domingo - 16/11/2025 - 11:00h

Bichos de sete cabeças

Por Bruno Ernesto

Gatos da Rua Chile em Natal, em 10 de novembro de 2025 (Foto: Bruno Ernesto)

Gatos da Rua Chile em Natal, em 10 de novembro de 2025 (Foto: Bruno Ernesto)

Que os gatos são místicos, os egípcios já sabiam disso há mais de cinco mil anos. E se você reparar bem, talvez o segredo deles seja levar uma vida sem muitos protocolos.

Essa aura, e o estilo de vida deles, bem que poderiam ter sido aplicadas indistintamente aos humanos. Talvez nos poupasse de muita coisa a longo da vida. Do dia já seria excelente, convenhamos.

A outra fama de que eles são boçais e que desprezam as pessoas, é muito injusta. Quer dizer: nem tanto. Às vezes é bom nos comportarmos como os gatos e, em certas situações, não seria má ideia ver, fingir que não é com você e ignorar solenemente. É plenamente compreensível.

Quem convive com gato, sabe que nada fica no mesmo lugar se ele achar interessante derrubar, e nem um estofado se livrará das suas unhas se ele achar que ali é um bom lugar para relaxar.

Todavia, se ele quiser passar despercebido, ele singrará por entre plantas, copos, garrafas, livros, móveis e cristais e você jamais saberá que ele esteve ali.

Na hipnagogia, enquanto você tenta dormir às dezesseis horas do domingo, após ler três ou quatro folhas de um livro que você teima em não terminar, talvez ele mie escandalosamente ao pé da porta até você levantar e ir lá abri-la para, depois, solenemente, ele desistir de sair e, ao invés, caminhar vagarosamente para a cozinha, para ali cochilar numa cadeira; não sem antes lhe encarar de soslaio e bocejar, como quem diz:

 – Apague a luz e saia daqui.

– De meia em meia hora venha me ver.

– Talvez me esconda e você pensará que fugi. Ficarei lhe observando lá de cima do armário enquanto você corre pela casa e me procura por todos os cantos. Menos neste.

– Talvez eu mude de ideia, se não cochilar.

Quem é meticuloso demais, irredutível demais, insistente demais, certo de tudo demais, compreensível demais, clemente demais, sorridente demais, triste demais, aberto demais, fechado demais e tudo demasiadamente demais – até mais que o próprio pleonasmo -, precisa de um gato para se aprumar.

Não faça um bicho de sete cabeças por tudo, pois a vida requer outro ritmo e nada há de errado em mudar de ideia sem dar explicação.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 16/11/2025 - 10:34h

Escrita

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa

Arte ilustrativa

Andrew Robinson, em “The Story of Writing” (Thames & Hudson, 2007), afirma: “A escrita está entre as maiores invenções da história humana, talvez a maior delas, pois tornou a própria história possível. Como empresa, é realmente algo extraordinário. Um texto em uma língua estrangeira, incompreensível para nós, revelador para outrem, nos prova a dimensão da nossa conquista. A decodificação de uma “escrita morta”, como os hieróglifos egípcios ou o sistema cuneiforme do antigo Oriente Médio, isso nos parece um milagre. Mas como os primeiros escribas de 40005000 anos atrás aprenderam a escrever? Como ensinaram essa “magia” aos sucessores? Como esse ou aquele sistema perdurou? Com que rapidez ele se espalhou e chegou até onde chegou?essas são algumas perguntas que podemos fazer.

Sem a escrita não haveria a história, é fato. Em quase todas as civilizações, os antigos escribas foram os nossos primeiros historiadores, transmissores de uma cultura que seria, em larga medida, na ausência deles, perdida. Como aduz Fabio Mestriner, em “4 pequenas histórias que juntas mudaram o mundo” (M.Books, 2014), “produzir e guardar documentos escritos é uma prática adotada desde o estabelecimento das primeiras civilizações, procedimento este que está ligado de forma definitiva à evolução da sociedade humana. Os chineses antigos têm um ditado que ilustra com muita precisão este procedimento e que nos diz: A pior tinta ainda é melhor que a memória mais afiada, afirmavam eles em sua milenar sabedoria. O professor e linguista francês Georges Jean definiu da seguinte forma este conceito como A Escrita, Memória dos homens, título de um de seus livros”.

Para aqueles que militam no direito, a importância da escrita se mostra também visível. É verdade que devemos privilegiar o princípio da oralidade no direito (processual, em especial), mas a escrita continua sendo a base mais eficaz para o registro permanente de fatos,testemunhos, argumentos, pedidos e decisões, sobretudo quando extensos e complexos eles são. E cito aqui, para misturar direito e literatura, passagem de “O advogado do diabo” (numa edição da Rio Gráfica, 1986), de Morris West: “Nada de escritos. Uma pena! Do ponto de vista judicial, as coisas escritas por um homem constituíam a única indicação segura de suas crenças e intenções e, segundo rigorosa lógica de Roma, eram mesmo mais importantes do que seus atos. (…) Mas, morto o indivíduo, quem revelaria os segredos do seu coração?”.

Todavia, há quem enxergue na supervalorização da escrita sérios problemas. Um deles, talvez o mais paradoxal, seja a atrofia da nossa memória e do aprendizado dela decorrente (hoje, facilmente registrados em nossos dispositivos móveis, não memorizamos mais sequer os números dos telefones das pessoas mais próximas e queridas). Sobre isso, George Steiner, em “Lições dos mestres” (Record, 2005), bem anota: “A escrita induz ao esquecimento, a uma atrofia das artes da memória. Mas é justamente a memória, a ‘Mãe de todas as Musas’, o dom humano que possibilita toda a aprendizagem. (…) O texto memorizado interage com nossa existência temporal, modificando nossas experiências, sendo dialeticamente modificado por elas”.

De fato, no passado (e, excepcionalissimamente, até bem pouco tempo), certas pessoas eram tidas como “livros vivos”, cujas “páginas” sabidas de cor podiam ser consultadas por outrem, em busca de consolo, sabedoria ou mesmo de prazer. Não coincidentemente “a grande literatura épica, os mitos fundadores começam a se perder com o ‘avanço’ da escrita. Por tudo isso e muito mais, o desaparecimento da memorização no ensino hoje em dia é uma estupidez lamentável. Está sendo atirado ao mar o lastro vital da capacidade de pensar”.

Sobre esse e outros paradoxos do desenvolvimento da escrita conversaremos mais um pouco. Rogo apenas um tico de paciência.

Marcelo Alves Dias de Souza é orocurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 16/11/2025 - 09:32h

Da janela lateral

Por Odemirton Filho

Foto de produção própria do BCS

Foto de produção própria do BCS

“Vejo uma igreja, um sinal de glória, vejo um muro branco e um voo pássaro, vejo uma grade, um velho sinal” (…)

Na bela e antiga canção de Lô Borges (falecido recentemente) e Milton Nascimento abre-se passagem para a licença poética, uma vez que podemos viajar, interpretar e inundar a nossa alma de uma leve brisa. Dizem que os “elementos como igreja, muro branco e voo pássaro, reforçam o clima contemplativo e nostálgico, lembrando a infância e a vida no interior, mas também apontam para o desejo de liberdade e esperança em tempos difíceis”. (Disponível em //www.letras.mus.br/lo-borges/47027/significado.html).

Sim. Da janela do meu quarto eu posso ver o mundo de muitas formas e cores. Posse enxergar uma igreja e tê-la como um local no qual encontro conforto para o meu coração, aumentando a minha fé. Dependerá da crença de cada um. Nessa sentido, em cada vitória ou derrota que encontro no decorrer da vida, pode ser um sinal de glória para o meu crescimento pessoal.

De longe, também, eu posso enxergar um muro branco, e nele, começar a desenhar e escrever a minha história de vida, fazendo-a colorida e pulsante.

Lembro, quando era criança, ali pelos arredores da Igrená de São Vicente, ao cair da tarde, eu gostava de ver o voo das andorinhas, que bailavam lindamente no ar. Hoje, no bairro onde moro, inúmeras vezes escuto o cantar de várias espécies de pássaros, chamando-nos para viver. No entanto, há quem fique chateado com a sinfonia dos pardais.

Da janela de minha vida, posso enxergar grades que aprisionam, que me impedem de correr em busca dos meus objetivos. Posso, em consequência, fica preso ao meu medo, a minha angústia, ao meu desalento perante o mundo. Muitas vezes, é de bom tom procurar ajuda profissional para abrir as grades da prisão do nosso eu.

Doutro lado, ao olhar pela janela da alma, posso vislumbrar múltiplas possibilidades para a minha vida. É claro que não se pode julgar ninguém, pois cada pessoa sabe o peso que carrega sobre os ombros.

