembrar dessas duas personalidades muito importantes que intencionalmente foram esquecidas e escondidas do povo brasileiro.

  2. RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES diz:

    Já temos a fama de país sem memória, imagine então quando se trata de dar voz, e de colocar em registro permanente da historiografia brasileira, a importância dessas educadoras para a quebra de paradigmas do racismo e do preconceito contra o negro. Parabéns!

  3. José Holanda diz:

    Grato pelo reconhecimento. Maria viana foi minha vó. Maior exemplo que retidão que tive. Educou muitas gerações de Pau dos ferros e região. ❤

  4. José Holanda diz:

    Se for possível editar, tenho fotos dela.

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