domingo - 14/09/2025 - 08:28h

Nem todo Joaquim é Quincas

Por Bruno Ernesto

Túmulo de Quincas Saldanha Foto: do autor da crônica)

Túmulo de Quincas Saldanha (Foto: Bruno Ernesto)

Você já reparou que há pessoas cujo nome de batismo só conhecemos quando um Oficial de Justiça bate à sua porta ou quando o nome sai no obituário?

Desde que me entendo por gente, na rua da minha avó, no bairro do Alecrim, em Natal, conhecia Dona Vil e Seu Brechó.

Dona Vil era uma senhora muito delica. Pouquinha, como dizemos. Rosto afilado, cabelos nos ombros, brancos e naturalmente escorridos, tal qual os cabelos do poeta Ferreira Gullar.

Não me recordo de ter ouvido sua voz – extremamente baixa – a mais de um metro de distância, especialmente nos últimos anos de vida, pois sempre acamada.

Soube que era Elvira, enquanto minha tia Luzia conversava com uma senhora ao meu lado durante o seu velório na Rua 8, no Alecrim.

O mesmo se deu com Seu Brechó, Pracinha que combateu em Monte Castello entre os anos 1944 e 1945, cujos olhos jamais vi a cor, pois sempre usava óculos Ray-Ban tipo aviador e uma boina de feltro impecavelmente branca. Morava três casas antes da de Dona Vil.

Soube que era Belchior quando cheguei para as suas exéquias.

Por acaso você já reparou que no Brasil há um costume de não se apresentar nominalmente nem perguntar o nome das pessoas? Por vezes, você passa anos conversando com uma pessoa e sequer sabe o nome dela.

Aquela pessoa que você encontra todos dias por poucos instantes, quer seja tomando um café, trabalhando no mesmo prédio ou fazendo as compras no mesmo supermercado, se resumem àquele conhecido do lugar comum.

Quando eu era criança, achava muito intrigante os nomes dos amigos e conhecidos do meu pai quando andava com ele lá pelas cidades e Almino Afonso e Patu nos em meado dos anos oitenta.

Dentre muitos, Zé Chapa, Berto, Moça e Zé Melosa. Papai, era Chichico; meu tio, Chiquito. Todavia, o que mais me intrigava – tanto pelo nome, quanto pela aparência – era Quincas.

A última vez que o vi foi por volta dos anos dois mil, a caminho do sítio, quando nos deparamos com ele bem na estrada da parede do açude no centro de Almino Afonso.

Estava como sempre o vi: calça social preta, camisa manga longa de botão e chinelos.

O que me surpreendeu foi que, apesar de muitos anos do falecimento de sua esposa, em sinal de luto, ele ainda usava o pequeno pedaço de tecido preto, do tamanho de uma caixa de fósforo e preso ao bolso de sua camisa com um pequeno alfinete-de-dama.

Não por onde, ainda ficava intrigado com a sua aparência, que destoava totalmente do fenótipo da nossa região. Ele parecia um Árabe com os cabelos pretos retintos, tal qual sua monocelha extremamente volumosa.

Embora há muitos anos tenha se aposentado da vida simples de agricultor de subsistência, jamais perdeu o costume de usar o seu chapéu de feltro preto, com uma fita branca laçada. Não era um Fedora, porém ele nos saudava tirando-o da cabeça.

Depois daquele dia, nunca mais o vi. Soube, muitos anos depois, que havia falecido.

Em contraste com a simplicidade de Quincas, amigo de infância do meu pai, recentemente fui conhecer, na cidade de Caraúbas, o túmulo de outro Quincas: Saldanha.

Túmulo de Quincas Saldanha de outro ângulo Foto: Bruno Ernesto)

Túmulo de Quincas Saldanha de outro ângulo Foto: Bruno Ernesto)

Embora não tenha conhecido esse personagem histórico pessoalmente, o que já li e ouvi sobre ele, já me permite ter muito interesse por sua história.

Era, como se diz, um Coronel abastado, influente politicamente e muito respeitado. E, claro, cercado de lendas.

A caminho de lá, antes, passei em frente ao seu antigo casarão, que beira a estrada que leva à cidade de Patu, e lá encontrei um grupo de homens que tangiam gado da antiga propriedade de Quincas Saldanha.

Perguntei se era difícil localizar o seu túmulo e me disseram que embora tenham misteriosamente retirado a lendária corrente que circundava o seu túmulo, a qual tinha por objetivo impedi-lo de vagar à noite, outro detalhe curioso identifica facilmente:

– Ele é a cara de Hitler.

De fato, não foi difícil achá-lo, mas confesso que fiquei intrigado com a sua aparência, muito mais que sua história.

Como meu pai dizia rindo: todo Joaquim é Quincas.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 07/09/2025 - 15:38h

O galo e o vira-lata

Por Bruno Ernesto

Foto ilustrativa de autoria do autor da crônica

Foto ilustrativa de autoria do autor da crônica

Acredito que a figura do galo represente o que há de mais marcante na infância de uma pessoa que gosta do campo ou, como se diz por aqui, do interior.

Quando vejo aqueles galos vistosos nos terreiros dos sítios, estufando o peito e me encarando, não há como não recordar dos bons momentos da infância.

Você, caro leitor, certamente já teve sido indagado de sua origem só pelo jeito de falar.

Não se engane. Ninguém consegue omitir sua origem.

Uns a negam veementemente, outros disfarçam e tergiversam com o mesmo intuito.

Porém, nada como ter orgulho de suas raízes.

Sim, claro que só o jeito de falar não quer dizer muita coisa. Na verdade, diz muito e não diz nada.

Se você, durante uma refeição, acomoda o talher no modo continental, experimente comer sem formalismo.

Se você gosta de risoto, prove arroz de leite. O arroz da terra, aquele vermelho, é o melhor.

Se você gosta de queijo Gouda ou Camembert , experimente queijo de coalho e de manteiga.

Se você gosta de soda italiana, prove um caldo de cana-de-açúcar.

Se você gosta de chantilly, prove nata. No feijão-de-corda é espetacular.

As coisas simples para uns, é um tesouro e tradição para outros.

O que é Vira-lata para um, é galo para outros.

Como dizia Guimarães Rosa, a lembrança da vida da gente se guarda é num lugar mais fundo que a alma, e o que é ruim a gente desaprende depressa.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 07/09/2025 - 13:50h

Bravíssimo, Veríssimo!

Por Odemirton Filho

Luís Fernando Veríssimo morreu em Porto Alegre (Foto: Mateus Bruxel/Agência RBS)

Luís Fernando Veríssimo nasceu em Porto Alegre-RS (Foto: Mateus Bruxel/Agência RBS)

“A crônica é literatura que se apega às coisas miúdas da vida. Nasce do rés do chão, com uma simplicidade reveladora e penetrante”.

No último dia 30, o Brasil perdeu a verve do cronista Luís Fernando Veríssimo. Ele deixou um legado imensurável de crônicas, contos e romances. Nascido em Porto Alegre/RS, em 1936, Veríssimo era detentor de uma fina ironia. Em seus textos, sabia navegar no cotidiano e perscrutar a alma humana.

Assim é o cronista. Do simples, extrai o que há de melhor na vida. No entanto, não fica amarrado ao estilo culto da língua. Ao contrário, prefere a linguagem coloquial que se identifica com o dia a dia das pessoas. O cronista observa a paisagem, um jardim florido, uma praça, o azul do mar, o luar, um casal enamorado, conseguindo transformar o que parece banal em especial.

Certa vez, ao ser entrevistado, Veríssimo disse que com trinta e poucas linhas se conseguia escrever uma crônica. Entretanto, em relação ao romance, essa quantidade de linhas daria, talvez, para um capítulo de um livro. Sem dúvida, ao escrever crônicas podemos enveredar por caminhos diversos, às vezes, de forma sucinta, deixando fluir palavras carregadas de sentimentos, lembranças e saudades.

Entre os seus inúmeros textos, destaca-se a série de crônicas sobre a Velhinha de Taubaté. Tratava-se de uma senhora que acreditava no governo durante a gestão do general João Baptista de Figueiredo (1979-1985). Ela continuou a acreditar nos mais variados políticos até que, com o tempo, de tanto se decepcionar, morreu. (Tenho para mim que continua vivendo em pessoas que acreditam e idolatram políticos).

