domingo - 24/08/2025 - 03:48h

O Efeito Casulo – Dia 13

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Conforme narrei da madrugada de ontem para o final da manhã do mesmo dia (veja AQUI), o vizinho à esquerda de minha casa espancou, de modo animalesco, selvagem, a própria esposa, talvez namorada. Não sei dizer, não me importa o status conjugal deles. O que pude avistar já me atordoou além da conta. Não fui às redes sociais nem aos blogues à procura de detalhes sobre o ocorrido. Uso o meu celular cada vez menos. As redes sociais me dão asco, repugnância. Tenho um monte de ligações não atendidas. O aparelho fica no silencioso. Não mais me interessa o caso do espancamento. É bem provável que tenha sido veiculado pelos noticiários televisivos, quem sabe em rede nacional, contudo não ligo o meu televisor há quase duas semanas. O que sei é que meu estado de nervos sofreu grande abalo por causa disso. Ainda me encontro nervoso; o coração com o ritmo acelerado. O tremor das mãos quase desapareceu, mas uma grande quantidade de pensamentos negativos e destrutivos ocupa a minha cabeça. Por exemplo, eu me imagino, me vejo cometendo toda espécie de violência contra uma centena, quiçá mais, de indivíduos que considero odiosos, abomináveis. Pústulas deste país e um monte de canalhas de outras nações, habitantes de vários pontos do globo.

Tal relato (este manifesto, esta catilinária contra gente escrota e poderosa) já se tornou uma revelação cansativa. Em determinadas vezes expus iguais, semelhantes ímpetos dessa natureza. Mossoró não fica de fora. Aqui existe um presunçoso rebanho de patifes que estaria na minha alça de mira se, por graça de Deus ou do Diabo, eu adquirisse poder para executar meus objetivos sem ser importunado pelas autoridades, os supostos homens da lei. Algumas cabeças seriam transfixadas de longa distância por projéteis de grosso calibre. O ódio que devoto a uma récua de sacripantas vem prejudicando, conturbando meu sono. Tenho (mesmo tomando cinco fármacos diferentes) enorme dificuldade para dormir. Por ora, todavia, fico na vontade. Não me proporciona prazer nenhum alimentar essas inofensivas lucubrações. O leitor não é bobo e decerto vai ficando de saco cheio diante desses meus poderes que nada podem. Melhor, por enquanto, é baixar a bola. Cachorro que muito late, como se diz, não morde. Essa, no entanto, é uma máxima que me parece por demais idiota, sem credibilidade.

Mudemos de assunto. Os meus arroubos psicóticos precisam se limitar ao meu cérebro doentio, enfermiço. Dei mais uma olhada por cima do muro, observei o que foi possível alcançar do meu posto de observação, e acredito que o número de vizinhos com as suas cadeiras nas calçadas aumentou sobremodo. É fácil deduzir que a selvageria do crápula que espancou a sua companheira é o tema ainda em alta. Deduzo isto. Em maior quantidade, avistei as mulheres próximas de minha casa falando demais; volta e meia uma dizia um gracejo e todas gargalhavam. Entre as quais, devo registrar, estavam moças bem jovens, mulheres de meia-idade e senhoras avançadas em anos. Não me dei ao trabalho de contar, entretanto posso supor que se tratasse de umas oito. Do sexo masculino, sendo agora exato, havia justos quatro elementos.

Era por volta das cinco e quinze da tarde. O trânsito nesta rua se encontrava como em geral se comporta de segunda a sábado: com intenso e ruidoso tráfego. É oportuno registrar que, aos domingos, esse fluxo de veículos, principalmente o de carros e motos, cai de forma considerável. Creio que tenha a ver com o fato de que os proprietários desses transportes automotores aproveitam esse dia consagrado ao descanso para curtir a família, assistir a um jogo de futebol pela tevê, tão somente tomar umas cervejas, umas cachaças em casa, e esticar o esqueleto em uma cama, uma rede; dormir algumas boas horas. Assim, não tanto quanto a Avenida Alberto Maranhão nem Presidente Dutra, a Pedro Velho, em especial no que abrange o bairro Santo Antônio, é uma artéria de expressiva circulação. Transita regularmente por aqui uma gente trabalhadora; são os ambulantes, pessoas oferecendo os seus diversos tipos de produtos.

Uma hora surge na esquina o Golzinho dos bolos, das bolachas, pães e biscoitos de variados formatos e sabores. Entre as onze e o meio-dia, costumeiramente, passa a picape dos “ovos fresquinhos” que, a exemplo do Gol, chama a sua clientela por meio de alto-falantes. Noutros horários passam o leiteiro, o homem do queijo, a mulher das canjicas e pamonhas, o vendedor de algodão-doce com uma buzina de borracha que ele aperta de quando em quando. Temos ainda, entre outros, o cidadão que anuncia (este sem contar com um sistema de alto-falantes) as suas castanhas assadas e amendoins torrados. Pela manhã, no mais das vezes em torno das dez e meia, com uma frequência quase religiosa, surge um senhor de uns sessenta anos vendendo frutas e verduras em uma carroça puxada por um cavalinho branco e magro feito o dono.