Assim, da janela do meu quarto eu posso ver um velho sinal. Ele pode estar verde, nos mandando seguir avante nos nossos sonhos; pode estar amarelo, para que tenhamos cautela ao tomar alguma decisão na vida. O sinal, enfim, pode estar vermelho, alertando-nos que é o momento de colocar o pé no freio, esperar e refletir; somente depois devemos seguir o nosso caminho.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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domingo - 16/11/2025 - 05:00h

Memórias da República Livre do Patamar da São Vicente

Por Jânio Rego

Tela do artista Laércio Eugênio, colocando em evidência a Igreja de São Vicente em Mossoró

Tela do artista Laércio Eugênio, colocando em evidência a Igreja de São Vicente em Mossoró

Como era o nome dele? Trabalhava na loja de peças de Yoyô Almeida. A memória turvou o nome do personagem da infância mas fixou a cena que compartilhei com Marcilio C. Nascimento.

Depois do almoço ele passava no rumo do bairro da Paraíba, morava por trás da capela de São Vicente. Quando passava, os meninos já estavam sentados na sombra das castanholas da calçada de Dona Helena, conversando, chupando picolé de creme holandês, preparando alguma aventura pelos arredores.

A rua Francisco Ramalho vazia, o patamar da igreja torrando ao sol . Como era o nome dele? Falava com eles, até parava um pouco, e caminhava sem pressa de empregado do comércio, quando à altura da casa de Pedro Borges acendia um invariável cigarro, tão forte que sentíamos o cheiro até ele dobrar a esquina.

Como era o nome dele?

Além de lembrar de ‘Edson Panqueca’, Marcilio lembrou detalhes da família e do destino dele, e ainda me trouxe ao telefone, para falar comigo, ao vivo, mais três personagens da minha vida mossoroense: Francisco Moreira, Marcos Medeiros e Ricardo Benjamim.

Foi um presente de fim de ano.

Boas festas.

Jânio Rêgo é jornalista

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domingo - 09/11/2025 - 07:02h

Um pouco de ontem

Por Odemirton Filho

Foto ilustrativa

Foto ilustrativa

“A criança que fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim ser quem sou; mas hoje, vendo que o que sou é nada, quero ir buscar quem fui onde ficou”. (Fernando Pessoa).

Vez ou outra, lembro-me da criança que fui; de poucas palavras, poucos amigos. Vivi os dias da minha infância na rua Tiradentes, no centro de Mossoró. Ali, o adulto de hoje foi forjado.

Os dias corriam devagar, quase parando, divididos entre a casa onde morava, a padaria dos meus pais e o colégio. À noitinha, gostava de jogar bola com os meninos da rua e ouvir histórias de “trancoso”. As férias, como já escrevi em inúmeras oportunidades, era na praia de Tibau, meu xodó.

Lembro que os dias na padaria começavam ainda de madrugada. Meu pai, por inúmeras vezes saiu de madrugada para ir buscar outro funcionário, porque o padeiro do turno, depois de tomar umas, faltava ao serviço. Então, era um aperreio para conseguir um substituto e conseguir começar o dia com uma nova fornada de pães.

Durante o período da manhã, depois de fazer o dever de casa, eu corria pra padaria a fim de ver os funcionários, literalmente, com a mão na massa, trabalhando incansavelmente com o cilindro. Recordo-me muito bem do padeiro João Camilo, um mestre em sua arte.

A massa depois de pronta era colocada em um enorme forno a lenha. Ao sair do forno, em alguns pães, passava-se um pincel com uma espécie de melaço, transformando-o no famoso “pão doce”. Maria Arimar Braga, funcionária antiga da padaria, fazia os bolos e doces.

O que mais apreciava, entretanto, era a bolacha sete capas, enquanto ajudava a encher os pacotes, saboreava algumas.

Cheguei, algumas vezes, a atender no balcão. O final da tarde era o horário de maior movimento, quase não dava conta atender a freguesia. Outra vezes, porém, quando tinha mais idade, ficava no caixa, recebendo dinheiro e passando troco. Nada de cartão de débito, crédito ou PIX. Era dinheiro “vivo”.

Duas ou três Kombis faziam a entrega dos pães em alguns pontos de revenda nos bairros mais afastados da cidade. Às vezes, vendia-se muito; a sobra, chamávamos de “boia”. Final de semana, normalmente no sábado à tarde, fazia-se o pagamento dos funcionários. Inúmeras vezes, restava-nos uma quantia mirrada de dinheiro.

Havia um senhor, não lembro o nome, que toda tarde passava para comprar pão. Ele chegava no seu carro potente, descia, comprava e ia embora. Criança, eu ficava sentado na calçada, vendo-o, e dizia a mim mesmo que, um dia, teria o meu carro pra ir comprar pão em uma padaria e levar para minha mulher e meus filhos. Um inocente sonho de criança. Mas, quem não teve um sonho quando era criança? Eu tive. Muitos. Não deixei de sonhar, é claro, no entanto, sonho com os pés no chão.

Por isso, aqui e acolá, ao buscar a criança que um dia fui, lembro um pouco do ontem. Dos meus medos e sonhos; das minhas alegrias e tristezas. E hoje, agradeço a Deus pelo pão nosso de cada dia.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos 

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domingo - 09/11/2025 - 06:22h

Descanso

Por Bruno Ernesto

Cemitério São Sebastião no Centro de Mossoró (Foto: Bruno Ernesto/02-11-2025)

Cemitério São Sebastião no Centro de Mossoró (Foto: Bruno Ernesto/02-11-2025)

Visitar cemitérios vai muito além de prestar homenagem aos entes queridos, seja ele um familiar, um amigo, um ídolo ou um anônimo.

Nos últimos anos, uma pesquisa que venho gestando com muito cuidado, me leva constantemente aos cemitérios por onde ando, e procuro registrar o máximo possível em cada oportunidade.

Inegavelmente já vi cenas muito tristes, lamentáveis, serenas, curiosas, mas também engraçadas. Assim dando continuidade à pesquisa, no último Dia de Finados, fui ao cemitério São Sebastião, o cemitério velho de Mossoró, para fazer mais alguns registros.

Percorri diversos corredores e ruas, cada vez mais difíceis de andar diante do amontoado de túmulos, e ali pude observar atentamente os visitantes e os túmulos. Alguns deles continuam sem qualquer visita. Muitos já abandonados, sequer caiados.

Encontrei várias pessoas conhecidas que agora lá repousam. Vi alguns de meus ex-professores do Colégio Diocesano. Vários amigos, personalidades e conhecidos de vista. Cada um deles evocou uma lembrança.

Quando já me preparava para ir embora, enquanto me posicionava para fotografar uma belíssima estátua, ao longe, avistei uma pessoa gesticulando incisivamente para duas senhoras que estavam sentadas aproveitando a sombra de uma árvore ao pé de um túmulo.

Como já beirava o meio-dia, tive dificuldade de achar um bom ângulo para fotografá-la, de modo que tive que me aproximar cada vez mais daquelas senhoras. Foi então que percebi que a pessoa que gesticulava elevava o tom da voz cada vez mais, num ataque de fúria e disparou:

– Era cabra ruim! Pior que fel!

– Não é porque tá morto e enterrado aí, que vou passar a mão na cabeça!

– Deu um trabalho da peste para a família! Foi é um alívio!

– Quem descansou fomos nós!

Não sei quem eram – Nem os vivos nem o morto -, nem interrompi aquela conversa. Apenas escutei, tirei a foto da escultura e fui embora.

“Está morto, podemos elogiá-lo à vontade”, a ironia do Bruxo do Cosme Velho, não veio a calhar.

Que descansem em paz.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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  • Repet
domingo - 02/11/2025 - 06:02h

Eliete Amaral – a elegância da alma

Por Vicente Neto

Eliete Amaral, falecida na última sexta-feira (Foto: Waltemberg)

Eliete Amaral, falecida na última sexta-feira (Foto: Waltemberg)

Há pessoas que passam pela vida como brisa suave, e há as que a atravessam como vendaval de propósitos. Não uma força destrutiva, mas uma presença que reorganiza tudo ao seu redor, com determinação, firmeza, sofisticação, e uma elegância que nascia com ela todos os dias.

Inimiga dos feriados, Eliete não se rendia ao ócio. O trabalho era sua devoção cotidiana, sua forma de honrar a vida. Até na hora da partida ela o fez num fim-de-semana, para não atrapalhar o nosso dia de trabalho.

Vulneráveis, invisíveis, esquecidos: ela os acolhia com a delicadeza de quem sabe que o amor não precisa de plateia.

Mas foi naquele momento ao me apresentar a Jacqueline, que ela revelou a sua estatura de gente de verdade ao advertir a sua filha: “Não vá magoar o meu amigo.”

Sublime declaração de amor.

Não ao amor romântico, mas o amor que protege, que cuida, que reconhece o valor do outro e exige respeito. Foi ali que entendi: eu seria parte dela para sempre.

Curvada apenas diante de Deus,“Pela vida e pela fé” era o seu mantra. E ela o viveu com a consciência do dever cumprido. Não como quem coleciona méritos, mas como quem sabe que amar é o único legado que resiste a tudo.

Zezito foi seu primeiro e único verdadeiro amor. E isso diz tudo. Porque Eliete não era feita para amores passageiros. Foi feita para o eterno.

Hoje o mundo está menos:
Menos resoluto.
Menos pragmático.
Menos alegre.
Menos elegante.
Menos Eliete.