Luís Fernando gostava de frases marcantes, instigantes, reflexivas. Eis algumas: “No Brasil o fundo do poço é uma etapa”. “Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data”. “Os tristes acham que o vento geme, os alegres acham que ele canta”. “O futuro era muito melhor antigamente”.

Bravíssimo, Veríssimo. Valeu!

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
sexta-feira - 05/09/2025 - 10:38h
Senhor Redator:

Um destino inevitável e a boa escrita

Na biblioteca do mestre, tentando aprender a escrever, com infusão de Serra Limpa (Foto: Fevereiro/2022/Natal, BCS)

Na biblioteca do mestre, tentando aprender a escrever, com infusão de Serra Limpa (Foto: Fevereiro/2022/Natal, BCS)

“Ninguém é jornalista só por desejar, por vaidade incontrolável ou por ter um diploma com letras heráldicas. Jornalismo é um destino. Ou, e tão pior: inevitável.”

A análise é do jornalista Vicente Serejo, arrimado na coluna Cena Urbana do Tribuna do Norte, sua casamata há algumas décadas – numa trajetória de mais de 50 anos de imprensa. Bote aí também, 32 de docência na Universidade Federal do RN (UFRN).

Sua crônica “Dois Brasis” dessa quinta-feira (04) é um primor. Redundância minha, ora, ora, Senhor Redator.

Diariamente a gente tem à disposição uma aula de perspicácia, escrita fina e conhecimento. Ao vivo, Vicente (só o trato pelo prenome, ao contrário da maioria dos seus interlocutores, que adota o Serejo), é ainda mais melhor.

“Ninguém ensina ninguém a escrever bem. Mais: escrever correto se aprende até o segundo grau e escrever com talento não está nos manuais”, assinalava Vicente pros seus alunos, já os impactando no primeiro dia de aula na Comunicação Social.

Aprendiz, esse blogueiro nacionalmente ignorado e mundialmente desconhecido teima em espiar o talento do mestre para contrariá-lo: ele ensina a escrever bem. A gente tenta.

Que privilégio!

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Categoria(s): Crônica
  • Repet
domingo - 31/08/2025 - 18:30h

Domingo

Por Carlos Santos

Capa do livro de João Almino (Foto: do autor da crônica)

Capa do livro de João Almino (Foto: do autor da crônica)

É um deleite “As cinco estações do amor” do conterrâneo João Almino. Domingo desacelerado, não tenho pressa também à leitura. Nem poderia.

Em casa, em Mossoró, testemunho a neblina fugaz e extemporânea desse quase setembro que zomba, lá fora, do perpétuo verão. Inverno? Não. Talvez apenas um flerte com a estação que se foi, nosso “tempo bom” sertanejo.

No livro, sigo os passos de Ana, parágrafo a parágrafo. Não sei o que me espera adiante. Mas gosto da companhia e do que começa a ser descortinado por ela.

“Sem que eu percebesse, o tempo tornou-se um bem raro e fez sumir a disponibilidade que toda amizade exige.”

Concordo.

Carlos Santos é criador e editor do BCS

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Categoria(s): Crônica
domingo - 31/08/2025 - 11:46h

Não se preocupem, amigos

Por Bruno Ernesto

Torta de café Foto do autor)

Torta de café (Foto do autor)

Dia desses, entre um compromisso e outro, desviei do caminho por quarenta minutos e parei para tomar um copo de água com gás, uma rodela de limão – apenas uma –, gelo – bastante –, e três cafés expressos com torra média. Sim, três. Um atrás do outro. Como um dependente químico que precisa manter-se entorpecido.

Por hábito, sempre que possível, prefiro sentar no mesmo local. Isso é péssimo pois, não raro, flagro alguém desavisado nele. Enfim, tenho que procurar outro o mais próximo possível do ar condicionado.

Nesse dia, por sorte, a minha mesa preferida estava desocupada e pude aproveitar para debelar um pouco o calor descomunal que fazia, e ali fiquei bebericando minha água bem gelada e tomar meus cafés enquanto lia algumas notícias e dava uma olhada nas redes sociais.

Como é comum – infelizmente -, por vezes, você se depara com alguém conversando com o volume muito acima do adequado para o ambiente, de modo que acaba por escutar todo tipo de conversa. Engraçadas, tristes, fofocas, assuntos profissionais, aleatórios e desabafos.

Nesse contexto, duas mulheres conversaram efusivamente na mesa em frente, quando uma delas pegou o telefone e efetuou uma ligação e passou a conversar no viva-voz.

Muito embora tentasse não ouvir a conversa, a propagação do som teimou em ser obediente às leis da física e todos os presentes tiveram o desprazer de ter que escutar toda aquela conversa.

Aparentemente, o esposo da dita interlocutora estava tendo um sério problema na obra que tocava, pois tentava convencê-la de várias escolhas de materiais que ela insistia em dizer que, mesmo após instalados, não tinha gostado.

Entre muitos vocativos carinhosos, fofos e melosos, para – aparentemente – convencer o marido de que não estava satisfeita, contabilizei o desacordo em relação à cor do piso, o tamanho de uma pia e a cor de uma porta.

Pude escutar o desespero do pobre homem naquela estridente ligação no viva-voz, que tentava justificar a escolha, dizendo que já estava tudo finalizado e que foi feito da forma que havia sido por ela escolhida, e que ela própria havia jurado ter adorado o projeto arquitetônico, apresentado cinco meses antes na tela com resolução 4K, pela renomada arquiteta.

Tudo em vão. A mulher levantou a mão, pediu mais uma fatia de torta, e, com a voz trêmula, disse:

– Amor, não gostei. Estou cansada dessa obra, amor. Tem como refazer?

Como precisei ir embora, não pude escutar o fim daquela boa conversa. Muito embora, pelo pouco que pude involuntariamente escutar, me lembrei do que o filósofo moralista francês Jean Rostand disse:

– “Não se preocupem, amigos. Não se preocupem. Não se preocupem. Não acontecerá nada do que vocês têm medo. Acontecerá coisa muito pior.”

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - Climatização - Agosto de 2025
domingo - 31/08/2025 - 10:28h

A recente influência do common law

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

A conformação do direito brasileiro, assim como da grande maioria dos países do Novo Mundo, é o resultado de uma mistura de herança histórica, filosofias sucessivamente em voga e disposições legislativas, antigas e recentes.

No início da história do Brasil, as antigas normas importadas de Portugal ofereciam soluções satisfatórias para a maioria das questões jurídicas da nova colônia e, em seguida, do novo país. Entretanto, o direito brasileiro foi progressivamente se adaptando à nossa realidade. Um direito rudimentar foi desenvolvido no Brasil durante o período do Primeiro Império. Surgiram as nossas primeiras codificações. O direito brasileiro foi sendo fortemente influenciado pelo direito produzido em países da Europa Continental, levando-o à histórica ligação com a tradição romano-germânica ou do civil law, cujos conceitos aqui prevalecem sobre a prática do common law. Vários ramos do direito brasileiro são codificados, embora as leis não codificadas também desempenhem um papel substancial na estrutura do sistema jurídico.

Entretanto, se o direito brasileiro acabou optando por uma associação com o civil law (lembremos que os códigos e as leis ainda são a nossa primeira fonte formal para a aplicação do direito), ele não ficou, sobretudo nos últimos 30 ou 40 anos, imune à influência do common law.

Como bem já explicava Cândido Rangel Dinamarco (em “Fundamentos do processo civil moderno”, Malheiros Editores, 2002), uma das tendências mais visíveis em toda a América Latina é “a absorção de maiores conhecimentos e mais institutos inerentes ao sistema da common law. Plasmados na cultura europeia-continental segundo os institutos e dogmas hauridos primeiramente pelas lições dos processualistas ibéricos mais antigos e, depois, dos italianos e alemães, os processualistas latino-americanos vão se conscientizando da necessidade de buscar novas luzes e novas soluções em sistemas processuais que desconhecem ou minimizam esses dogmas e se pautam pelo pragmatismo de outros conceitos e outras estruturas.

