domingo - 11/01/2009 - 19:32h

Memória privilegiada

A seguir continuamos a reprodução de trechos da correspondência de seu Rafael Negreiros com Diran Amaral, no ano de 1976. Faz a apologia do valor das cartas.

Infelizmente, seu Rafael não pôde desfrutar das benesses da Internet, mas escrevia com uma rapidez enorme e sem consultar nenhuma fonte, tudo de memória.

“Toda carta merece resposta. Dizia Robert Louis Stevenson (autor de ‘The Strange case of Dr. Jekyll and Mr.Hyde’ – O Médico e o Monstro) escrevendo a Mary Shelley, que por sinal foi a criadora de Victor Frankenstein, história do médico que criou o monstro e que muitos confundem Frankenstein com o anormal (crime de erudição insustentável), que nas cartas existe o refrigério, o calor humano que somente a voz pode transmitir.”

“Mas ocorre hoje que a voz é embratélica, custa os olhos da cara, não fica registrada e muitas vezes trata de assuntos aleatórios ou empíricos, sem a objetividade e o zelo da correspondência manuscrita ou à máquina”.

Volta a falar da cirurgia a que foi submetido e, bem ao seu modo, agradece um empréstimo que Diran lhe fez.

“Como você vê, o nosso corpo tem mais mazelas que nossa vã filosofia pode imaginar, pois quando se cura de uma, se entra em outra. Estou aqui no Rio tranqüilo, tranqüilão, sabendo que teve alguém que me emprestou cinqüenta milhas por uns vinte/trinta dias, conforme tinha assegurado,” e passa a descrever o próprio destinatário, Diran: “um tipozinho baixote, parecido com marroquino, dono de uma concessionária, extrovertido e complicado, às vezes neurótico, outras sentimental, espécie de ciclotimia que é até saudável, mas que sempre atende em muitas ocasiões aos amigos com um prazer inusitado.”

“Tem recebido os jornais? Pelo menos você é o único a bater nos peitos e dizer que a ninguém mais eu mando coisa nenhuma, nem por tefas nem por nefas, quer dizer, pelo menos em matéria de jornais você foi o eleito.”

Se referindo a um gerente de banco: “Vê se amaina o Meirelles, que é durinho para emprestar dinheiro, como se o banco fosse uma espécie de clausura, ou de presídio, ou de mosteiro, onde só entram os criminosos, indiciados ou agentes de fé, porra, vá ser complicado assim no inferno.”

“Como vai o inenarrável Coconha? Como ele não me fez sequer um bilhete, também não terá a honra, ou o desprazer, ou o desgosto de receber uma linha de minha parte. Tenho ou não tenho razão?”  

“E de política, como vamos? Feliz de quem não se meter nessa barafunda dos diabos e aqui, de longe, a gente vê como é ridícula, tola, insensata a luta de dois grupelhos de idiotas, cada um a querer uma prefeitura falida que dá raiva, dores de cabeças e chateações de toda espécie.”

“Dizem que uns vêem a floresta mas não enxergam as árvores, isto é, vêem o conjunto mas não se fixam nas unidades e outros, justamente ao contrário, vêem as árvores mas não enxergam a floresta, presente, onipotente, majestosa, silente, dramática no seu imenso habitat. Comigo, de mim para mim, digo sempre que evitarei entrar em qualquer luta política, pois as decepções são tantas que o melhor é ser ligado aos dois lados, tranquilamente, sem ódios mesquinhos, sem paixões preteridas, relegando os insultos a plano inferior e, com uma risada e um copo de vinho, dizer como Omar Kayam:

‘Ah, encha a Taça: – de que vale repetir
Que o Tempo passa rápido sob nossos Pés:
Não nascido no amanhã, e falecido Ontem,
Por que angustiar-se frente a eles se o Hoje pode ser doce?’

“Sou mesmo um rico pobre, ou melhor, um pobre com forças de rico, transando e curtindo na praia de Porcabana, andando para cima e para baixo, como se fosse neto de Paul Getty e não devesse a ninguém em cima da terra. Mas o nosso ministro Simonsen diz que o credor é que deve se preocupar com a dívida e jamais o devedor, conselho que adoto, sigo e considero minha meta de sempre, pô.”

“Recomendações a Maria Lúcia (mulher de Diran), diga a ela que tome parte nas carismáticas às segundas lá em casa com Elizabeth (mulher de Rafael) e um cheiro em Frederico e Andréa. Bem, dinheiro eu lhe devo, agora, cartas você é quem me deve e eu digo como o poeta: 

‘Que me importa que de inúmeras maneiras
O amor tenha nascido em minha vida
Para morrer num copo de bebida
Trespassado de luzes zombeteiras.’"

Armando Negreirosnegreiros@digi.com.br

Compartilhe:
Categoria(s): Nair Mesquita

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

sábado - 03/01/2009 - 11:26h

Memória privilegiada

A seguir continuamos a reprodução de trechos da correspondência de seu Rafael Negreiros com Diran Amaral, no ano de 1976. Faz a apologia do valor das cartas.

Infelizmente seu Rafael não pôde desfrutar das benesses da Internet, mas escrevia com uma rapidez enorme e sem consultar nenhuma fonte, tudo de memória.

“Toda carta merece resposta. Dizia Robert Louis Stevenson (autor de ‘The Strange case of Dr. Jekyll and Mr.Hyde’)" 

“E de política, como vamos? Feliz de quem não se meter nessa barafunda dos diabos e aqui, de longe, a gente vê como é ridícula, tola, insensata a luta de dois grupelhos de idiotas, cada um a querer uma prefeitura falida que dá raiva, dores de cabeças e chateações de toda espécie.”

“Dizem que uns vêem a floresta mas não enxergam as árvores, isto é, vêem o conjunto mas não se fixam nas unidades e outros, justamente ao contrário, vêem as árvores mas não enxergam a floresta, presente, onipotente, majestosa, silente, dramática no seu imenso habitat. Comigo, de mim para mim, digo sempre que evitarei entrar em qualquer luta política, pois as decepções são tantas que o melhor é ser ligado aos dois lados, tranquilamente, sem ódios mesquinhos, sem paixões preteridas, relegando os insultos a plano inferior e, com uma risada e um copo de vinho, dizer como Omar Kayam: ‘Ah, encha a Taça: – de que vale repetir Que o Tempo passa rápido sob nossos Pés: Não nascido no amanhã, e falecido Ontem, Por que angustiar-se frente a eles se o Hoje pode ser doce?’"

“Sou mesmo um rico pobre, ou melhor, um pobre com forças de rico, transando e curtindo na praia de Porcabana, andando para cima e para baixo, como se fosse neto de Paul Getty e não devesse a ninguém em cima da terra. Mas o nosso ministro Simonsen diz que o credor é que deve se preocupar com a dívida e jamais o devedor, conselho que adoto, sigo e considero minha meta de sempre, pô.”

“Recomendações a Maria Lúcia, diga a ela que tome parte nas carismáticas às segundas lá em casa com Elizabeth e um cheiro em Frederico e Andréa."

"Bem, dinheiro eu lhe devo, agora, cartas você é quem me deve e eu digo como o poeta:  ‘Que me importa que de inúmeras maneiras O amor tenha nascido em minha vida Para morrer num copo de bebida Trespassado de luzes zombeteiras.’"

Armando Negreiros negreiros@digi.com.br

Compartilhe:
Categoria(s): Nair Mesquita

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2025. Todos os Direitos Reservados.