Mas quem foi filho do seu coração (como ela se referia a mim) sabe que ela não partiu, ela se perpetuou. E permanecerá em cada gesto de coragem, em cada prato bem feito, em cada ato de fé que resistirá ao tempo.

Eliete Amaral (veja AQUI) não será lembrada. Será sentida. Sentida como se sente o perfume de uma flor que já não está na roseira, mas sua essência permanecerá no ar nos inebriando para todo o sempre.

Beijo do seu filho do coração.

Vicente Neto é advogado

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domingo - 02/11/2025 - 05:26h

Sinalagma

Por Bruno Ernesto

Bodega no Mercado Central, Governador Dix-Sept Rosado (Foto: Bruno Ernesto, 10/2025)

Bodega no Mercado Central, Governador Dix-Sept Rosado (Foto: Bruno Ernesto, 10/2025)

Quem algum dia imaginaria que comprar um simples sabonete Senador ou Alma de Flores viraria sinônimo de burocracia?

Desde que me entendo por gente, ouço a famigerada palavra burocracia reinar no nosso dia a dia. Aquele poder que, originalmente, emanava de um tampo de madeira, uma cara sisuda, uma caneta com tinta perpetua e um carimbo chancelador.

Quando falamos em produção, interpretação e aplicação da lei, o Brasil é uma aberração sem precedentes. A iniciar pela incalculável quantidade de leis. Talvez não seja exagero dizer que Franz Kafka seria um escritor amador e passaria vergonha se fosse brasileiro, levando em conta a teratologia jurídica tipicamente nacional.

Há quem diga que essa nossa burocracia se dá exclusivamente em virtude de termos uma infinidade de leis. Assim, no final dos anos 1970 e meados dos 1980, como ninguém aguentava mais tanta burocracia por aqui, criaram o Programa Nacional de Desburocratização.

Para não fugir à tradição, criou-se um Ministério da Desburocratização. Pura ingenuidade; brasileiro adora burocracia. A burocracia é patrimônio imaterial nacional, que já impregnou nosso ácido desoxirribonucleico.

Só quem tem a infelicidade de dominar a interpretação das leis brasileiras, sabe que é pouco provável que essa burocracia finde. Muito pelo contrário. Ela é indispensável à manutenção de uma elite, se não intelectual, funcional.

O livro “Burocracia e sociedade no Brasil colonial”, de autoria do professor e pesquisador da Universidade de Yale, o americano STUART B. SCHWARTZ, é um livro que reputo indispensável para entendermos o quão intrincado tornou-se tudo no Brasil quando o assunto é processo e procedimento formal, pois é o poder e controle de um sistema de falsa qualidade e mérito.

Se houve uma evolução? Sim, claro! Saímos do papel e migramos para o meio eletrônico. Só.

Até o comércio, uma atividade estritamente sinalagmática, cujo negócio é um dos poucos que pode se concretizar sem que o comprador e o vendedor falem alguma coisa um para o outro, ou até mesmo nem olhem para si estando frente a frente, não é mais o mesmo.

Se você for comprar qualquer coisa hoje, lhe pedem, no mínimo, número do CPF, inscrição no programa PIS/PASEP, número de identidade, número do cartão fidelidade, e-mail, número do telefone.

Se quiser aproveitar a oferta do dia do setor de frios, material de limpeza ou da padaria, precisa ativar a promoção no aplicativo do estabelecimento comercial – por código, item e setor – não sem antes ter que fazer um cadastro bioeletromecânico, enquanto o operador do caixa aguarda o sinal da internet voltar, e lhe manda digitar o número do CPF, código de fidelidade, dia, mês e ano de nascimento.

Se quiser participar do sorteio do prêmio no final do mês, precisa fazer tudo novamente e, assim, receber diminutas cartelas para preencher manualmente e depositar numa urna que é inlocalizável.

Além disso, há um fato novo: você só consegue efetuar a próxima compra se avaliar a compra anterior.

Hoje não se pode mais entrar mudo e sair calado de um estabelecimento comercial, pois exige-se tanta informação e passos para comprar ou ter desconto, que é mais fácil sair sem pagar e ter que se explicar à autoridade policial na delegacia mais próxima. Qualquer dia vou testar.

Toda vez que me deparo com essas burocracias no comércio local, lembro de Jalles Costa, meu saudoso professor de Sociologia do Direito, que já era um senhor com idade avançada naquela época, e que, certa vez, nos contou um episódio um tanto curioso.

Após passar as compras no caixa de um determinado supermercado em Natal, lhe falaram que para concluir aquela compra era necessário fazer um cadastro.

Lá para as tantas, a operadora do caixa perguntou o atual endereço dos pais dele. Muito espirituoso, disse que se ela reparasse bem nele – um idoso -, não haveria necessidade dessa informação. Todavia, a operadora insistiu que a informação era indispensável para concluir o cadastro.

Não insistiu e concordou em fornecer o atual endereço dos seus pais, e quando a operadora do caixa pediu novamente tal informação, disparou: Rua 13 com 14, do cemitério do Alecrim.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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  • Art&C - PMM - PAE - Outubro de 2025
domingo - 26/10/2025 - 09:00h

O Santo ofício

Por Bruno Ernesto

Santa Verônica, Altar-Mor Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas/MG (Foto: Bruno Ernesto, 10/2025)

Santa Verônica, Altar-Mor Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas/MG (Foto: Bruno Ernesto, 10/2025)

Muito embora a história de Aleijadinho como artista seja encantadora e de superação, como como um bom cristão, também foi uma vida de provação.

Como registrei anteriormente (//blogcarlossantos.com.br/nem-tanto-nem-santo/) , um bom artista visual, seja ele pintor ou escultor, precisa, além domínio da técnica, de um inegável, apurado e profundo conhecimento histórico.

E quem põe os olhos das obras dele pode constatar que elas são inigualáveis, tanto do ponto de vista técnico, quanto da expressividade histórica.

Embora haja uma tendência a se concentrar todos méritos do barroco brasileiro para Aleijadinho – o que não seria exagero, convenhamos -, claro que ele não foi o único artista barroco consagrado no século XVIII, existindo outros tantos artistas com altíssimo nível, como, por exemplo, Mestre Ataíde, autor do Retábulo-mor do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas/MG.

Todavia, a condição de mestre alçada por Aleijadinho foi muito além do seu dom artístico, também tendo demonstrado que foi um personagem muito à frente do seu tempo no que se refere ao pensamento.

Quando suas limitações físicas foram avançando, seu  ajudante, um escravo de nome Maurício, passou a elaborar e adaptar as ferramentas utilizadas por Aleijadinho, de modo que ele pudesse continuar a produzir sua arte.

E o que podemos ver até hoje de sua arte, foi produzida justamente após o agravamento de sua condição de saúde. Daí seu cognome. Contudo, pouco se registra que ele dividia tudo que ganhava com Maurício.

Se hoje seria impensável que um ajudante pudesse ser meeiro de um grande artista, o que se falar da meação de ganhos com um escravo em pleno século XVIII? Era um escândalo.

Se aquele corpo definhado fisicamente não foi suficiente para suplantar a sua arte e, sobretudo, força de vontade, sua atitude de reconhecimento e isonomia, lhe garante ainda mais o reconhecimento como um ser humano generoso e transformador.

Talvez – quem sabe – tenha posto em prática o que tão bem conhecia, mas a seu modo, já que não se deve conformar com este mundo, mas transformá-lo pela renovação da mente.

E nada mais confrontador com o padrão, que pôr em prática o que se prega. Afinal, não adianta esculpir santos e não praticar o que se defende.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 26/10/2025 - 08:24h

Um inimigo dos loucos

Por Marcelo Alves
munch-henrik-ibsen-at-grand-cafe - Henrik Ibsen Henrik Ibsen (1828-1906), o genial dramaturgo, nasceu numa pequena vila portuária da Noruega. Mas o seu teatro (ele foi também diretor) e a sua poesia não mimetizaram a gelidez da sua terra natal. Ao contrário, ele foi um dos precursores do realismo e do modernismo nas artes cênicas. Fez escândalo, na verdade. Era um “denunciante” de falsos moralismos e coisas que tais.

Algumas de suas peças são conhecidíssimas: “Peer Gynt” (1867), “Casa de Bonecas” (1879), “Um Inimigo do Povo” (1882), “O Pato Selvagem” (1884) e por aí vai. Alguns dizem ser ele, no seu métier, o segundo, apenas atrás de Shakespeare (1564-1616). E gigantes do teatro, gente como Gerhart Hauptmann (1862-1946), George Bernard Shaw (1856-1950), Oscar Wilde (1854-1900) e Eugene O’Neill (1888-1953), lhe pagaram tributo.

Ibsen perambulou muitos anos pela Europa. Sobretudo pela Itália e Alemanha. Quem viaja, se sabido, enxerga longe. Faleceu, em glória mas já inválido, na capital Oslo.