O interesse pela cultura processualista dos países da common law foi inclusive estimulado por estudiosos italianos que, como Mauro Cappelletti e Michele Taruffo, desenvolveram intensa cooperação com universidades norte-americanas. Os congressistas internacionais patrocinados pela Associação Internacional de Direito Processual contam com a participação de processualistas de toda origem e isso vem quebrando as barreiras existentes entre duas ou mais famílias jurídicas, antes havidas como intransponíveis. Ainda há o que aprender da experiência norte-americana das class actions, das aplicações da cláusula due process of law, do contempt of court e de muitas das soluções do common law ainda praticamente desconhecidas aos nossos estudiosos – mas é previsível que os estudos agora endereçados às obras jurídicas da América do Norte conduzam à absorção de outros institutos”.

De fato, nos últimos decênios, colocando como ponto de partida a adoção e o desenvolvimento das ações coletivas, o legislador brasileiro tem se voltado progressivamente para os países que adotam o common law a fim de buscar ideias para o aprimoramento da sua legislação e do seu direito, especialmente em áreas como o direito processual. No Brasil contemporâneo, devido à globalização, a absorção dessas práticas do common law – incluindo um uso mais amplo e criativo de precedentes vinculantes nos tribunais – intensificou-se visivelmente.

Há até quem diga – e eu mesmo questionei isso na minha tese de doutorado/PhD no Reino Unido, no King’s College London – KCL, intitulada “The Brazilian Model of Precedents: a New Hybrid between Civil and Common Law?” (em português, algo como “O modelo brasileiro de precedentes: um novo híbrido entre o civil law e o common law?”) –, com fundamento na atual relevância do uso dos precedentes como fundamento para os nossos pronunciamentos judiciais, que o sistema jurídico brasileiro provavelmente se tornará, no futuro, no que toca ao balanço leis/precedentes, um exemplo do que apelidamos de “sistema jurídico híbrido ou misto”.

Aliás, a própria questão da existência de sistemas jurídicos híbridos ou mistos mundo afora deve ser assunto para um outro papo nosso. Aguardem. É palavra de escoteiro.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 31/08/2025 - 08:24h

Tocando em frente

Por Odemirton Filho

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Nesses tempos de intolerância, nos quais não se escuta o que o outro tem a dizer, e todos são donos da razão, procuro me blindar da toxicidade das redes sociais. Não sei você, mas eu tento manter a calma para enfrentar as batalhas da vida. Que são muitas.

Na verdade, não sei como alguém consegue viver permanentemente em guerra; não sei como o coração suporta, a alma aguenta. Sendo assim, ante as dificuldades impostas pela, procuro respirar fundo, pedindo sabedoria a Deus para superar as adversidades.

Certamente não é uma tarefa fácil. No entanto, é preciso tecer em nossas vidas um caminho que possa ser percorrido com discernimento e paz. A escolha certa depende, sobremaneira, de um matutar sereno ou, quem sabe, de uma oração singela que ilumine as nossas decisões.

Cada um tem os seus desafios, uns mais, outros, menos. Contudo, para vencê-los, é preciso diminuir o ritmo do dia a dia, procurando arejar a cabeça. Decisões atabalhoadas, irrefletidas, levam-nos a atitudes inconsequentes, às vezes, sem volta.

Por exemplo: qual a vantagem de continuar um debate quando o interlocutor entende que suas convicções são imutáveis? Ora, se ele tem sempre razão, torna-se infrutífero qualquer diálogo. Assim, não há argumento, por mais verossímil que seja, que faça o intransigente mudar de opinião.

Por isso, em certas ocasiões, é preciso ensarilhar as armas, saber a hora de recuar. Para vencer uma guerra é fundamental ter estratégia, ou seja, é preciso refletir para, somente depois, avançar.

Enfim, “penso que cumprir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente”. Buscando paz.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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domingo - 24/08/2025 - 05:32h

O porquê do civil law

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa do Jusbrasil

Arte ilustrativa do Jusbrasil

Como sói acontecer na grande maioria dos países do Novo Mundo, a configuração do direito brasileiro pode ser vista como o resultado de uma mistura de herança histórica, filosofias sucessivamente em voga e disposições legislativas, antigas e recentes.

A origem histórica do direito da República Federativa do Brasil está no estabelecimento de uma colônia portuguesa, no chamado Novo Mundo, no início do século XVI. Cerca de três séculos depois, em 1815, o Brasil foi promovido de colônia a reino soberano, unido a Portugal. Em seguida, em 7 de setembro de 1822, o filho mais velho do rei português João VI e regente do Brasil, o príncipe Pedro, declarou a independência do país de Portugal.

O príncipe Pedro foi declarado e coroado (em outubro e dezembro de 1822, respectivamente) o primeiro governante do Brasil independente, como Imperador Dom Pedro I. Foi durante esse Primeiro Império, em 25 de março de 1824, que a primeira Constituição brasileira foi promulgada. Pedro I abdicou em 7 de abril de 1831, deixando o seu filho mais velho como sucessor, que viria a ser o Imperador Dom Pedro II.

Assim como o exemplo célebre da conformação inicial do direito estadunidense à fundação, pelos ingleses, nos albores do século XVII, de colônias independentes na América do Norte, no início da história do Brasil, as antigas normas importadas de Portugal ofereciam soluções satisfatórias para a maioria das questões jurídicas da nova colônia e, em seguida, do novo país. Por exemplo, as Ordenações Afonsinas (1492) e as Ordenações Manuelinas (1512), bem como as Ordenações Filipinas (1603), foram aplicadas por vários anos no Brasil, estas últimas mesmo já durante o Primeiro Império.

Em forma e substância, entretanto, o direito brasileiro foi progressivamente se adaptando às condições específicas do país. Primeiramente, além do direito civil português, um direito rudimentar foi desenvolvido no Brasil durante o período do Primeiro Império. Surgiram as primeiras codificações brasileiras, como o Código Penal de 1830 e o Código de Processo Penal de 1832 (o primeiro Código Civil só surgiu em 1916), que auxiliaram na administração da Justiça. Em segundo lugar, além da influência do direito ibérico (de Portugal e também da Espanha), o desenvolvimento do direito brasileiro foi fortemente influenciado pelo direito produzido em países da Europa Continental, como França, Alemanha e Itália, o que certamente já sinaliza a associação brasileira com o civil law.

É realmente devido a esse contexto que o direito brasileiro está historicamente ligado à tradição romano-germânica, e que os conceitos de civil law prevalecem sobre a prática do common law. Vários ramos do direito brasileiro são codificados, embora leis não codificadas também desempenhem um papel substancial na estrutura do sistema jurídico. Obras doutrinárias têm forte influência no desenvolvimento legislativo e nas decisões judiciais. Os precedentes judiciais, até bem pouco tempo, eram geralmente apenas persuasivos (neste ponto, a coisa é hoje um pouco mais complexa).

Atualmente, todo o sistema jurídico brasileiro deve obediência à Constituição Federal de 1988 (promulgada em 5 de outubro do referido ano), a lei fundamental do Brasil. Até hoje, já foram aprovadas e incorporadas 135 emendas à Constituição Federal, além das seis emendas constitucionais de revisão e dos quatro tratados internacionais aprovados com equivalência às emendas constitucionais, totalizando, assim, 145 alterações ao texto original. De acordo com o princípio da soberania da Constituição, o restante da legislação e as decisões judiciais devem estar em conformidade com suas disposições. Isso inclui as constituições estaduais e as leis orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal, que também não devem contradizer a Constituição Federal.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 24/08/2025 - 05:00h

Eternos momentos

Por Odemirton Filho

Criança e avô caminham na praia - Imagem ilustrativa com recursos de Inteligência artificial para o BCS

Criança e avô caminham na praia – Imagem ilustrativa com recursos de Inteligência artificial para o BCS

Na semana passada fui à praia com o meu primeiro neto. Foi a segunda vez que ele viu o mar, e parece que gostou. É ainda um bebê, começando os dias de sua vida. Sentado na areia com os seus pais, ele sorria, olhava o mar, as ondas quebrando, pegava na areia; a brisa batendo em seu pequenino rosto.

Eu o olhava, de longe, apreciando esse momento tão singelo, de descobertas. E pensei no junho de minha vida. Vi-me na areia, fazendo castelos, brincando com os carrinhos. Eu estava a jogar bola com o meus primos e amigos, tomando banho de mar, desbravando o morro do labirinto.