Em algumas ocasiões, a depender de meu interesse, abria o portão e esperava chegar um desses ambulantes que vêm anunciando os seus produtos desde longe. Geralmente, como não gosto muito das iguarias dos mercados, eu tinha o hábito de comprar canjicas, pamonhas e também as castanhas e os amendoins torrados. Hoje em dia, depois que veio o diagnóstico do câncer e eu me fechei nesta casa, com raras saídas para adquirir alguns gêneros no mercado, não mais ponho a cara fora a fim de comprar os produtos das pessoas que vendem suas mercadorias nas ruas. Além do câncer, agora tenho que lidar com a fobia social, uns vestígios de síndrome de pânico e cenofobia. Minha última ida ao supermercado foi um tanto quanto dramática. Por pouco não tive um surto mais acentuado; o episódio ficou só no mal-estar, consegui passar minhas compras no caixa e sair do comércio sem chamar a atenção de ninguém.

No início da noite de ontem (acontecimento que me causou uma ligeira insegurança) alguém deu umas leves batidas no portão. Acho que umas duas pancadinhas. Quem será? Indaguei de mim para comigo. Não tardou a chamar meu nome. Hesitei. Considerei a possibilidade de não responder, de fingir que não estava. Porém me aproximei e permaneci em absoluto silêncio. Com cuidado para não fazer barulho sequer com a respiração. Que a visita fosse embora. No entanto tomei coragem e respondi à mulher. Sim, era uma mulher que me chamava. Antes de abrir, indaguei pelo nome. “Maria”, respondeu. Ela viera me entregar um presente. Tratava-se de um livro de nome um tanto comprido, como hoje está na moda. Eis o título: Os Grandes Inspetores Gerais no Acampamento de Mossoró, do escritor e maçom Luiz Soares Filho, irmão de Maria, que gentilmente me fez chegar sua bem-confeccionada obra pelas mãos da irmã, vizinha cuja casa fica a duas moradias desta. Ainda não li a obra por completo, estou fazendo isso aos pedaços, entrementes gostando do seu conteúdo. Apesar do fastio que me acomete e tem me afastado das leituras ultimamente. Fiquei satisfeito por Luiz Soares haver dito à sua irmã que acompanha meus escritos todo os domingos.

É sempre bom saber que alguém está lendo o que a gente escreve. Não importa que seja em um blogue desta província aos domingos, na concorrida Folha de São Paulo, no poderoso The New York Times. Não. Contar com esse cidadão acompanhando meus textos (segundo sua irmã) gerou no meu peito um bom bocado de alegria, uma inofensiva e saudável sensação de orgulho. Então, sem perder o vínculo com a descoberta desse inesperado e mais recente leitor, homem de letras que eu desconhecia, registro que o meu médico psiquiatra, o doutor Jarbas Sabóia, aconselhou-me tomar duas quetiapinas de 100 miligramas (Neural) e dois comprimidos de clonazepam (Rivotril) nas noites em que me encontro com o sossego e o sono perturbados. Sujeito previdente, doutor Jarbas teme que eu esteja às vascas de uma nova crise psicótica.

Já o doutor Epitácio Coelho, oncologista que me forneceu o diagnóstico de meu câncer de pâncreas, este classificado em estágio 4, inoperável, metastático, também me prescreveu um punhado de remédios, visto que recusei me submeter ao tratamento quimioterápico. O doutor Epitácio, não menos experiente, alertou-me sobre o detalhe de que abrir mão da quimioterapia significa uma redução na minha expectativa de vida que, segundo ele, seria de menos de seis meses se eu ficar só com o procedimento medicamentoso. Recusei! Trinta ou sessenta dias a menos não significa muito para mim a esta altura do campeonato. Torço apenas que daqui até o apagar das luzes eu possa terminar de escrever e, se possível, fazer o copidesque e a revisão deste romance autobiográfico. Ou, reavaliando o gênero, uma autobiografia asfixiante, correndo igualmente contra o tempo. O resto é apenas o resto e não me interessa.

Marcos Ferreira é escritor

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 1

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 2

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 3

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 4

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 5

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 6

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 7

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 8

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 9

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 10

Leia tambémO Efeito Casulo – Dia 11

Leia também: O Efeito Casulo – Dia 12

Compartilhe:
Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Bernadete Lino diz:

    Fernando está melancólico. Com um presente sem áreas de prazer e com um futuro, presumivelmente, cada vez pior, não tem em quem ou que se agarrar. Ausência de perspectiva; desinteresse geral; apatia e depressão. Com tanta medicação no corpo e na mente, falta algo pra sentir que não foi inútil a sua existência. Saber que uma pessoa que admira encontra tempo pra ler seus escrito é como uma recompensa! Algo que o liga. Que lhe dá a ideia de pertencimento. Todas as pessoas necessitam dessa aprovação. Um pequeno alento na vida desesperada de Fernando.

Deixe uma resposta para Bernadete Lino Cancelar resposta

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2025. Todos os Direitos Reservados.