Para se ter uma ideia do tamanho de Ibsen, colho um trecho do “Ensaio sobre Henrik Ibsen”, de Otto Maria Carpeaux, que consta de um pequeno livro de bolso, intitulado “Seis Dramas” (parte 1), coleção “Mestres Pensadores”, da Editora Escala:

“Henrik Ibsen é o maior dramaturgo do século XIX. O superlativo – superlativos têm sempre qualquer coisa de exagero – justifica-se desta vez, com toda facilidade. Goethe, Schiller e Alfieri pertencem inteiramente, ou pela maior parte da obra, ao século XVIII; Tchekov significa um crepúsculo melancólico; Strindberg já é o século XX. E na época entre o começo e o fim do século? Os epígonos não contam; a glória do teatro romântico francês já passou. Kleist, Georg Buechner e Gogol, três gênios dramáticos, que não se realizaram inteiramente. Quem há mais? O teatro realista francês, Augier, Dumas Filho, só tem hoje interesse como precursor de Ibsen, que lhe tomou emprestados os processos cênicos e os ambientes burgueses; Hauptmann e Shaw já confessam que o próprio Ibsen foi o ponto de partida das suas obras. Ficam ainda dois grandes nomes: Hebbel e Bjørnson. Em Hebbel a crítica literária reconhece hoje a substância ibseniana, prejudicada pelos artificialismos do epigonismo classicista; Hebbel desapareceu do palco onde apareceu Ibsen. Bjørnson, o patrício de Ibsen, e seu companheiro e inimigo inseparável durante a vida inteira, empalideceu cada vez mais ao lado do rival maior; dia virá – já veio talvez – em que a vida e a obra de Bjørnson servirão apenas para esclarecer melhor a vida e a obra de Henrik Ibsen”.

O genial dramaturgo participa de todas as virtudes (e dos defeitos também, claro) do seu século. Um século, o XIX, que se orgulhava de ser o “século da ciência e da técnica”. Ibsen se preocupava com as descobertas da ciência, com as maravilhas e as angústias que os processos científicos provocam, e tinha a esperança, em razão das intervenções da ciência, num futuro melhor para a humanidade. E aqui jogo luz sobre a peça “Um Inimigo do Povo”, de 1882, cujo protagonista é um médico local que casualmente descobre e investiga a contaminação das águas de um balneário de uma pequena cidade norueguesa.

O médico imagina ser aclamado por haver descoberto, através da ciência, a verdade. Por salvar a todos, locais e turistas, da infecção/doença generalizada. Mas “algo” fala mais alto. Do negacionismo a outros interesses menos confessáveis. Os habitantes se viram contra ele, o “inimigo do povo”. E a desgraça, individual e coletiva, está feita. Pelo menos para os de bom-senso, lembrando que a ciência, dizia o nosso Rubem Alves (1933-2014), nada mais é que o bom-senso organizado.

Se evitar contaminação e doenças parece bom-senso – pelo menos para os de bom-senso –, isso não se mostra tão óbvio para aqueles outrora chamados de fanáticos loucos, e hoje, eufemisticamente, apenas apelidados de negacionistas.

Se na fábula de Ibsen foi assim, hoje, quem alerta para a gravidade da nossa situação sanitária, para o número absurdo de mortes, para o charlatanismo de remédios ineficazes, para o impacto atual e futuro da política/visão negacionista, inclusive sob o ponto de vista econômico, é taxado por alguns de torcer pelo “quanto pior, melhor”, pelo “vírus” ou de outras baboseiras/loucuras mais. É luta.

Afirmar a dura verdade e a ciência, ou simplesmente o bom-senso organizado, nos torna “um inimigo dos loucos”.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 19/10/2025 - 10:46h

De pai e mãe, os meus

Por Honório de Medeiros

 Francisco Honório de Medeiros e Aldeiza Fernandes de Sena Medeiros (Foto: arquivo familiar)

Francisco Honório de Medeiros e Aldeiza Fernandes de Sena Medeiros (Foto: arquivo familiar)

Para Elza Sena, onde estiver.

Para quem não gosta de adjetivos, aviso logo: não leia o texto.

Aliás, não sei por que essa neurose contra adjetivos. Um adjetivo é um instrumento: se mal usado, compromete; se bem usado, acrescenta.

Texto somente com substantivos é igual à mulher sem um toque de batom, um ajeitado no cabelo, um olho delicadamente delineado, uma gota de perfume. Falta poesia.

Pois bem, a minha mãe era extrovertida, determinada, solar; meu pai, por sua vez, introvertido, cismarento, noturno. Antípodas. Completavam-se.

Entendiam-se pelo olhar. Conversavam pouco entre eles, falando. Tinham longas conversas em silêncio.

Poucas vezes os vi amuados um com o outro. Anos depois, já maduro, minha mãe me confessou que muito cedo tinham feito um pacto: se brigassem não dormiriam sem se beijar e desejar boa noite. “Quebrava logo o gelo”, disse-me.

Lá em casa as tarefas eram bem demarcadas: ela, administração; ele, o financeiro. Quem lidava, por exemplo, com o pessoal que vinha fazer algum serviço na nossa antiga casa às margens da Igreja de São Vicente, em Mossoró, era minha mãe.

Dura, detalhista, sem papas na língua, amenizava tudo isso tratando os trabalhadores por igual e os convidando a partilharem nossa mesa comum.

Papai, discreto, observava tudo de longe. E ficava fazendo contas, controlando o parco orçamento doméstico, providenciando o pagamento.

DEMONSTRAVAM AFETO de formas bastante diferentes: mamãe abraçava, beijava, ficava arrodeando cada um de seus filhos e sobrinhos, perguntando, dando conselho, participando diretamente.

Papai somente me beijou uma vez, em toda a sua vida, quando me viu sair de casa, aos quatorze, em busca das ilusões da cidade grande. Beijou-me na testa. Marejou os olhos. Fiquei abismado. Engoli meu choro.

Amava de longe, de forma mansa, mas intensa. Chegava na hora certa, maneiroso, solidário. Mas não era de demonstrações afetivas.

Profundamente religiosos, assim o eram, também, de forma muito diferente: enquanto ela cria de uma forma bastante prática, manifestada por intermédio de sua participação em tudo que dizia respeito à Igreja de São Vicente, do coral às novenas, ele, pelo seu lado, movia-se silenciosamente nos meandros da fé.

Quando morreu, era Ministro da Eucaristia. E, ao contrário de minha mãe, era dado às orações solitárias, conversas particulares entre ele e os santos de sua estima.

Ambos de famílias antigas, tradicionais, sequer pegaram o fim do fausto familiar. Foram, desde o início, e com muita dificuldade, da pequena classe média: minha mãe funcionária pública, meu pai empregado de uma empresa familiar de beneficiamento de algodão.

No final, dois aposentados, contando cuidadosamente o dinheiro mirrado que o Governo depositava em suas contas bancárias no final de cada mês.

Entretanto, nada relevante lhes faltou: a casa era antiga, mas boa, a mesa era farta, os filhos estudavam em bons colégios. Tinham, até mesmo, um fusquinha comprado zero quilômetro com o dinheiro do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) da aposentadoria de meu pai.

Eram respeitados e queridos na cidade que escolheram para viver e morrer.

Penso, hoje, que minha mãe foi feliz, vivendo sempre o momento presente, de sua forma intensa, visceral. O mesmo não sei dizer de meu pai.

Terá sido ele feliz? Acho que ter se afastado da sua viola amada, por injunções familiares, e trabalhado anos a fio no mesquinho e hostil ambiente da empresa onde era empregado, acentuou sua melancolia de nascença.

Entretanto tinha orgulho dos filhos. E seus olhos claros, verdes, esquivos, brilhavam quando chegavam as boas notícias que cada um de nós lhe levava. Aparecia um sorriso rápido no rosto. E sua doçura natural se acentuava.

Desde há muito desisti de me questionar acerca da existência de Deus. Qual minha mãe, acredito e pronto. Ponto final.

Sigo Blaise Pascal: em crer, mal não há.

Talvez haja, também, um fio de esperança a alimentar minha crença: a de que, morrendo, possa reencontrá-los, sentir o abraço com cheiro de lavanda inglesa de minha mãe e o sorriso de meu pai em sua cadeira de balanço enquanto dedilhava a viola.

Deo gratias, laeti simus (Graças a Deus, sejamos felizes).

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
domingo - 19/10/2025 - 10:00h

Nem tanto, nem santo

Por Bruno Ernesto

São José de Botas, Igreja de Santo Antônio, Tiradentes/MG (Foto: Bruno Ernesto, 10/2025)

São José de Botas, Igreja de Santo Antônio, Tiradentes/MG (Foto: Bruno Ernesto, 10/2025)

O que lhe vem à mente quando lhe falam de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho? Se você gosta de arte barroca e Minas Gerias, certamente lhe é um nome familiar.

Um bom artista visual, seja ele pintor ou escultor, precisa, além domínio da técnica, de um inegável, apurado e profundo conhecimento histórico. E quem visita as cidades mineiras de Ouro Preto, Congonhas e Tiradentes, pode constatar que suas obras são inigualáveis, tanto do ponto de vista técnico, quanto da expressividade histórica.