Não sei se o meu neto continuará gostando de ir à praia, no entanto, espero que possa acompanhá-lo nessa jornada, e possamos jogar bola. Formaremos uma pequena trave, com chinelos. Ele, então, fará gols. Sorrirá. Depois, mergulharemos no mar; pegaremos “jacaré”; banharemos nossos corpos, sobretudo a alma, afastando mau-olhado.

Esperaremos as jangadas que aportarão à beira-mar e compraremos peixes. Vamos nos lambuzar saboreando picolés de chocolate. Caminharemos até a pedra do Ceará, recolhendo as conchas que embelezam a praia (as grandes, levaremos ao ouvido para escutar o barulho do mar, o fenômeno da reverberação), e afundaremos os nossos pés na areia, em ensolaradas tardes de fluxo e refluxo da maré.

Tudo isso, é claro, sob o olhar carinhoso e atento dos seus pais.

Na casa dos seus bisavós, ele vislumbrará uma linda paisagem; um mar azul, um lindo coqueiral. Na linha do horizonte, verá o Porto-ilha, que leva o nome do seu trisavô. O alpendre da casa será palco de redes armadas, onde se joga conversa fora, e se toma café coado, com bolo, grude e tapioca.

Na adolescência, talvez, ele não queira ir à praia comigo. Decerto, preferirá a companhia dos amigos e amigas, iniciando as paqueras, “as ficantes”, os namoros, na “vibe” dos doces anos da juventude. Pena que não curtirá as festas do Creda e a escadaria de Zé Félix.

Por isso, tento aproveitar esses eternos momentos, fazendo-os inesquecíveis, singulares.

Lembrei-me do poeta paraibano Ronaldo Cunha Lima, no seu livro de sonetos, Sal no rosto:

“Quando os meus filhos disserem aos meus netos o quanto eu os amava; e quando os meus netos disserem aos meus filhos que guardam lembranças minhas, e de mim sentem saudade, não terei morrido nunca:

Serei eternidade”.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 17/08/2025 - 12:42h

Um exemplo de comparação

Por Marcelo Alves

King’s College London na capital britânica (Foto: Reprodução)

King’s College London na capital britânica (Foto: Reprodução)

Na semana passada, confessei aqui o meu amor pelo direito comparado (veja AQUI), tanto como disciplina da ciência jurídica (e aí reitero a minha paixão pela academia) quanto – e sobretudo – como método de estudo/análise/trabalho do direito. Hoje, para dar um exemplo concreto dessa utilidade metodológica, farei aqui um registro pessoal.

Entre os anos de 2008 e 2012, o método comparativo foi fundamental para a elaboração da minha tese de doutorado/PhD no Reino Unido, no King’s College London – KCL, intitulada “The Brazilian Model of Precedents: a New Hybrid between Civil and Common Law?” (em português, algo como “O modelo brasileiro de precedentes: um novo híbrido entre o civil law e o common law?”). Esse título já diz mais ou menos por onde eu estava me metendo.

Lembro-me muito bem que, tomando por base direitos nacionais pré-determinados, a tese foi se desenvolvendo em quatro trilhas sucessivas: (i) descrevendo as categorias dos modelos nacionais de precedentes em questão (principalmente, o brasileiro e o inglês); (ii) destacando as diferenças e similaridades entre os modelos comparados; (iii) refletindo e criticando as semelhanças e dissimilaridades entre sistemas e conceitos, bem como os respectivos padrões de funcionalidade; (iv) discutindo as alternativas e apresentando sugestões para a melhor regulamentação da matéria.

Sendo mais específico, realizou-se uma comparação multilateral e transcultural, principalmente entre os modelos inglês e brasileiro, eventualmente com os modelos americano e francês, como importantes exemplos das tradições do common law e do civil law, respectivamente.

A comparação foi horizontal e vertical, pois comparou os modelos de precedentes atuais desses países, mas também teve, em certa medida, algumas incursões no panorama histórico.

Embora a tese tenha tido como pano de fundo uma comparação entre sistemas jurídicos em sua totalidade ou entre famílias inteiras de sistemas jurídicos (chamada macrocomparação), ela foi, na verdade, uma microcomparação, entre modelos de precedentes e categorias jurídicas de países específicos.

Ademais, foi menos uma comparação de direito substantivo e mais de direito processual, ou seja, uma comparação entre as características processuais dos modelos, justamente a forma como esses sistemas nacionais lidam com os precedentes judiciais.

Realizou-se – é importante que se diga – uma comparação integrativa e contrastiva, com foco nas semelhanças e diferenças entre ambos os modelos de precedentes.

E foi uma comparação tanto conceitual, com foco em conceitos e termos, quanto funcional, com foco nas possíveis soluções para os problemas jurídicos por meio da experiência de cada modelo analisado.

Evidentemente, a tese não propôs a simples adoção de modelos estrangeiros por quem quer que seja. A transposição de regras estrangeiras, sem discussão e adaptações prévias, invariavelmente leva a soluções inadequadas às tradições e à realidade do país receptor. Devemos restar longe dos viralatismos de ontem e de hoje.

No entanto, os sistemas judiciais de qualquer país ocidental enfrentam essencialmente os mesmos problemas básicos, que normalmente tentam resolver por meios semelhantes de justiça (embora às vezes com resultados diferentes). Na verdade, assim como Lorenzo Zucca (um dos meus orientadores no doutorado), “acredito na possibilidade de enriquecer a própria compreensão de diferentes experiências nacionais comparando-as e identificando padrões e diferenças comuns.

Por essa razão, a comparação aguça a compreensão: aponta para o papel das contingências e das práticas locais na formação de conceitos jurídicos” (em “Constitutional Dilemmas: Conflicts of Fundamental Legal Rights in Europe and the USA”, Oxford University Press, 2007). Embora consciente de que a doutrina do stare decisis apresenta peculiaridades em cada um dos países onde vem sendo adotada, uma vez alcançada a sua sistematização conceitual, se esses resultados teóricos forem precisos, países de quaisquer tradições podem considerar conjuntamente algumas medidas para melhorar seus modelos de precedentes e lidar melhor com os seus problemas.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 17/08/2025 - 11:32h

Mossoró toda vida

Por Eduardo Mendes

Elviro foi internado na última sexta-feira (Foto: Jornal de Fato)

Elviro rebouças faleceu no último dia 11 em Fortaleza (Foto: Jornal de Fato)

Morreu Elviro Rebouças.  E com ele, mais uma página da memória viva de Mossoró se fecha,  mas não sem deixar marcas.

Filho de Genésio Xavier Rebouças e Dolores do Carmo Rebouças, irmão de Everardo, Evônio, Tânia, Tércia e Evaldo, pai de Grécia Regina e avô de três netos. Elviro veio de uma linhagem de gente do bem, que fincou memórias afetivas nesta cidade.

Desde cedo, foi vocacionado à vida pública. Ainda jovem, destacou-se como orador no primeiro comício das crianças, realizado na Praça Bento Praxedes, aquela época chamada de “Praça do Codó”, durante a vitoriosa campanha de Aluísio Alves ao Governo do RN, em 1960.

Entre 1966 e 1974, atuou como vereador, colocando sua disposição a serviço da cidade. Ao lado de Niná Rebouças, ex-secretária de educação e ex-vereadora, sendo a segunda mulher mais votada da história para a Câmara Municipal, formavam um casal comprometido com Mossoró.

Foi um amigo leal do casal Carlos Augusto Rosado e Rosalba Ciarlini, com quem dividiu décadas de amizade, respeito e caminhada pública. Um exemplo raro de uma verdadeira amizade.

Sua trajetória ultrapassou a política: economista, empresário, salineiro, comunicador e líder em instituições como o CDL e o Rotary Club.

Mas sua partida nos leva de volta a uma Mossoró saudosa, cheia de memórias, personagens e sentimentos. Que cidade era essa, afinal?

Era uma Mossoró vibrante politicamente. As disputas entre ARENA e MDB ferviam, sob as lideranças maiores de Vingt Rosado e Aluísio Alves. Eram tempos de disputas homéricas, de causos memoráveis como o “Touro e o Capim”, “Fura Pneu” e “Voto Camarão”.

