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domingo - 03/12/2023 - 08:04h

Memórias de uma árvore ambulante

Por Marcos Ferreira

Ilustração da Freepik

Ilustração da Freepik

Hoje estive pensando (aqui e acolá pratico esse exercício) e chego à conclusão de que sou uma espécie de árvore ambulante. Falo dessa maneira me referindo a certos frutos, alguns até apreciáveis, que fui espalhando ao longo desta minha relação de mais de três décadas mourejando na lavoura das palavras.

Sei que é meio chato, ao menos para alguns leitores, outra vez eu aparecer com um texto falando sobre mim. Alguém dirá que é falta de ideias ou do que escrever. Compreendo quem me critica por isso. Pois o que não falta nesta cidade, especialmente no âmbito político, é matéria para uma crônica. Melhor dizendo, várias.

Neste momento, porém, prefiro deixar a política e os políticos de lado. O que tenho para hoje é isto, tema pessoal. Quero recordar, ainda que a minha memória não seja muito confiável, algumas passagens que considero relevantes ou valiosas.

Então, para expor uma fase crucial em que pude ampliar meu acesso a livros, vou mexer no meu passado. Houve uma época (quando eu limpava quintais no Santa Delmira e trabalhava de vigilante noturno em quarteirões do bairro, a pé e com um tipo de cassetete) em que um vizinho de nome Antônio, pintor de residências, vez por outra me chamava para ajudá-lo.

Naquele tempo, repito, meu contato com livros era próximo de zero. Até porque, por falta de afinco e necessidade de arrumar dinheiro, sendo eu o mais velho de onze irmãos (dois faleceram), deixei a escola na quinta série primária, onde ingressei totalmente analfabeto com onze anos. Estudar era quase um luxo. Sapateiro, o meu pai tinha só a quarta série. Minha mãe, analfabeta.

Acho que outro ponto que desagrada o leitor são esses relatos, decerto já expostos em crônicas anteriores, sobre meus apuros da juventude. Sobretudo nas gestões dos presidentes João Batista Figueiredo e José Sarney. Depois, como se não bastasse, veio uma desgraça ainda pior: Fernando Collor de Mello.

Mas falemos sobre o meu importante contato com a sala de aula. Desde cedo me revelei um asno diante dos algarismos, embora os meus professores de matemática fossem bons. Todavia, no tocante à língua portuguesa, aconteceu o contrário em relação à aritmética. Foi um choque quando eu descobri que podia ler e escrever. Na sequência, como um tipo de encantamento, os livros se tornaram para mim objetos mágicos, portais que me levaram muito além daquele meu mundo de privações e sombras. Fui um ignorante em matemática, volto a dizer, tirei apenas notas para não ser reprovado, trocar de ano, mas me senti à vontade com nosso idioma.

O nome da escola, cujo registro faço com saudosismo e não menos orgulho, chamava-se Instituto Dom João Costa, na Rua Duodécimo Rosado, no Nova Betânia. É onde atualmente funciona o Centro de Práticas Múltiplas Dom João Costa, que está vinculado à Faculdade Católica do Rio Grande do Norte.

Retomemos, antes que eu me perca, o assunto da minha atuação como ajudante de pintor. Num determinado dia, talvez em meados dos anos oitenta, convocado pelo referido senhor Antônio, ele que possuía uma pequena carroça puxada por um jumentinho para transportar os seus apetrechos (rolos, baldes, brochas), fomos pintar a casa de um bancário. Quem sabe ele já fosse ex-bancário, não sei. O homem, acerca do qual eu conhecia apenas a ligação com o banco, era uma pessoa bastante destacada na sociedade mossoroense. Chamava-se Luiz Aquino, dono de uma biblioteca com um grande acervo de importantes autores nacionais e estrangeiros.

Ganhei uma boa grana auxiliando o meu vizinho pintor, entretanto eu conseguiria algo mais valioso. É que o senhor Luiz Aquino, com quem não tive mais contato, havia amontoado numa espécie de quartinho uma considerável quantidade de livros que os cupins tinham danificado. Perguntei o que seria feito deles e Luiz me confirmou que iria jogá-los fora. Pedi aquelas obras e ele me deu tudo.

Coloquei a “biblioteca” na carroça. Em casa, utilizando um veneno contra cupins dado pelo senhor Antônio, consegui acabar com os insetos. Alguns volumes possuíam certas avarias, no entanto a maior parte estava em boas condições de legibilidade. Ganhei de Luiz Aquino, de saudosa memória, essa contribuição inestimável para o meu processo de fortalecimento da leitura e estímulo para iniciar a minha própria escrita. Esta página é mais um fruto que eu lanço ao sabor do vento.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Bernadete Lino/ Caruaru-PE diz:

    A vida é cheia de oportunidades! Tem gente que percebe e aproveita; outras passam adiante! As minhas eu aproveitei e me doei! Nada veio de graça; tudo foi luta! Acho lindo quem não foge de sua origem. A história de cada um é o que transforma o indivíduo. Não considero que seja chato ler sobre a história pessoal. Por outro lado, não me agrada quando pessoas criam vidas fakes e ostentam o que não são. Não dou plateia pra esse tipo de pessoa. Já mencionei anteriormente que você deve escrever o que sentir vontade: se for pessoal ou não, o foco não é querer agradar. Tudo que é feito pra agradar, na minha percepção, soa falso. O que é verdadeiro, é bom e agradável. Então continue sendo como é! Admiro os seus textos, a sua criação, tudo que escreve. Por mim, fique à vontade. Só peço uma coisa: não deixe de nos prestigiar aos domingos; ficaria um vago no final de semana! Abraços!!!

    • Marcos Ferreira diz:

      Querida amiga Bernadete,
      Mais uma vez, com carinho e sensibilidade, você consegue me fazer acreditar que ainda vale a pena este compromisso dominical com vocês, meus poucos e preciosos leitores.
      Forte abraço.

  2. Simone Martins de Souza Quinane diz:

    Querido Marcos,
    Adoro ler seus relatos! As oportunidades surgem e devemos agarrá-las com unhas e dentes porque o tempo é implacável e não volta jamais! Feliz de quem sabe qual é o seu momento e o aproveita como se fosse o último.
    Beijos!

    • Marcos Ferreira diz:

      Querida Simone Martins Quinane,
      Minha eterna professora e amiga.
      Volto a agradecer por tantas palavras de incentivo e carinho que você me dedicou a longo de tantos anos. Hoje, então, quero lhe parabenizar por este seu dia especial. Parabéns! Feliz aniversário! Desejo tudo de bom na sua vida hoje e sempre. Muita saúde, muita paz e realizações. Com toda a sinceridade e afeto deste seu amigo e admirador,
      Marcos Ferreira.

  3. Francisco Nolasco diz:

    Boa noite, caro poeta. Só agora pude vê seus escritos. O dia hoje foi muito atropelado em afazeres.
    Gostei do texto. És um criador de alumbramentos, de possibilidades literárias múltiplas.
    E como diria. Gil: aquele abraço!

  4. Professor Tales diz:

    Um verdadeiro tesouro que você salvou e seu que é de valor inestimável!

    • Marcos Ferreira diz:

      Estimado amigo e professor Tales Augusto,
      “A vida tem dessas coisas e olha só nós dois aqui”, como diz a canção.
      Obrigado pela mensagem de incentivo.
      Abraços.

  5. Airton Cilon diz:

    Poeta e escritor Marcos Ferreira, teu encontro com os livros já estava marcado pelo destino. Você adotou aqueles velhos livros como filhos para o reto da vida. E eles rederam-lhe frutos. Abraços.

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