Muito embora suas obras sejam eminentemente religiosas, cujo estilo barroco predominava nos tempos de Aleijadinho (1738-1814), sendo caracterizado pela dramaticidade, contrastes e exuberância, elas também guardam um traço comum aos artistas: crítica.

Arte não é apenas saber replicar uma técnica impecável, com detalhes minuciosos, a ponto de se confundir o original com o reproduzido. Se assim fosse, a máquina fotográfica ou a fresadora computadorizada já tinham extinto os ofícios do pintor e de escultor.

A Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, os Doze Profetas, no Santuário dos Matosinhos, em Congonhas, e a Igreja Matriz de Santo Antônio, em Tiradentes, são prova de que aquele corpo praticamente definhado fisicamente, não foi suficiente para suplantar a sua arte e, sobretudo, força de vontade.

Embora muito religioso e profundo conhecedor das passagens históricas da bíblia, as quais serviam como base para suas obras, a carne e osso do artista também tinha papel preponderante em suas concepções.

Certa vez, Aleijadinho foi incumbido pelo governador das Minas Gerais, Dom Bernardo de Lorena, de esculpir uma estátua de São Jorge para uma procissão de Corpus Christi e, ao chegar no palácio, José Romão, um dos oficiais, olhou para Aleijadinho e resmungou que ele tinha uma aparência medonha.

De súbito, enfurecido, Aleijadinho confrontou o governador indagando-o se havia sido chamado ao palácio para ser contratado ou insultado, e após esse entrevero, após uma conversa reservada com o governador, já mais calmo, enfim, aceitou o serviço.

Como vingança, esculpiu São Jorge tal qual José Romão, dando à escultura uma fisionomia medonha do dito oficial do palácio que, certamente, se arrependeu amargamente do seu comentário inicial sobre a aparência do artista.

Já no frontispício da Igreja de São Miguel e Almas, em Ouro Preto, numa escultura que representa almas queimando no inferno, eis que surge a figura de um frade que Aleijadinho era intrigado. Em outras, representava soldados romanos narigudos, totalmente medonhos.

Embora apresente esse lado um tanto não cristão, Aleijadinho também demonstrou sua sutileza crítica ao retratar o São José posto no Altar-Mor da Igreja de Santo Antônio, em Tiradentes, calçado com botas de soldados romanos, um verdadeiro insulto à autoridade do imperado romano.

Lembre-se que ao tempo do reinado de Calígula (37 a 41 d.C) – cujo significado era botinhas e não agravada ao imperador -, Jesus havia sido crucificado há menos de dez anos, de modo que, embora o cristianismo não passasse de um incipiente movimento, praticamente imperceptível e sequer chamava atenção das autoridades romanas, já era o prelúdio do que se tornaria muito em breve.

Santo ou pecador, a depender do ponto de vista, é preciso compreender que a genialidade de Antônio Francisco Lisboa representa o ponto nevrálgico da arte brasileira, e que precisa ser preservada e valorizada.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - PAE - Outubro de 2025
domingo - 19/10/2025 - 06:26h

Compromisso semanal

Por Odemirton Filho

Rubem Braga para o BCS, em arte impressionista com uso de Inteligência Artificial, a partir de foto de O Globo

Rubem Braga para o BCS, em arte impressionista com uso de Inteligência Artificial, a partir de foto de O Globo

Certa vez, Rubem Braga, um dos nossos melhores cronistas, escreveu: “fazer crônica não dá trabalho! Eu poderia estar ouvindo música, lendo um bom livro, batendo um papo com algum amigo e estou aqui há três, quatro horas, lendo jornal, pensando umas coisas vagas, procurando um assunto qualquer pra escrever”.

Pois bem. Pegando carona nas palavras do velho Braga, acrescentarei: eu poderia estar sentado à mesa com Marcos Ferreira, Carlos Santos, Bruno Ernesto, Rocha Neto e Marcos Araújo, saboreando um café coado, caprichosamente preparado pelo dileto anfitrião da “casa branca”. Aproveitaria para aprender com cada um deles, ouvindo as suas histórias e dando gargalhadas.

Ou, quem sabe, poderia ir à praia com minha mulher, meus filhos e meu neto. E lá estando, tomaríamos uma água de coco; eu e o meu primogênito iríamos saborear uma “loira gelada”, apreciaríamos o azul do mar, o vai e vem da maré. Eu brincaria com o meu lindo neto, faríamos um castelo de areia, e esperaríamos as ondas para desmanchá-lo.

Talvez, eu ficasse em casa, balançando-me na rede. Abriria um livro para ler, folheando cada página com vagar e atenção. Aqui e acolá, acessaria as redes sociais para me inteirar do besteirol do dia. Também acessaria os blogs e portais pra saber a quantas andam o Brasil e o mundo. Eu até sei, vivemos tempos de intolerância política, guerras pelo mundo afora e corrupção, praga que há anos corrói as entranhas do nosso país.

Aproveitaria, de igual modo, para estudar algo sobre a Ciência do Direito, sobretudo Processo Civil e Eleitoral, minhas paixões desde os bancos da faculdade. Na docência, foram quinze anos lecionando referidas matérias e, com certeza, eu aprendi mais do que ensinei. Amadureci; fiz bons amigos.

Eu também poderia ir à casa dos meus pais para conversar. Ouviria as histórias do meu genitor sobre as brincadeiras no antigo horto florestal, quando ele e seus amigos tomavam banho nas águas (ainda salubres) do rio Mossoró, principalmente na época das enchentes. Escutaria as histórias emocionantes de minha mãe sobre o meu avô, Vivaldo Dantas de Farias, e da fé inabalável da minha vó Placinda.

Enfim, poderia fazer muitas coisas. Entretanto, cá estou, “enchendo linguiça”, com receio de não cumprir o compromisso semanal que há sete anos tenho com os leitores deste Blog. Isso dito, peço desculpas pelo texto mal-ajambrado. Até o próximo domingo.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
domingo - 12/10/2025 - 09:52h

Devagar e sempre

Por Bruno Ernesto

Imagem de uma Oliveira de mil anos Foto: Bruno Ernesto)

Imagem de uma Oliveira de mil anos Foto: Bruno Ernesto)

Mais que escrever, saber ler e interpretar um texto, talvez seja o elo crucial entre o escritor e o seu público. Não digo apenas leitores, mas também os ouvintes.

Sim, um belo texto, necessariamente, não precisa ser lido pelos seus destinatários.

Embora saibamos que a leitura profunda é crucial para que possamos internalizar um texto, inclusive, propiciando até mesmo uma alteração nas ligações cerebrais com o passar dos anos, há textos que só se completam com uma boa interpretação. E, para mim, Antônio Abujamra foi um desses intérpretes.

Lembro que passei a admirá-lo como intérprete do personagem Ravengar, da novela Que Rei Sou Eu?, que foi ao ar no ano de 1989.

Apesar de ser só uma criança naquela época, e não ligar muito para nada na vida, além de brincar, aquela voz firme, forte e de uma dicção peculiar, chamou muito minha atenção.

Tempos depois, fui conhecendo sua face mais interessante, como jornalista, filósofo, apresentador e, sobretudo, seu humor cítrico que, à frente do programa Provocações, se mostrou um provocador nato.

Abujamra sempre encerrava o programa interpretando um poema ou textos literários, e o fazia de uma forma inigualável.

Me desculpem os demais intérpretes. Até hoje, não vi melhor.

Tempo desses, assistindo aos vídeos do programa Provocações, me deparei com Abujamra interpretando uma crônica de autoria da escritora Martha Medeiros, que me chamou bastante a atenção. Foi como um sincretismo religioso, a união daquele belíssimo texto com a leitura feita por Abujamra.

Foi, em verdade, uma espécie de transliteração; talvez, uma transmutação; quem sabe uma apostasia, ao escutá-lo interpretando a crônica que Martha Medeiros publicou no jornal Zero Hora, na véspera do Dia de Finados do ano 2000 – dia de muita reflexão para poucos -. intitulada “A morte devagar”, na íntegra a seguir transcrita:

“Morre lentamente quem não troca de ideias, não troca de discurso, evita as próprias contradições. 

Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece. 

Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida. 

Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos. 

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos. 

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo. 

Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar. 

Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população. 

Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe. Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia. Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar”.

A despeito do provérbio latino “Nemine parco” (Ninguém escapa), vez ou outra, derrapamos em atitudes que aceleram o processo. Ainda que inconscientemente levadas a cabo.

Claro que não se pode viver à margem dos problemas diários, das incongruências e do ocaso dos pensamentos positivos. Infelizmente não dá.

Também não podemos, evidentemente, viver numa letargia, inação ou introspecção que beire ao conformismo. Nem tanto, nem quanto; com dizem. Mas, sempre que possível, nem sempre, diria.

Talvez, inconscientemente, caiamos no Paradoxo de Salomão, quando podemos dar bons conselhos e, nós mesmos, sermos um desastre tomando nossas próprias decisões. 

Talvez devêssemos, vez ou outra, não seguir certos conselhos, fugir da congruência e ortodoxia, e mandar às favas a coerência. Quem sabe, falar dez vezes antes de pensar.