Mesmo quando a sociedade tentava silenciá-las, as mulheres faziam-se ouvir. Aluísio Alves as chamava de “As Senadoras”, entre elas figuras como Rose Cantídio, Edith Souto, Ildérica Cantídio, Vanda Gondim e Ozelita Cascudo Rodrigues, que davam força às campanhas verdes do MDB.

O palco dos grandes comícios era a já citada “Praça do Codó”, assistidos das residências de Seu Dix-neuf e D. Odete, Seu Quincas Duarte e D. Dolores, Raimundo Cantídio e D. Oitava, Dr. João Marcelino, Aldo Fernandes e D. Mary, Luís Bolão e Maria Neuza… Nos arredores da Capela de São Vicente, as residências de Damião Germano e Vanda Gondim, Joaquim Borges e D. Sinharinha, Antônio Néo e D. Teresa, Dr. Duarte Filho, Seu Zé Pereira..

Um cidade movida pelo  empreendedorismo de nomes como Chico Sena, Renato Costa, Humberto Mendes, Lauro Monte, Gabriel Negreiros, Enéas Negreiros, Porcino Costa, Dehuel Vieira Diniz, Sílvio Mendes, Francisco Heronildes “Nías” do Café Vitória, José Batista “Pitél” do Café Kimimo, Francisco Fernandes “Kinino”do Açúcar, Manoel Barreto, Diran Ramos do Amaral, Hugo Pinto, Tarcílio Viana, José Moraes, entre tantos outros.

Era a cidade da educação religiosa de Pe. Sátiro Cavalcanti Dantas e Irmã Aparecida, de fé firme, que se reunia na Catedral de Santa Luzia, sob o pastoreio de Dom Gentil Diniz Barreto. Orientada espiritualmente por Monsenhor Américo Simonetti e Monsenhor Humberto Bruening, sacerdotes cuja influência ia muito além do altar.

Era também a Mossoró da intelectualidade: João Batista Cascudo Rodrigues, Vingt-un Rosado, Dorian Jorge Freire, Raimundo Soares, Dr. Lavoisier Maia, Canindé Queiroz, Paulo Bedéo, Jaime Hipólito…  E dos Escóssias de Dulce, Escossinha e Lauro, sempre presentes na construção cultural e social de Mossoró.

E por uma questão de justiça, é preciso dizer: não estão aqui todos os nomes que mereciam ser lembrados. Muitos outros, homens e mulheres, também edificaram essa cidade com sua dedicação e suas lutas. Esta crônica é apenas um retrato possível, entre tantos que ainda precisam ser contados.

E ainda que eu não tenha vivido pessoalmente essa época, escrevo movido pelo respeito e pela escuta dos que viveram. O que trago aqui é memória herdada, história viva transmitida de voz em voz, de gesto em gesto.

Com a morte de Elviro, vai-se mais do que um cidadão: vai-se um elo com o passado que ainda pulsa em tantos de nós.

Todavia, a cultura e a história são perenes, e seguem sempre seguindo o seu curso natural. Essa cidade e a sua gente são a nossa alma, nossa raiz mais profunda, nossa inspiração maior.

Amamos Mossoró com o amor de quem pertence, de quem a reconhece não apenas como cidade, mas como chão de origem e destino. Como dizia o velho alcaide Dix-huit Rosado, com a firmeza de quem sabia o que dizia: Mossoró toda vida.

Eduardo Mendes é acadêmico de Direito

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domingo - 17/08/2025 - 10:38h

O misto de Zé Tomás

Por Odemirton Filho

Caminhão misto da década de 40 (Foto: Notícias do Sertão)

Caminhão misto da década de 40 (Foto: Notícias do Sertão)

Um dia desses conversando com o meu sogro, ele me contou a história de quando ia à cidade de Macau, no misto de Zé Tomás. Disse-me que a viagem era demorada, pois a estrada era de terra, e o misto ia parando de comunidade em comunidade, numa luta medonha até chegar ao destino. Saíam de Mossoró às 13h e chegavam a Macau por volta das 21h.

O misto, para quem não sabe, é um caminhão que na sua carroceria havia alguns bancos para o transporte de passageiros. Transportavam-se crianças, adultos, galinhas, cachorros, além das bagagens. Era o transporte comum de outrora, pois inexistiam ônibus ou carros de pequeno porte fazendo linha para o interior. Transporte por aplicativo? Ora, ora, isso é coisa de pouquíssimo tempo pra cá.

Nessa árdua jornada, até chegar ao destino, o misto parava em várias localidades. Segundo o meu sogro, o lastro do automóvel era carregado de macambira, sendo necessário apear os passageiros e as bagagens para descarregar a macambira que seria entregue nas fazendas e nos sítios, o que tornava a viagem bastante demorada e cansativa.

Lembro que, ao lado da igreja de São Vicente, no centro de Mossoró, havia também um misto que diariamente fazia o transporte de passageiros, porém, não me vem à memória o nome do condutor e qual o era o seu destino; isso lá pela década de oitenta.

Outro meio de transporte que também fez parte da cena urbana de Mossoró foram os ônibus de Belmont. Como a frota era antiga, aqui e acolá os ônibus davam o “prego” no meio do percurso, fazendo com que os passageiros tivessem que chegar ao destino “pegando” carona.

Na subida para o alto de São Manoel, próximo a ponte, em outros tempos as pessoas ficavam esperando carona para voltarem para as suas casas; as bicicletas e as carroças faziam parte do nosso cotidiano e, com o tempo, as motocicletas tomaram conta da cidade. Hoje, está tudo mudado; o trânsito cada vez mais caótico.

Eis, portanto, mais um pedacinho da história de Mossoró. E você, já viajou no misto de Zé Tomás? Ou andou nos ônibus de Belmont?

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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domingo - 17/08/2025 - 09:48h

O menino Elviro Rebouças

Por Assis Nascimento

Elviro, em 15 de agosto de 1974, ladeado pelo prefeito Carlos Soares e pelo governador Cortez Pereira, em Areia Branca (Foto: acervo do autor)

Elviro, em 15 de agosto de 1974, ladeado pelo prefeito Carlos Soares e pelo governador Cortez Pereira, em Areia Branca (Foto: acervo do autor)

Em meados dos anos sessenta, eu e meu irmão Chagas Nascimento ficamos admirados com um menino que vestido de paletó circulava, com certa desenvoltura, em meio às autoridades ali presentes…

O local era a rua Duque de Caxias, em frente à Maternidade Sara Kubitschek em Areia Branca. Naquele momento, o prefeito Dr. Chico Costa recebia o Governador Walfredo Gurgel e várias autoridades políticas do estado… e o menino era Elviro Rebouças, com pouco mais de 20 anos, já mostrando-se bem entrosado em tudo que era acontecimento em Mossoró e região.

Passados os anos, eu já trabalhando em F. Souto na época da mecanização das salinas, e início das operações do Porto Ilha, volto a encontrar Elviro Rebouças na salinésia, dessa feita como gerente geral do recém inaugurado Bandern, a primeira agência bancária de Areia Branca. Tinha sido inaugurada no dia 15 de agosto de 1974, pelo então governador Cortez Pereira.

Daí pra frente, passei a acompanhar seus passos mais de perto nos anos oitenta, como diretor do Banco de Mossoró, até o  encerramento da instituição, e depois ele à frente do Instituto Municipal de Previdência Social dos Serviços de Mossoró (Previ Mossoró) e de seus negócios.

Elviro era um entusiasta por tudo que se fazia na Terra de Santa Luzia. A geografia humana de Mossoró ficou mais pobre com sua partida.

Assim penso, por isso digo!

Assis Nascimento é bancário aposentado

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domingo - 17/08/2025 - 08:50h

Professor Manoel Varela

Por François Silvestre

Manoel Varela em dois registros de sua vida (Fotomontagem do BCS)

Manoel Varela em dois registros de sua vida (Fotomontagem do BCS)

Primeiro ano, Faculdade de Direito, na Ribeira dos tempos idos. À direita, o Teatro; à esquerda, o largo D. Bosco e o Colégio Salesiano. Defronte da Praça do baloneiro e após ela, a Rodoviária.

Cadeira de Economia Política, professor Manoel Varela de Albuquerque. Fora político, candidato a governador, perdeu para Dix-sept Rosado, em 1950 (59,77% a 40,23%). Advogado brilhante, mau orador, falava baixo.

