“Ver bem não é ver tudo. É ver o que os outros não vêem.” (José Américo de Almeida)
Tenho cuidado maternal no manuseio desse achado. É exemplar ainda de sua primeira edição, coisa aí de 1977. "A casa do meu avô", mesmo assim, não resiste ao tempo e ao folhear encantado do adolescente que ainda vive em mim. A contracapa amarelada desprende do corpo do livro de Carlos Lacerda, como se fora uma cápsula solta à Via Láctea. É parte de um todo, que não aceito seccionar.
Li-o novamente agora. Foi o terceiro passeio ao sítio do doutor Sebastião Lacerda nos últimos 25 anos. De novo com outro olhar. Tenho em mãos um Lacerda plácido, faceta memorialista. Doce. Diferente do orador iconoclasta, do jornalista crítico e do político em permanente erupção. Aqui e ali os escaninhos à crítica sociopolítica, como não poderia deixar de ser.
Bem, mas não é necessariamente sobre meu xará que me detenho a escrever. Mas claro que não passam ao largo, ele e o livro. Nem poderiam sobrar.
Alimento o hábito de releituras. Como dizem os de cultura esmerada e inseparáveis amigos dos livros: a cada viagem, novas descobertas. É como se abríssemos uma nova janela à paisagem em permanente mutação. Paixões renovadas, novos encontros, desapontamentos. Olhos afeitos à curiosidade.
Faz-me lembrar de José Américo de Almeida. Político paraibano arretado e sua “A bagaceira”. Triângulo amoroso, conflito social, sol, sertão, gente, dores e horrores, alegria e êxtase. Pai e filho lutando pelo amor de Soledade, mergulhados num íntimo de cisma e reflexão psicológica.
Partindo daí, meu reencontro é também com Aluízio Alves, aquele que “veio do sertão, lá do Cabugi…”
Em um de nossos últimos bate-papos, já falando com dificuldade e encerando o piso do apartamento em Natal, numa locomoção arrastada, ele nutria novos planos como escritor. “O que não esqueci” vez por outra renova minha admiração pelo político-intelectual. Ouvir – ler – Aluízio pescando minudências de um passado remotíssimo, era um banho de sapiência no inculto jornalista provinciano.
Nesse olhar que junta Carlos Lacerda, José Américo e Aluízio, dou por falta de uma companhia igualmente prazerosa. Sumiu por empréstimo involuntário ou furto qualificado, o volume de “Antes que me esqueça”, de José Américo. Percebeu a semelhança com o título fixado por Aluízio em suas memórias? Bem, mas esse é outro viés de apreciação.
O desejo de também rever Antes que me esqueça remete esse leitor à crucial constatação de que vivemos um tempo de aridez cultural na política. Lacerda, Aluízio e Américo são apenas alguns nomes recolhidos, como parte de uma vasta lista de personagens com densidade erudita, vinculados à atividade pública. No passado, infelizmente.
Tudo isso fundamenta mais ainda minha angústia. O que prospera é uma literatura hagiográfica de encomenda, canonizando vigaristas que estão na política.
A casa do meu avô, A bagaceira, O que não esqueci e Antes que me esqueça deixam entreaberta a porta à observação dos valores culturais que a política brasileira produzia, em volume considerável, no século XX. Hoje estamos numa entressafra.
Vivemos desprovidos de homens de letras que na política expressem um pouco de humanidade e vocação para o social. Talvez esteja em parte explicado, não justificado, o império da delinqüência que prospera de Brasília ao RN. É por isso que não devo esquecê-los, Lacerda, Aluízio e Américo.
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