A iniciar por nós mesmos. Porque a vida está aí, devagar e sempre.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 12/10/2025 - 06:48h

O descobrimento tardio

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Em paralelo com a nossa evolução histórica, o desenvolvimento da filosofia jurídica brasileira baseou-se em ideias transplantadas de países da Europa Continental (Portugal, Espanha, França, Alemanha e Itália, sobretudo). Apenas recentemente (nos últimos 30 ou 40 anos), nossos juristas passaram a debater as ideias das escolas de pensamento típicas do common law, como a escola sociológica e o realismo jurídico americano.

Mas isso vem num crescendo.

A visão de que o direito é, ou deve ser, a maximização das necessidades sociais e a minimização das tensões e custos sociais, desenvolvida pela escola sociológica americana, tem sido cada vez mais aplicada, por exemplo, no direito penal brasileiro. Isso tanto partindo do legislador quanto sendo extensivamente aplicado por juízos e tribunais criminais brasileiros. Como registros específicos, temos o Acordo de Não Persecução Penal – ANPP, medida alternativa agora prevista no Código de Processo Penal para certa categoria de crimes/condutas “menos gravosos”, evitando o processo judicial tradicional e dando uma resposta mais rápida e efetiva à sociedade. Ademais, partindo do princípio de que devem estar engajados nesse equilíbrio de interesses, os juízes e tribunais (incluindo o STF e STJ) também têm ponderado, em suas decisões, sobre os prós e os contras de uma condenação criminal, considerando a baixa significância do crime cometido, por vezes absolvendo o réu.

Doutra banda, nos últimos anos, a comunidade jurídica brasileira também tem dado maior atenção às ideias do realismo jurídico americano, consistentes, em termos gerais, na adoção de um método empírico de investigação científica em que (i) a realidade concreta é priorizada, (ii) a criação do direito por decisões judiciais é reconhecida (iii) e mesmo, por vezes, um papel secundário é atribuído à legislação. No Brasil, está se tornando bastante claro – “claro demais”, até – que o direito consiste em decisões tomadas por agentes detentores do poder estatal, incluídas, nesse conjunto, as decisões judiciais. Isso tem progressivamente desmascarado a doutrina ortodoxa segundo a qual os juízes apenas aplicam regras preexistentes.

Argumentam os “realistas brasileiros” que os juízes frequentemente tomam suas decisões de acordo com suas preferências políticas ou morais, apenas apontando a norma legal para fins de justificação/racionalização. Todo esse novo contexto nos demanda uma nova abordagem científica que se concentre tanto no que os juízes e tribunais dizem quanto no que eles fazem, bem como no impacto real que suas decisões têm nas mais amplas camadas da sociedade brasileira.

É verdade que as visões mais ecléticas da filosofia jurídica anglo-americana são mais adequadas à tradição brasileira. O renomado justice Benjamin N. Cardozo (em “The Nature of Judicial Process”, Yale University Press, 1921, edição fac-símile de 1991), afirmando que reconhecia “a criação do Direito pelo juiz como uma das realidades existentes da vida”, há tempos já indagava: “Onde o juiz encontra o Direito que incorpora em seu julgamento?”. E ele mesmo respondia: “Há momentos em que a fonte é óbvia. A regra que se enquadra no caso deve ser fornecida pela Constituição ou por lei”. Entretanto, ele pontificava: “É verdade que códigos e leis não tornam o juiz supérfluo nem seu trabalho perfunctório ou mecânico. Há lacunas a serem preenchidas. Há dúvidas e ambiguidades a serem esclarecidas. Há dificuldades e erros a serem mitigados, se não evitados”.

A verdade está a meio caminho entre os extremos. Juízes – nos Estados Unidos ou no Brasil – utilizam diversos critérios para proferir suas decisões, a depender das circunstâncias e fatos do caso em julgamento. Do ponto de vista teórico, não há diferença insuplantável entre os processos de produção de decisões judiciais nas tradições do civil law e do common law. E de uma coisa não há dúvida: do trabalho de preencher lacunas – ou seja, do processo utilizado pelo juiz para decidir um caso em que não há uma segura referência preexistente (lei ou precedente) – surgem decisões que criam algo novo, “make new law”. Alhures e aqui.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 12/10/2025 - 04:38h

A escola silenciosa da convivência

Patrick Nilo

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Não se misture com quem você não gostaria de se tornar.

A convivência é uma escola silenciosa e, muitas vezes, sem perceber, você se matricula nela sem ler o regulamento.

Você absorve tudo: as palavras, os gestos, as reações.

Conviver é respirar a alma do outro. E quem respira o que é tóxico adoece sem notar.

A mente humana é uma esponja emocional: ela apreende por repetição, contágio e espelhamento.

É por isso que os sábios escolhem seus círculos com a mesma prudência com que um médico escolhe seus instrumentos.

Cada pessoa com quem você se conecta é um arquivo que se abre dentro de você.

Alguns ampliam sua consciência; outros corrompem seus valores.

Cuidado com os que zombam do que é sagrado, banalizam o que é belo e justificam o que é errado.

Aos poucos, você começa a achar normal o que antes o feriria.

E o perigo não está em se aproximar, mas em se acostumar.

Selecione suas companhias como quem escolhe o ar que respira.

Alguns o elevam; outros o esvaziam.

E, no fim, o que ficará não é o quanto você conviveu, mas o quanto você se tornou parecido com quem esteve ao seu lado.

Porque o caráter é moldado pelo convívio, e o destino, pelas influências que você aceita calado.

Patrick Nilo é procurador da República, professor e escritor

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  • Mossoro Oil & Gas 2025 - Comunicaçao.Com
domingo - 05/10/2025 - 11:14h

“Nossas” filosofias

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa da Web

Arte ilustrativa da Web

Em consonância com a nossa evolução histórica, o desenvolvimento da filosofia jurídica brasileira baseou-se em ideias transplantadas de países da Europa Continental (Portugal, França, Alemanha e Itália, sobretudo). Essa herança, por óbvio, também influenciou no status que é atribuído às decisões judiciais como fontes do direito no nosso sistema jurídico.

Historicamente, duas concepções filosóficas opostas dominaram o debate na jusfilosofia brasileira durante os séculos XIX e XX: as ideias naturalista e positivista do direito.

Em geral, as ideias naturalistas, como foram reelaboradas no Brasil, afirmam a existência de um direito fundado na razão ou no mais íntimo da natureza humana, na qualidade de ser individual ou coletivo, ou mesmo na nossa relação com Deus, que preexiste ao direito que é produzido pelos homens ou pelo Estado e que deve ser sempre respeitado (conferir Miguel Maria de Serpa Lopes, em “Curso de Direito Civil”, v. 1, Freitas Bastos, 1988). Para os jusnaturalistas brasileiros, esse direito natural e superior deve ser respeitado ou ao menos levado em consideração pelos operadores do direito. O direito positivo (e mesmo a Constituição brasileira), sob o qual vive a nossa sociedade, deve estar em harmonia com as leis da natureza e os direitos naturais dos seres humanos.

Partindo da ideia de que há um direito preexistente ao direito produzido pelo povo ou pelo Estado (referido como direito positivo), os partidários do direito natural, sobretudo na sua concepção mais “purista”, não dão ao precedente judicial o status de criador do direito. Para eles, o papel das decisões judiciais não é criar, mas, sim, revelar algo: descobrir (a partir de princípios do direito natural e da razão) e declarar o direito que já existe. Elas são o resultado de um raciocínio simples: “o direito como deveria ser” (a decisão judicial) deve refletir “o direito como ele é” (o direito natural preexistente). 

O positivismo jurídico no Brasil se opõe à ideia de um direito natural. Antes de mais nada, o direito é positivo porque é criação do homem. Ademais, enquanto os defensores do jusnaturalismo se ocupam da fundamentação e da legitimação do direito positivo, calcando sua validade no respeito a princípios e valores absolutos, os positivistas estão interessados principalmente em apurar os princípios lógico-formais de sua validade.

Sob a visão do positivismo adotada no Brasil, a tarefa do juiz é principalmente manter a integridade lógica do sistema jurídico. Em outras palavras, o papel da atividade judicial (ou do precedente judicial) é manter a coerência do direito vigente (incluindo a Constituição). Ela serve, usando uma metáfora, como um amálgama para preencher lacunas indesejáveis (para aqueles que admitem sua existência) ou simplesmente para manter todo o sistema em uma forma mais coesa.

O problema é que o positivismo jurídico se divide em diversas correntes. Se há algum consenso relativo quanto aos objetivos da atividade judicial, as opiniões entre os positivistas brasileiros se dividem consideravelmente quanto aos atributos constitutivos dos precedentes: eles criam ou meramente revelam o direito? Alguns positivistas, baseados sobretudo numa visão estrita do princípio da separação de poderes, negam aos precedentes os atributos de criação do direito. Mas outros afirmam (seguindo a opinião de Hans Kelsen em “Teoria pura do direito”, Martins Fontes, 1991) que uma decisão judicial não tem, como frequentemente se supõe, um simples caráter declaratório. O labor do juiz não é uma mera “descoberta” de um direito já de antemão pronto e acabado. Não é um “jurisdictio” no seu sentido puramente declaratório.