Eu, Leonardo e poucos outros sentávamos na fila de trás. Nas quartas-feiras, ele fazia perquirição. A caderneta de chamada quase encostando no nariz. Começava chamando pelo sobrenome, depois o nome completo, sempre tratando de senhor.

Naquele dia foi Leonardo.

“Senhor Trindade, Leonardo Trindade Cavalcanti”.

Resposta: “Presente, professor”.

E ele: “Senhor Trindade, o que é Mercado”?

Leonardo: “Mercado seria”… foi interrompido por ele: “Não, meu filho. Mercado não seria…Mercado é. É”.

Leonardo, “Tudo bem, professor, mercado é o âmbito de atuação do comércio”.

E ele, “Não, meu filho, não venha com baboseira marxista. Mercado é o lugar onde se fazem as trocas, só isso”.

Aí eu inventei de me meter. “Professor, eu gostaria…”

Ele me interrompeu: “Você não gostaria de nada, meu filho. A hora de dizer besteira é do seu colega. Quando chegar sua hora você diz sua besteira”!

François Silvestre é escritor

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domingo - 17/08/2025 - 03:44h

Um imortal entre nós

Por Bruno Ernesto

João Almino na ACJUS fala com acadêmicos e convidados Foto: Bruno Ernesto)

João Almino na ACJUS fala com acadêmicos e convidados (Foto: Bruno Ernesto)

No último dia 11 de agosto de 2025, a Academia de Ciências Jurídicas e Sociais de Mossoró (ACJUS), recebeu em sua sede, Palácio Cultural Acadêmico Milton Marques de Medeiros, o mossoroense, acadêmico e imortal João Almino, único potiguar a integrar a Academia Brasileira de Letras (ABL), eleito em 8 de março de 2017, na sucessão de Ivo Pitanguy na Cadeira nº 22, e empossado em 28 de julho de 2017, da prestigiada academia literária fundada em 26 de julho de 1897, e presidida por Machado de Assis.

João Almino traduz e é a prova maior de que Mossoró é um berço profícuo da cultura e que tem alcance para muito além de suas fronteiras.

A simplicidade de João Almino pode ser constatada em sua trajetória de vida, marcada pelas suas vívidas lembranças de uma Mossoró que lhe acolheu aquela criança nos primeiros anos de vida até, literalmente, ganhar o mundo como diplomata.

Sua mente e criatividade literária, aliada à sua sensibilidade como um observador atento do cotidiano e das transformações sociais e interrelacionais, refletem prodigiosamente em suas obras literárias, como nos romances “As cinco estações do amor”, “Samba-Enredo”, “Homem de papel”, “Cidade livre”, “Enigmas da primavera”, “Ideias para onde passar o fim do mundo”, “Entre facas, algodão” e “O Livro das Emoções”.

Além para esse olhar literário, suas obras não-ficcionais também demonstram que o seu olhar técnico como diplomata enxerga muito além da crítica comum, como nas obras “Os Democratas Autoritários”, “A Idade do Presente”, “500 anos de Utopia” e tantas outras.

Ao contrário daqueles encontros mais formais ou ritualísticos, sua passagem por Mossoró, segundo ele próprio registrou, foi um reencontro com o seu passado, com os personagens reais que marcaram sua primeira fase de vida e, visivelmente emocionado, detalhou sua trajetória e o orgulho de ser mossoroense, demonstrando como a força de vontade e, sobretudo, uma mente brilhante e criativa, o fez trilhar um caminho sempre amparado na literatura.

Foi interessante constatar que suas memórias de infância e juventude nas ruas de Mossoró, assim como nos sítios da família, em muito se assemelha a outras tantas, como nos episódios de livramento que teve, ao quase sofrer de um choque elétrico fatal ao brincar; ao quase ser arremessado cerca a fora pela freada do cavalo em disparada, e ao ser salvo pela irmã de um atropelamento – certamente fatal – quando partiu em disparada bem em frente à sua casa. A diferença, talvez, seja que ele consiga contar esses episódios com vontade de repeti-los.

Sua passagem por Mossoró essa semana também foi marcada ao ser homenageado na vigésima edição da Feira do Livro de Mossoró, onde participou de uma sessão de autógrafos e uma conversa literária com os leitores.

Almino testemunha foto sua sendo fixada em mural da ACJUS Foto: Bruno Ernesto)

Almino testemunha foto sua sendo fixada em mural da ACJUS (Foto: Bruno Ernesto)

Aliás, em sua recepção na sede da Academia de Ciência Jurídicas e Sociais de Mossoró, registrou que foi com um prêmio literário – o seu primeiro -, que conseguiu as passagens para poder ir ao Rio de Janeiro e prosseguir com a sua formação acadêmica, graduando-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestrado em sociologia pela UnB, doutorado em História Comparada das Civilizações Contemporâneas pela École des Hautes Etudes en Sciences Sociales de Paris e pós-doutorado no Centro de Estudos Avançados da USP, além de ter sido agraciado com a Medalha de Ouro do Rio Branco, após ter sido aprovado em primeira colocação no Curso de Preparação à Carreira Diplomática do Instituto Rio Branco, o qual dirigiu posteriormente.

Numa conversa franca e direta, portanto, João Almino fez questão de registrar que valoriza todas as instituições de promoção e preservação da cultura e da literatura, pois são o contraponto e o elo entre quem produz e quem vive a cultura, e que é importante manter viva e a veia cultural pulsante de todas as formas possíveis.

De fato, João Almino é um exemplo para todos que ainda acreditam que a cultura, arte e, sobretudo, a literatura, ainda vivem, e que é necessário resistir para ser cada vez mais valorizada.

É interessante notar, todavia, que poucos veículos de comunicação registraram a passagem histórica de João Almino por Mossoró essa semana. Não por onde, isso reflete e faz constatar que a pauta literária e cultural vem perdendo espaço para outras menos proveitosas, embora resista.

Aliás, se não fosse a criatividade literária, que nos permite essa fuga da realidade controlada, se assim podemos dizer, a vida – bem ou mal – seria menos interessante para todos nós e, talvez, o narrador de “O Empréstimo”, conto do Bruxo do Cosme Velho, tivesse razão, ao dizer que podemos elogiá-la à vontade: está morta.

Bruno Ernesto e advogado, professor e escritor

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domingo - 10/08/2025 - 06:30h

Oi, meu amor!

Por Alice Lira Lima

Fotos da autora da crônica e seu pai, Caby da Costa Lima, publicadas em seu Instagram pessoal

Fotos da autora da crônica e seu pai, Caby da Costa Lima, publicadas em seu Instagram pessoal

Oi, meu amor, meu maior afeto, meu tudo.

Amanhã (hoje, domingo, 10) é aquele dia que eu entro no casulo pra que ele passe logo. A gente já sabe que não adianta dormir que a dor não passa, mas ainda não achei o melhor dos métodos pra passar sem danos por essa data [comercial, dizem] tão ‘dificultosa’, “não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares”.

Se eu contar ainda mais sobre você, ajuda? Se eu disser e rir e sentir como a maior dor da vida pode ser porque eu tive a maior das graças — e não trocaria. É graça, é tão grande, é tão incrível que nesse emaranhado todo de mundo, calhou de eu existir como “Alicinha de Caby”.

Tenho falado tanto em você. Na verdade, não lembro se houve algum período na minha vida que não tenha você como meu assunto preferido, meu protagonista de um jeito ou de outro. Não acredito que isso mude.

Sinto saudade de te dar satisfação, acredita? O que entre a gente nunca foi uma questão de idade. Quantas vezes eu reclamei do quanto você ficava atrás de mim pra saber se “tá tudo lindo, filha?” e tinha o telefone de todas as pessoas que conviviam comigo, né? Ligava pra elas, aprendia os aniversários, queria saber a história da família toda, renovava (ou não) as piadas, demonstrava esse amor imenso-desmedido por mim que eu acho que te caracteriza mais até do que os próprios tamancos.

O resultado disso é que adoro como meus amigos te amam tanto também, sabem os silêncios todos, entendem que não sou a mesma e nem poderia, e dão um jeito de fazer o que você faria/gostaria (não sei como acertam tanto).

