domingo - 22/07/2012 - 13:33h

Sobre a longevidade da vida (à Dagmar Filgueira)

Por Carlos Santos

“Ninguém se realiza com o que é perecível”, (Sêneca)

Uma cena não me sai da cabeça, entre tantas da infância tão distante cronologicamente. É recolhida com enorme facilidade dos recônditos de minha memória, porque guarda uma ambiguidade. É boa, é ruim. É marcante.

Vamos à ela:

Sou flagrado ao lado de uma trupe, em espalhafatoso corre-corre entre carteiras escolares. Uh-huuu!! Era algazarra de meninos imperativos ou que desejavam extravasar uma energia pessoal e coletiva que parecia inacabável.

A presença daquela mulher à porta, com mãos sobre as cinturas, braços arqueados, seria suficiente para nos impor ordem e o necessário silêncio ao ambiente. Impávida. Onipotente. Parecia nascida de um filme de Hitchkock, em preto em branco, com solene autoridade.

Seus olhos fixos e penetrantes, protegidos por lentes de óculos em armação grossa, escolheram a mim para sustar o alarido. Nada mais seria necessário para nos intimidar, lhe digo. Paralisado, ouvi-a: “Você já ficou bom para estar se danando?”

O menino de cabelos escorridos, lábios carnudos, braços e pernas longilíneos desabou ali mesmo. O saçaricado foi substituído por uma resposta quase inaudível, de cabeça baixa e coração acelerado. A respiração saía por um bico. Era medo, vergonha. Um misto disso:

– Não senhora!

A professora Dagmar Filgueira, diretora geral do “Educandário Dom Bosco”, recebera-me poucos anos antes à sua sala com delicada finura. A matrícula escolar estava confirmada e eu faria parte de um projeto pedagógico todo seu, que tinha a marca de quem dedicara a vida à educação. Enxergava a família como princípio de tudo e, a escola, o suplemento indispensável à formação do homem.

Eu não entendia nada desse lero-lero, nem me interessava muito por estudar, cumprir regras, atender a exigências escolares. De algum modo, eu já tinha muitas normas em casa e não gostava. Os anos seguintes, cerca de dez, foram muitos dos melhores momentos de minha existência entre corredoes, escadarias, pátio, cantina e salas de aula.

Os desfiles escolares sempre em farda impecável, acordar cedinho para a educação física e a inapetência para o esporte também constam dessas reminiscências.

Diversos amigos da época os conservo até hoje. Entretanto, existem aqueles que estão guardados apenas na fisionomia da meninice, sem nome. Vejo-os passar e com eles também passam filmes da infância. Retorno ao Dom Bosco em frações de segundos. De lá, acredito, nunca saí de verdade.

Professores como Deusa e Oscar são eternas referências. Com “Tamela” há uma dívida enorme e insanável, além de confissão do réu confesso: continuo um desastre na matemática e graças a algumas “colas” sobrevivi ao seu rigor de ensino. Ficam as desculpas, mas sobretudo o agradecimento.

“Dona Dagmar”, entre todos, incluindo o diretor “Filgueira”, era a própria instituição. Uma tutora de cada um de nós, por confiança de nossos pais. A preceptora à moda milenar dos romanos e gregos, que parecia ter tocado a pedra filosofal. Se a vida lhe foi longa, ainda maior é o que soube germinar.

Em suas cartas que deram vida ao livro “Sobre a brevidade da vida”, o filósofo Sêneca fala sobre o real significado da existência humana, em relação a seu rápido transcurso temporal. No fundo, ele dilata essa importância a partir do que de melhor se pode fazer do tempo terreno. “Ninguém se realiza com o que é perecível”, assevera o pensador.

A professora Dagmar conseguiu se multiplicar nos seus milhares e milhares de ‘filhos’, fardados, em fila indiana na direção da sala de aula, no pátio a cantar o hino nacional, no repique do tarol em todos os 7 e 30 de setembro, no grito de gol do time de handebol na quadra esportiva.

Por falar em tempo, creio que ainda é possível dizer à professora-diretora que valeu a pena essa infância, cada segundinho da convivência. Mesmo dessa lonjura, não me desapego dessa parte da vida que se agarra a gente como tatuagem, para nunca mais nos largar.

Todos os dias, de algum modo, voltamos a ser criança, a cruzar o chão de terra, a fazer burburinho diante da sirene que nos chama de volta ao banco escolar, a rasgar o joelho em mais uma carreira desembestada.

Ah, não posso deixar de esclarecer! Fiquei bom.

Depois de muitos anos de sofrimento, várias crises, internamentos, angústia minha e de meus velhos, balão de oxigênio e pânico pelo o ar que me fugia, superei a doença, professora Dagmar. Há tempos aquela asma torturante foi embora, sem deixar saudades.

Agora lhe respondo melhor, sem a voz chiada e temerosa, porque me fiz mais forte e autoconfiante, também graças a ti. Acho que tudo valeu e continua valendo a pena.

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Marcos Pinto. diz:

    Amigo Carlos, sentí-me redivivo nas emoções resgatadas por Vosmincê, tendo transportado-me em pensamento ao primeiro dia de aula no Grupo Escolar ”Ferreira Pinto”, na minha cidade Apodi. Vivas à memória de dona DAGMAR FILGUEIRA!.

  2. Carlos Roberto Teixeira diz:

    Caro, jornalista!
    O lirismo contido nesta crônica, sobre a professora Dagmar Filgueira, é digna de trabalharmos em sala de aula, como proposta pedagógica, contribuindo para o ensino da leitura e produção de texto, desenvolvimento da escrita e a reflexão crítica. Quando estou atuando em sala de aula, como professor de Língua Portuguesa ou Ensino da Arte, valoriso para o aluno à relação da escola com a cultura onde ela está situada, registrando os fatos do cotidiano ou acontecimentos capazes de representar ou até mesmo datar determinada realidade social. Obrigado por contribuir com o “aprender e aprender”, ofício indispensável para um bom educador.

    • Carlos Santos diz:

      NOTA DO BLOG – Professor Carlos, bom dia. Se minha crônica for útil, que bom! Sinto-me agradecido e ao mesmo tempo lisonjeado pela manifestação. Ela é uma manifestação acima de tudo do fundo d´alma. E seu ofício, encarado com dedicação e paixão, é um alento para todos nós. Abração.

  3. Francisco Rodrigues da Costa diz:

    Felizes dos que conservam na memória passagens de sua infância. Mais ou menos assim, se expressou Mário Quintana. Toda criança tem na vida a sua Dagmar Filgueira. A minha foi dona Chiquita do Carmo do Grupo Escolar Conselheiro Brito de Guerra de Areia Branca.
    Por que esconder? Foi com os olhos marejando que li sua crônica. Ah! se todo dia a gente lesse um texto assim, para lavar a alma das mazelas atuais. Parabéns. Chico de Neco Carteiro.

  4. Paulinho Sinesio diz:

    Parabéns Carlos , ficou muito bom , lendo voltei em um segundo a sala de aula , e Dona Dagmar uma das grandes mulheres de Mossoro. Abraço amigo

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