A descoberta do direito, por meio de uma decisão fundamentada, consiste também na determinação da aplicação da norma geral e particular ao caso concreto. Essa determinação não tem apenas natureza declaratória, mas também constitutiva. Esse importante elemento do decisionismo na atividade do juiz – embora este esteja vinculado à norma legislada – aproxima essa visão kelseniana do direito ao realismo jurídico americano. O direito é uma criação humana e as normas específicas que decidem casos concretos são assim criadas pelos juízes.

Por outro lado, apenas recentemente (nos últimos 30 ou 40 anos), os juristas brasileiros vêm debatendo as ideias das escolas de pensamento típicas do common law, como a escola sociológica americana e o realismo jurídico americano. Mas é isso assunto para um outro papo. 

Marcelo Alves Dias de Souza é Procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 05/10/2025 - 09:48h

Sobre Luiz Gama e a abolição da escravatura em Mossoró

Por Odemirton Filho

Arte ilustrativa

Arte ilustrativa

Estou lendo o livro Luiz Gama contra o Império, do advogado e historiador do Direito, Bruno Rodrigues de Lima. Na obra, o autor destaca a luta de Gama pelo Direito no Brasil da escravidão. É uma leitura densa, fazendo-nos enveredar pelos tortuosos caminhos da escravidão brasileira. Luiz Gama nasceu em Salvador, na Bahia, em 21 de junho de 1830, e foi uma voz incansável na defesa dos direitos dos escravos.

Por coincidência, em um dia 30 de setembro, só que de 1871, ele escreveu:

“A minha missão única, missão de que orgulho-me, não é provar forças com assassinos, que desprezo; é prestar auxílio e proteção a pessoas livres, que sofrem cativeiro ilegal; é arrancar as vítimas das mãos dos possuidores de má-fé, é vencer a força estúpida e a sórdida cavilação, perante os tribunais, pelo direito, e com a razão. Minhas armas são as da inteligência, em luta pela vitória da justiça, e só pararei quando os juízes tiverem cumprido o seu dever”.

A leitura do livro despertou a minha curiosidade para saber um pouco mais sobre a história da abolição da escravidão em Mossoró, ocorrida em 30 de setembro de 1883. Infelizmente, não damos o devido crédito ao passado de nossas cidades, pois cada comunidade, e seu povo, tem uma história que merece atenção, muitas vezes com vários aspectos desconhecidos da sociedade. Creio que poucos mossoroenses ouviram falar em Rafael Mossoroense da Glória, que foi um dos alforriados.

Segundo dados que pesquisei, em 1861 existiam em Mossoró “somente” 153 cativos para uma população de 2.493 habitantes. Vale ressaltar, que no dia 06 de Janeiro de ano de 1883 foi criada a Sociedade Libertadora Mossoroense, a qual tinha por objetivo lutar pelo fim da escravidão no município; naquele ano, Mossoró contava com 86 escravos.

Destaque-se que ao lado da Sociedade Libertadora Mossoroense estava o Clube dos Spartacus (referência a Espártaco, líder das revoltas de escravizados na Roma Antiga), composto principalmente por ex-escravizados que, diferentemente dos membros da Libertadora, utilizavam-se de sua força braçal na luta pela emancipação dos escravizados. (Fonte: Cartilha didática, curso de História, UERN/Campus Mossoró).

Conta-se que no dia 30 de setembro “a cidade amanheceu em festa. Ao meio-dia, a Sociedade Libertadora Mossoroense se reúne na Câmara Municipal (onde atualmente funciona o Museu Lauro da Escóssia). O Presidente da Sociedade, Joaquim Bezerra da Costa Mendes, abre a sessão, e se inicia a leitura de cartas de alforria dos últimos escravos da cidade. Com a liberação oficial, ele declarou: “livre o município de Mossoró da mancha negra da escravidão”.

Eis, portanto, um breve relato sobre Luiz Gama e a abolição da escravatura em Mossoró. Existiram, é claro, vários interesses sociais, políticos e econômicos que permearam esse fragmento da nossa história. No entanto, o objetivo deste texto foi tão somente apresentar uma visão geral sobre o tema.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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domingo - 05/10/2025 - 08:00h

São Jorginho

Por Bruno Ernesto

Filhote de iguana posa tranquilamente numa árvore no rio Mossoró (Foto: Bruno Ernesto)

Filhote de iguana posa tranquilamente numa árvore no rio Mossoró (Foto: Bruno Ernesto)

Antes de tudo, é preciso ter fé e coragem – muita coragem – para se pedir proteção divina. Até os menos crédulos, vez ou outra, no íntimo, rogam por uma proteção. Desde que o pedido seja genuíno, acredito que nenhuma divindade se recusará a lhe conceder.

Eu mesmo, no início da minha adolescência, ousei – uma única vez – brincar com a proteção divina e o arrependimento veio poucos minutos após. 

Antes que você possa pensar, não considero Deus sádico. Não, ele não se deleita com sacrifícios, embora toda a tradição espiritual ocidental se baseie no sofrimento.

No texto intitulado “Na ponte à esquerda” (//blogcarlossantos.com.br/na-ponte-a-esquerda/), publicado no último dia vinte de julho, falei da necessidade de desacelerar e se observar as pequenas coisas que passam despercebidas, e que as duas iguanas que moram numa árvore na margem do rio Mossoró, bem no centro da cidade comprovam que nem tudo merece tanto esforço.

Aqueles dois pequenos dragões desafiam o caos e, tal qual a tradicional imagem de São Jorge em luta, nos dá coragem e fé num dia corrido e, para minha grata surpresa, após semanas sem avistá-las, eis que surge uma pequenina iguana pendurada nos galhos da mesma algaroba, e que logo batizei de Jorginho. Um pequenino dragão.

Quanto ao meu arrependimento, digo.

Após meses de negociação, convenci meus pais a permitirem que eu pudesse ir de bicicleta para todas as atividades fora do horário de aula, e assim, alguns dias da semana, eu atravessava a cidade inteira sozinho, num estirão de uns quatro quilômetros entre o Alto de São Manoel e o Colégio Diocesano Santa Luzia de Mossoró.

Nesses dias, podia sentir o gostinho da liberdade de locomoção, não sem antes minha mãe pedir à Deus que me acompanhasse nesse trajeto. Assim, com sua bênção, rumava para o colégio.

Num desses dias, ao sair de casa, ao pé do portão, minha mãe mais uma vez pediu à Deus para me acompanhar no trajeto. Eu, com uns doze anos de idade, muito empolgado, sem pensar, disse que não precisava, pois Deus era pesado e eu cansaria rápido pedalando e podia me atrasar.

Pois bem. Naquele dia – justamente naquele dia – fui assaltado por dois pivetes bem em frente ao Seminário Santa Terezinha. Naquele instante, ouvia em câmera lenta minha mãe dizer que Deus me acompanhasse.

Até hoje minha mãe me recorda deste episódio. Não com sadismo, jamais. Porém, como uma lição de que não se deve renegar proteção.

Quanto à Jorginho, em breve buscará seu próprio caminho. Antes, porém, certamente terá muitas lições e a proteção dos pais.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

 

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Categoria(s): Crônica
domingo - 05/10/2025 - 06:30h

A cigarreira carioca

Por Cid Augusto

Foto escolhida pelo autor da crônica

Foto escolhida pelo autor da crônica

Por volta das 11h, de segunda a sábado, trabalhadores da região lotam o canteiro do cruzamento das ruas Afonso Pena e Governador Juvenal Lamartine para almoçar no restaurante de Angélica, mais conhecido como Cigarreira da Carioca. Dia após dia, ela e sua fiel escudeira Avete atendem dezenas – talvez centenas – de pessoas.

Comida sem frescura, saborosa, farta, barata. O prato, como diria o livreiro Abimael Silva, custa “somente 15 contos”. Hoje, o cardápio é arroz, feijão, macarrão, farofa, salada e carne – boi ou frango. Não tem o pudim que Angélica garante ser o melhor do mundo, por questões logísticas passageiras. O jeito é quebrar o galho com rapadura.

O povo faz fila. Quem não chegar cedo, dança, a exemplo do que me ocorre de vez em quando pelo costume de almoçar tarde. Reservaria por WhatsApp se a proprietária lesse a mensagem antes de a comida se acabar. “Tem dias” – se Chico usa, posso usar – que raspo as terrinas de arroz e feijão, e peço um ovo frito de complemento.

A propósito, para quem não sabe, cigarreira nada tem a ver com cigarros no RN. Nas bandas de cá, à revelia dos dicionários, a expressão designa pequenos pontos comerciais construídos em metal e instalados em canteiros e calçadas. Na própria Afonso Pena há várias delas, com oferta de produtos e serviços diversos.

A dona do empreendimento que inspira esta crônica, conforme o apelido antecipa, nasceu no Rio de Janeiro. Quando a conheci, levado pelo poeta George Veras, a Carioca comentou sobre a mudança para Natal. Não me lembro do motivo exato. Recordo apenas tê-la ouvido comparar a violência em ambos os lugares.