Achei umas formas de te dar satisfação que você adoraria e, por enquanto, elas ficam entre nós. A ridícula ideia de não passar o Dia dos Pais com você eu não assino, eu não topo. Este ano, por exemplo, eu sei que estou te dando um ótimo presente e a gente tá tão junto, juntinho, estou tão certa disso, meu painho.

Mas, como o seguro do luto morreu de velho ou nem viveu, amanhã é um bom dia pra fazer pipoca e guaraná e ficar quietinha assistindo a algo entre cochilos saudáveis.

Feliz Dia dos Pais, gente.

Que seja um dia bem bonito!

Alice Lira Lima é jornalista e filha do publicitário, narrador esportivo e radialista Caby da Costa Lima

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domingo - 03/08/2025 - 10:38h

Em defesa (moderada) do juridiquês

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa com recurso de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recurso de Inteligência Artificial para o BCS

O direito está mais intimamente ligado à linguagem do que ousa imaginar a nossa vã filosofia. Nós, os juristas, trabalhamos simbioticamente com a linguagem. E, em princípio, tendo por base a mesma linguagem comum ao homem médio.

Mas essa linguagem “comum” dos homens, independentemente do idioma que se utilize, é um veículo imperfeito para a expressão segura dos conceitos jurídicos. Por isso, assim como os médicos, os filósofos, os economistas etc. desenvolveram um vocabulário próprio, os juristas também o fizeram (ou tentam fazer). Afinal, toda ciência/arte precisa de uma linguagem técnica própria.

É verdade que essa linguagem técnica dos juristas é muitas vezes cafonamente distorcida. Vira o famoso e odiado “vocabulário empolado dos juristas”, o “juridiquês”, complicado não só para os leigos, mas também, em grande medida, para nós, supostos juristas.

De toda sorte, mesmo correndo o risco de ser mal compreendido, hoje vou fazer uma defesa do juridiquês, digamos assim, moderado. Até porque acredito ser um dos grandes desafios do jurista contemporâneo (falo aqui do jurista de verdade) estudar e trabalhar melhor sua linguagem.

André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert (no texto “Direito e literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito”, que faz parte do livro “Direito & literatura: reflexões teóricas”, publicado pela Livraria do Advogado Editora em 2008), embora o fazendo com propósitos diversos dos nossos, apontam algumas características da linguagem/discurso jurídico. Essas características estão intimamente relacionadas ao caráter e aos objetivos próprios desse discurso.

Enquanto a linguagem comum é em grande medida informal, emotiva e dinâmica, o discurso jurídico busca a abstração e a generalidade, a convenção e a clareza, o comando e a segurança, a padronização dos seus conceitos e dos seus sujeitos.

De fato, o direito e o seu discurso – e isso vale muito para um país filiado à tradição romano-germânica, como é o nosso – trabalham sobremaneira com a abstração e a generalidade como características fundamentais dos códigos e das leis.

O discurso jurídico organiza a realidade através de fórmulas e procedimentos preestabelecidos, com um conjunto de significações já convencionadas, formando um sistema quase fechado, com direcionamentos, obrigações e interdições linguísticas e vocabulárias bem claras. “Intimem-se”, “não provimento”, competência, ação, parte, recurso, sentença, acórdão etc., para ficar apenas no direito processual, são alguns dos muitíssimos exemplos de fórmulas e termos jurídicos com significações já previamente convencionadas e de usos recomendados.

E do texto jurídico espera-se sobretudo um comando claro, íntegro e coerente (não podemos viver de embargos de declaração), seja ele uma decisão, uma ordem, uma interdição, uma sanção, uma medida justa, um mandado ou um mandato e por aí vai.

Ademais, nas palavras de André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert, “a função do direito é estabilizar as expectativas sociais, em busca da segurança jurídica”, o que requer, na medida do possível, a “perenização” do tempo e das coisas, o aprisionamento dos sentidos e o extermínio das emoções e dos afetos no texto jurídico.

Por fim, conforme ensinam os recitados André Karam Trindade e Roberta Magalhães Gubert, é próprio e esperado do discurso jurídico produzir/normatizar os seus diversos sujeitos/personagens – bem como investir as pessoas nos papéis normatizados, concedendo-lhes os direitos e os deveres convencionados –, cujos estatutos modelares devem servir como padrão das condutas no foro/lides jurídicas e como arquétipos esperados dos indivíduos na vida em sociedade. Aí temos tanto o juiz, o promotor, o advogado, o policial, como o pai de família, o administrador público, o comerciante, o empregado, o comprador e por aí vai, numa lista de necessários personagens/sujeitos jurídicos, linguisticamente padronizados, impossível de terminar.

Bom, para atender a tudo isso, então, viva a um moderado juridiquês!

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 03/08/2025 - 09:48h

Ao redor do buraco, tudo é beira

Por Bruno Ernesto

Traíra em açude seco (Foto: Bruno Ernesto)

Traíra em açude seco (Foto: Bruno Ernesto)

Um dos pontos esquecidos sobre o chamado “período do banditismo”, que eclodiu nos sertões profundos do Nordeste brasileiro no final do século XIX e que se intensificou até a década de 1940, foi a paradoxal relação entre o santo e o profano.

O protoreligiosismo sertanejo, com suas rezas incisivas, especialmente de proteção e fechamento do corpo, com alguma pouca incursão no sincretismo religioso, mas acentuada correlação entre a injustiça terrena e a salvação divina, foi a gênese do que se renova hoje no Brasil, sob outra tutela e cosmovisão, porém com mesmo proselitismo e interesses econômicos, sempre subjacentes.

Religiosidade nos grotões do sertão Nordestino sempre foi um fenômeno endêmico, peculiar, e de uma mistura mística difícil de compreender, e que deixou marcas indeléveis.

Nos tempos revoltosos do sertão, a mão que pedia a bênção e debulhava o terço, era a mesma que erguia o punhal, puxava o gatilho ou apertava a carne.

A religiosidade primitiva, se assim podemos dizer, guarda inúmeras facetas. O perdão nem sempre se conquista com a fé.

Lembro muito bem a colocação do escritor Honório de Medeiros, autor da importante obra “Histórias de Cangaceiros e Coronéis”, que destaca que o coronelismo foi o braço forte desse movimento, com nomes que até hoje reverberam entre nós, porém com pouca correlação de poder econômico e paralelo daquele tempo, como Veras, Maias, Saldanhas e tantos outros.

A religiosidade sempre foi esteio do povo, especialmente no meio da miséria econômica. Que o diga Cícero Romão.

O poder da palavra é exponencialmente maior do que o da força bruta, ainda que essa também lhe sirva.

No caldeirão nordestino daquele tempo, podia se dizer que, ao redor do buraco, tudo é beira. ‎

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 03/08/2025 - 04:04h

O Brasil e o quadro “Xeque-Mate” – a esperança na última jogada

Por Marcos Araújo

Friedrich Moritz August Retzsch, em pintura óleo sobre painel, 1831 (Reprodução)

Friedrich Moritz August Retzsch, em pintura óleo sobre painel, 1831 (Reprodução)

Há uma famosa pintura atribuída a Friedrich Moritz August Retzsch, artista alemão do século XIX, intitulada “Xeque-Mate”. A obra retrata uma cena tensa: de um lado da mesa, o Diabo triunfante; do outro, um jovem abatido, desesperançado. No tabuleiro de xadrez entre eles, parece não haver mais escapatória: o Diabo sorri, certo de sua vitória, enquanto o jovem vê todas as peças alinhadas contra ele. Mas, a despeito das aparências, há uma peça esquecida: o rei ainda não foi vencido. Existe uma última jogada.

Esse quadro tem servido, ao longo dos tempos, como metáfora poderosa da luta entre o bem e o mal, entre o desespero e a resistência. E talvez não haja figura mais apropriada para ilustrar o momento que vivemos no Brasil.

Vivemos um tempo em que o tabuleiro nacional parece dominado por forças hostis à racionalidade, à liberdade e ao senso comum. A política se vê encurralada por polarizações que se retroalimentam. A sociedade, fraturada, busca identidade em extremos. E o Direito — última trincheira da civilidade — parece por vezes cooptado por conveniências ideológicas, ativismos institucionais ou silêncios convenientes.

