domingo - 02/11/2025 - 05:26h

Sinalagma

Por Bruno Ernesto

Bodega no Mercado Central, Governador Dix-Sept Rosado (Foto: Bruno Ernesto, 10/2025)

Bodega no Mercado Central, Governador Dix-Sept Rosado (Foto: Bruno Ernesto, 10/2025)

Quem algum dia imaginaria que comprar um simples sabonete Senador ou Alma de Flores viraria sinônimo de burocracia?

Desde que me entendo por gente, ouço a famigerada palavra burocracia reinar no nosso dia a dia. Aquele poder que, originalmente, emanava de um tampo de madeira, uma cara sisuda, uma caneta com tinta perpetua e um carimbo chancelador.

Quando falamos em produção, interpretação e aplicação da lei, o Brasil é uma aberração sem precedentes. A iniciar pela incalculável quantidade de leis. Talvez não seja exagero dizer que Franz Kafka seria um escritor amador e passaria vergonha se fosse brasileiro, levando em conta a teratologia jurídica tipicamente nacional.

Há quem diga que essa nossa burocracia se dá exclusivamente em virtude de termos uma infinidade de leis. Assim, no final dos anos 1970 e meados dos 1980, como ninguém aguentava mais tanta burocracia por aqui, criaram o Programa Nacional de Desburocratização.

Para não fugir à tradição, criou-se um Ministério da Desburocratização. Pura ingenuidade; brasileiro adora burocracia. A burocracia é patrimônio imaterial nacional, que já impregnou nosso ácido desoxirribonucleico.

Só quem tem a infelicidade de dominar a interpretação das leis brasileiras, sabe que é pouco provável que essa burocracia finde. Muito pelo contrário. Ela é indispensável à manutenção de uma elite, se não intelectual, funcional.

O livro “Burocracia e sociedade no Brasil colonial”, de autoria do professor e pesquisador da Universidade de Yale, o americano STUART B. SCHWARTZ, é um livro que reputo indispensável para entendermos o quão intrincado tornou-se tudo no Brasil quando o assunto é processo e procedimento formal, pois é o poder e controle de um sistema de falsa qualidade e mérito.

Se houve uma evolução? Sim, claro! Saímos do papel e migramos para o meio eletrônico. Só.

Até o comércio, uma atividade estritamente sinalagmática, cujo negócio é um dos poucos que pode se concretizar sem que o comprador e o vendedor falem alguma coisa um para o outro, ou até mesmo nem olhem para si estando frente a frente, não é mais o mesmo.

Se você for comprar qualquer coisa hoje, lhe pedem, no mínimo, número do CPF, inscrição no programa PIS/PASEP, número de identidade, número do cartão fidelidade, e-mail, número do telefone.

Se quiser aproveitar a oferta do dia do setor de frios, material de limpeza ou da padaria, precisa ativar a promoção no aplicativo do estabelecimento comercial – por código, item e setor – não sem antes ter que fazer um cadastro bioeletromecânico, enquanto o operador do caixa aguarda o sinal da internet voltar, e lhe manda digitar o número do CPF, código de fidelidade, dia, mês e ano de nascimento.

Se quiser participar do sorteio do prêmio no final do mês, precisa fazer tudo novamente e, assim, receber diminutas cartelas para preencher manualmente e depositar numa urna que é inlocalizável.

Além disso, há um fato novo: você só consegue efetuar a próxima compra se avaliar a compra anterior.

Hoje não se pode mais entrar mudo e sair calado de um estabelecimento comercial, pois exige-se tanta informação e passos para comprar ou ter desconto, que é mais fácil sair sem pagar e ter que se explicar à autoridade policial na delegacia mais próxima. Qualquer dia vou testar.

Toda vez que me deparo com essas burocracias no comércio local, lembro de Jalles Costa, meu saudoso professor de Sociologia do Direito, que já era um senhor com idade avançada naquela época, e que, certa vez, nos contou um episódio um tanto curioso.

Após passar as compras no caixa de um determinado supermercado em Natal, lhe falaram que para concluir aquela compra era necessário fazer um cadastro.

Lá para as tantas, a operadora do caixa perguntou o atual endereço dos pais dele. Muito espirituoso, disse que se ela reparasse bem nele – um idoso -, não haveria necessidade dessa informação. Todavia, a operadora insistiu que a informação era indispensável para concluir o cadastro.

Não insistiu e concordou em fornecer o atual endereço dos seus pais, e quando a operadora do caixa pediu novamente tal informação, disparou: Rua 13 com 14, do cemitério do Alecrim.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Leonardo Rodrigues diz:

    rs, muito bom. É o reinado do Algoritmo, com a necessidade de alimentação do Deus Big Data.

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