A capital fluminense, disse-me, tem índices bem maiores de criminalidade. Lá, seria perigoso agir como estávamos agindo, eu e George, almoçando em via pública com os celulares sobre a mesa, embora ela própria tenha sido furtada por cá. Levaram-lhe o par de sandálias na praia. Este ano, ao menos um roubo foi registrado nas imediações.

O importante é que a gente se delicia com a comida e com as conversas. Ouve-se de um tudo: cálculo estrutural, rede de internet, vendas, pendengas jurídicas, corações partidos, política, literatura, religião, futebol. Escuto em silêncio, a fim de capturar vestígios do cotidiano, matérias-primas da crônica.

Agora mesmo, entre uma garfada e outra, observo dois jovens debatendo o custeio de festas pelo município. Um deles, afobado, declara ter ido à última delas. Bebeu, comeu, embriagou-se, divertiu-se… “Enquanto – arremata o narrador – falta escola, saúde, educação…”. E haja pau no prefeito e nos frequentadores “alienados”.

O interlocutor exige coerência: “Você estava lá, meu amigo!”. O cara retruca: “Estava, sim, foi pago com o nosso dinheiro. E não me considero alienado, não, porque consigo identificar a manipulação da política de pão e circo”. Em acréscimo, explica que essa estratégia é antiga e evoca o Império Romano.

O rapaz do lado oposto da mesa insiste em tom sarcástico: “Perda de tempo protestar contra uma festa, especialmente se você vai a ela”. O boêmio consciente solta a última em forma de questionamento – “Perda de tempo lutar por seus direitos?” – e se levanta com raiva por haver tropeçado nas próprias contradições.

Como se vê, a Cigarreira da Carioca é também um ambiente de livre manifestação do pensamento. Pena eu não poder me demorar além dos já consumidos 10 minutos, em razão do trabalho. Vou perder inclusive o desfecho da peleja entre o sujeito de barbas brancas e o inimigo imaginário dele. Pense numa briga! Arrisca sair bofete.

Adoro garimpar histórias, histórias de gente, histórias que não frequentam noticiários nem interessam ao ego inflado dos grandessíssimos intelectuais da província. Contudo, o dever me fustiga. Por míseros segundos de devaneio, penso na aposentadoria, que nunca chegará. Então, volto bruscamente à realidade e chamo por Avete.

– A conta, por favor.

– Crédito ou débito?

– Crédito.

– Pode aproximar.

Pausa dramática. Sempre rola aquela tensão básica enquanto o pagamento é aprovado pela operadora de cartão de crédito.

– Passou?

– Passou, obrigada.

– Até amanhã!

– Até! Caso se lembre, guarde o meu almoço.

Cid Augusto é advogado, jornalista, professor e poeta

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domingo - 28/09/2025 - 09:38h

Frequência e criatividade

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa reproduzida da página Dannemann

Arte ilustrativa reproduzida da página Dannemann

As últimas décadas no Brasil testemunharam um aumento substancial no uso de precedentes como um dos principais fundamentos das decisões judiciais. Hoje, tribunais e juízes raramente se referem apenas à Constituição ou às leis pertinentes ao caso em julgamento, e os precedentes são citados tanto na ausência como na presença de disposição legislativa disciplinadora. Nestes casos, os precedentes têm sido uma espécie de meio para referência da legislação (e não uma alternativa a ela), cujas disposições são abordadas, analisadas e interpretadas por meio da discussão de precedentes relevantes, assim ganhando concretude e vida.

É verdade que essa expansão do uso de precedentes no Brasil é mais visível, em termos de frequência e poder decisório, em determinadas áreas do direito. É racional. Se um campo do direito é regulado por disposições legislativas não codificadas – como no caso dos direitos administrativo e previdenciário –, os precedentes aí desempenham um papel mais significativo. Além disso, percebe-se uma importância significativa no uso de precedentes em direito constitucional, eleitoral e tributário, devido ao fato de que os casos nessas áreas tratam principalmente de questões de direito, enquanto em outras áreas, como direito penal, os juízes frequentemente dedicam maior atenção às questões de fato.

Isso também leva a outra diferença observada no uso de precedentes pelos tribunais brasileiros. Considerando os níveis da estrutura judicial, os tribunais/juízos inferiores dedicam muito de sua atenção às questões de fato. Consequentemente, o uso de precedentes, comumente limitado à decisão de questões de direito, parece ser menos decisivo.

Por outro lado, como os tribunais superiores lidam principalmente com questões de direito, os precedentes ali desempenham um papel crucial na fundamentação de seus julgados. Aliás, esse desequilíbrio no uso de precedentes entre tribunais inferiores e superiores é comum também em outros países, a exemplo da Itália, como apontam Michele Taruffo e Michele La Torre (em “Precedent in Italy”, texto constante do livro “Interpreting Precedents: a Comparative Study”, Aldershot/England, Ashgate/Dartmouth publishing, 1997).

Apesar desses desequilíbrios, o resultado é que, na prática judicial brasileira, os precedentes desempenham um papel atualmente mais importante do que o da doutrina. Se outrora os precedentes não foram formalmente listados entre as fontes do direito no Brasil, hoje eles são considerados pelo menos como “fontes de fato”. E gradualmente caminhamos – parte da doutrina assim já aponta – para o reconhecimento da jurisprudência como fonte formal no ordenamento jurídico brasileiro. Esse panorama serve para desafiar o mito que afirma ser a doutrina dos precedentes vinculantes ou stare decisis uma prática exclusiva do direito consuetudinário. A vinculação das decisões judiciais é uma característica livremente autoatribuída por qualquer ordenamento jurídico a fim de alcançar a igualdade, a estabilidade, a previsibilidade e a celeridade nas decisões judiciais. Em outras palavras, a adoção de uma regra de stare decisis por um ordenamento jurídico não requer sua associação histórica com a tradição do direito common law.

Esse novo panorama também desconstrói um outro mito que afirma que os juízes de civil law, em termos da criatividade das suas decisões, desempenham um papel completamente diferente em comparação com seus pares do common law. Semelhantemente aos juízes em países do common law, os juízes brasileiros também criam direito – andam até criando demais, diga-se de passagem –, o que pode ser comprovado pelo fato de que algumas áreas do nosso direito, que não eram originalmente disciplinadas por lei, foram desenvolvidas pela jurisprudência.

Em resumo, embora historicamente associado ao civil law, o direito brasileiro passou por mudanças qualitativas, com a adoção de práticas bem-sucedidas do common law, como o uso mais amplo de precedentes fundamento das decisões judiciais. Isso tem se intensificado visivelmente e, no que diz respeito à frequência no uso e à criatividade dos precedentes, o sistema jurídico brasileiro provavelmente se tornará, no futuro, um exemplo de modelo misto.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 28/09/2025 - 08:26h

O calhambeque

Por Odemirton Filho

Roberto Carlos e o seu "Calhambeque" (Foto: reprodução da Web)

Roberto Carlos e o seu “Calhambeque” (Foto: reprodução da Web)

Das lembranças que eu trago na vida, parafraseando Roberto Carlos, uma delas marca profundamente a minha alma: o meu pai cantando a música O calhambeque, do “rei” Roberto. Inúmeras vezes ele cantou essa música, enquanto tomava uns goles de cerveja. Ao violão, quase sempre estava o meu saudoso tio Albeci, da banda Bárbaros; seja em Mossoró, na rua Tiradentes, seja no alpendre da casa de Tibau, eram momentos de pura nostalgia e descontração.

Esses momentos são “de vera” o que importam no decorrer de nossas vidas. Nada como estar ao lado de familiares (alguns, é claro) e amigos queridos. Por isso, tentemos viver de forma leve, apesar dos pesares e das dificuldades cotidianas.

Pois bem, ao cantar O calhambeque, acho que o meu pai viajava ao passado, resgatando tempos idos. Talvez, lembre da sua lambreta, quando passeava pelos arredores do Cine Pax, flertando com as moças da época. Certa vez, um amigo dele me disse que ambos pilotavam as suas lambretas e, às vezes, empinavam o pneu para impressionar os “brotos”.

E logo uma garota fez sinal para eu parar, e no meu calhambeque fez questão de passear, não sei o que pensei, mas eu não acreditei, que o calhambeque, bi-bi, o broto quis andar no calhambeque”.

Ou, quem sabe, ao cantarolar essa e outras músicas, ele lembre das festas no clube Ypiranga, da ACDP, dos festejos de Santa Luzia, da União Caixeiral (onde conheceu a minha mãe e, logo depois, iniciaram o namoro; poucos dias após, casaram-se).

Hoje, somente vez ou outra papai entoa algumas canções. Todavia, quando o escuto cantar, a minha memória afetiva é ativada, o meu tempo de menino/rapaz vem à tona, fazendo-me reviver, sobretudo, as agradáveis e inesquecíveis tardes/noites no alpendre da casa de Tibau.

Quem não traz no coração uma música que faz lembrar bons tempos? Pois então, o Calhambeque fez parte dos dias da minha infância e juventude; dias de um tempo danado de bom.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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