Em nome de causas, esquecem-se os princípios. Em nome da ordem, rasga-se o devido processo legal. Em nome do bem comum, toleram-se abusos que seriam intoleráveis em qualquer democracia madura. O povo — como o jovem do quadro — observa o tabuleiro com crescente desesperança, como se os lances já tivessem sido todos feitos e a derrota fosse inevitável. Mas talvez, como no quadro de Retzsch, o jogo ainda não esteja perdido.

Conta-se que um grande enxadrista, ao observar essa pintura, exclamou: “O jogo ainda não acabou! O rei ainda tem uma última jogada!”.  A observação partira do lendário campeão de xadrez Paul Morphy (1837–1884). Essa frase, que virou quase uma lenda, carrega um ensinamento poderoso: a esperança não está em negar a gravidade do cenário, mas em enxergar além do óbvio. O que parece xeque-mate pode ser apenas aparência — se houver sabedoria, coragem e fé.

O Brasil precisa reencontrar essa última jogada.

Talvez ela esteja na redescoberta dos valores republicanos, na restauração dos freios e contrapesos constitucionais, na recuperação da confiança entre as instituições e os cidadãos. Talvez esteja na sociedade civil, que pode — e deve — abandonar a passividade e exigir ética, técnica e decência na política. Talvez esteja na juventude, nos educadores, nos pequenos atos de resistência ao cinismo e à mentira.

A democracia brasileira não pode ser reduzida a um duelo de torcidas nem a um teatro de vaidades togadas. É tempo de nos lembrar de que o jogo da história nunca está encerrado enquanto houver um povo disposto a lutar, pensar e crer.

Como no quadro de Retzsch, pode parecer que o Diabo venceu. Mas o rei ainda pode se mover. Ainda há uma última jogada…Nas mãos do povo.

Marcos Araújo é advogado, escritor e professor da Uern

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domingo - 27/07/2025 - 11:00h

Vai saber?

Por Bruno Ernesto

Amsterdam Tulip Museum Foto: do autor da crônica)

Amsterdam Tulip Museum (Foto: do autor da crônica)

Sempre tive a certeza de que a história pode ser muito irônica. Por vezes, parece até proposital. Não duvidemos. Todavia, embora não acredite muito em coincidências históricas, talvez possa acontecer.

Talvez isso aconteça de propósito para reforçar a célebre frase do filósofo George Santayana, de que “Aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. Se bem que, por vezes, vale a pena. Pelo menos por um instante, afinal a vida é um fluxo e um refluxo.

Por tal razão, é imprescindível que a história registre os momentos cruciais da humanidade. Eis um dos grandes problemas de se compreender a história.

Não se deve estudá-la de modo isolado, como se tal ou qual evento histórico tenha se dado isoladamente, sem considerar o contexto de suas origens e seus desdobramentos, de maneira que é imprescindível que se tenha uma visão global e interconectada entre os fatos, ainda que se analise uma pequena porção e de forma particular.

Afinal, para se compreender a parte, é preciso compreender o todo. Por isso temos os museus, os monumentos históricos e toda sorte de registros históricos.

Quem tem familiaridade com os meus textos – ainda que não os valorize e os leia na surdina – pode perceber que sempre abordo experiências de fato vividas por mim. Ainda que num pequeno trecho deles.

A primeira vez que estive em Amsterdam, a caminho da casa de Anne Frank, na mesma rua Prinsengracht, por acaso avistei do outro lado do canal, o Museu das Tulipas de Amsterdã e, claro, imediatamente lembrei do famoso caso da Crise das Tulipas, considerado o primeiro caso de bolha especulativa da história.

Para quem não lembra, no tempo de Rembrandt, enquanto os holandeses ocupavam o Brasil, produzindo toneladas de açúcar para enviar para uma Europa sedenta dessa especiaria, não se sabe por que cargas d´água, alguém disse que as tulipas eram o novo ouro dos Países Baixos.

Bastou tal previsão mercadológica para, em 1634, iniciar uma descomunal corrida pelos bulbos de tulipa. A loucura foi tão significativa e sem precedentes, que teve quem vendesse todo o patrimônio para investir nesse novo mercado. Inclusive herança de gente viva.

O açúcar – especialmente o saído da região Nordeste brasileira – que outrora era considerado um símbolo de poder e status para quem podia consumi-lo regularmente, dado o seu alto valor de mercado, chegou a ponto de se criar uma horrorosa representação simbólica-social de que ter os dentes careados e pretos por consumir açúcar era o ápice da ostentação.

Todavia, no caso das tulipas, no ano de 1637, bastou um produtor de tulipas dizer que não poderia entregar a produção aos compradores daquele mercado futuro conforme combinado, que o mercado evaporou, causando a ruína imediata de todos os que acreditaram naquele sonho, sendo o impacto tão grande, e a lição tão duradoura, que até hoje os holandeses são vigilantes com as suas economias, embora seja um país economicamente estável, e são ultra céticos em relação a aventuras financeiras.

No nosso caso, após o estouro da bolha especulativa com cheiro de tulipa, o açúcar retomou o seu protagonismo, e, desde então, continua a adoçar nossas vidas.

Aliás, retomando a ironia histórica que suscitei acima, na última semana – de repente, quase como sem razão, sem motivo aparente, sem lógica, sem pé nem cabeça -, eis que o açúcar mostrou o seu lado especulativo, tal qual aconteceu com as tulipas no tempo de Rembrandt.

Tão brilhoso, açucarado, vermelho e saboroso que, tal qual o bulbo de uma tulipa, cabe confortavelmente na palma de nossa mão; e o frenesi em sua busca nas pâtisseries só é comparável ao da Crise das Tulipas.

Todavia, embora carregue no nome um sentimento totalmente intangível, desta vez, tornou-se tangível e real, pelo menos até que alguém diga que não poderá mais entregá-lo como prometido. Não o doce, porém o sentimento.

Se não o mesmo enredo, talvez a mesma história. Vai saber?

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 27/07/2025 - 04:02h

Sob o pé de seriguela

Por Odemirton Filho 

Foto ilustrativa - por Mário Franco

Foto ilustrativa – por Mário Franco

A casa onde eu morava quando era criança ficava na rua Tiradentes, no centro de Mossoró. Na rua por trás, José de Alencar, era a padaria do meu pai. Havia ligação entre a casa e a padaria. Eu passava o dia pra lá e pra cá.

A casa tinha um primeiro andar. No pavimento superior, ficavam os quartos, no inferior, sala e cozinha. No quintal existia uma simples e pequena piscina, onde eu, minhas irmãs, primos e amigos tomávamos banho. Ali, aprendi a nadar.

Havia, também, um frondoso pé de seriguela. Sob a árvore, ficávamos conversando e brincando. Nos finais de semana, juntava-se uma ruma de meninos para tomar banho de piscina e comer as seriguelas. Eu gostava das verdes, minhas irmãs, das maduras.

Às vezes, meu pai reunia alguns familiares e amigos para tomarem umas sob o pé de seriguela. Entre outras músicas, ouvíamos meu pai cantar Nelson Gonçalves, “boêmia, aqui me tens de regresso”, e o Calhambeque, de Roberto Carlos, sua preferida. Eu via emoção em seus olhos, talvez, por relembrar da Mossoró do seu tempo de rapaz.

Meu tio Albecir, da Banda Bárbaros, acompanhava com o violão. Tio Alcides cantava O Menino da Porteira. Tio Ezanildo, lá pra tantas, levantava-se e fazia um discurso. Preocupações da vida? Deveriam existir, é claro. No entanto, curtia-se a vida, como deve ser.

Quando era adolescente convidava um bocado de amigos lá pra casa. Como sabemos, para a juventude tudo é diversão; reunir-se com amigos, paquerar, os namoricos, os passeios sem a responsabilidade da vida adulta.

Certa vez, num comício da vitória de um candidato, tomei uns goles a mais de vodka com Fanta Laranja. Os meus amigos foram me levar em casa e, para não perder o costume, mergulharam na piscina, de madrugada.

Hoje, aqui ou acolá, lembro-me, com saudade, da casa da rua Tiradentes, na qual vivi os dias da minha infância e adolescência. Dos momentos ali vividos forjou-se o homem com inúmeros defeitos e, quem sabe, alguma virtude.

De vez em quando, vem à memória o quintal da minha infância. E eu ainda sinto o sabor das seriguelas.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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