domingo - 12/10/2025 - 09:52h

Devagar e sempre

Por Bruno Ernesto

Imagem de uma Oliveira de mil anos Foto: Bruno Ernesto)

Imagem de uma Oliveira de mil anos Foto: Bruno Ernesto)

Mais que escrever, saber ler e interpretar um texto, talvez seja o elo crucial entre o escritor e o seu público. Não digo apenas leitores, mas também os ouvintes.

Sim, um belo texto, necessariamente, não precisa ser lido pelos seus destinatários.

Embora saibamos que a leitura profunda é crucial para que possamos internalizar um texto, inclusive, propiciando até mesmo uma alteração nas ligações cerebrais com o passar dos anos, há textos que só se completam com uma boa interpretação. E, para mim, Antônio Abujamra foi um desses intérpretes.

Lembro que passei a admirá-lo como intérprete do personagem Ravengar, da novela Que Rei Sou Eu?, que foi ao ar no ano de 1989.

Apesar de ser só uma criança naquela época, e não ligar muito para nada na vida, além de brincar, aquela voz firme, forte e de uma dicção peculiar, chamou muito minha atenção.

Tempos depois, fui conhecendo sua face mais interessante, como jornalista, filósofo, apresentador e, sobretudo, seu humor cítrico que, à frente do programa Provocações, se mostrou um provocador nato.

Abujamra sempre encerrava o programa interpretando um poema ou textos literários, e o fazia de uma forma inigualável.

Me desculpem os demais intérpretes. Até hoje, não vi melhor.

Tempo desses, assistindo aos vídeos do programa Provocações, me deparei com Abujamra interpretando uma crônica de autoria da escritora Martha Medeiros, que me chamou bastante a atenção. Foi como um sincretismo religioso, a união daquele belíssimo texto com a leitura feita por Abujamra.

Foi, em verdade, uma espécie de transliteração; talvez, uma transmutação; quem sabe uma apostasia, ao escutá-lo interpretando a crônica que Martha Medeiros publicou no jornal Zero Hora, na véspera do Dia de Finados do ano 2000 – dia de muita reflexão para poucos -. intitulada “A morte devagar”, na íntegra a seguir transcrita:

“Morre lentamente quem não troca de ideias, não troca de discurso, evita as próprias contradições. 

Morre lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece. 

Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento, mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma vida. 

Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos. 

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos. 

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo. 

Morre lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa ajudar. 

Morre lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa parcela da população. 

Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe. Morre muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia. Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior do que simplesmente respirar”.

A despeito do provérbio latino “Nemine parco” (Ninguém escapa), vez ou outra, derrapamos em atitudes que aceleram o processo. Ainda que inconscientemente levadas a cabo.

Claro que não se pode viver à margem dos problemas diários, das incongruências e do ocaso dos pensamentos positivos. Infelizmente não dá.

Também não podemos, evidentemente, viver numa letargia, inação ou introspecção que beire ao conformismo. Nem tanto, nem quanto; com dizem. Mas, sempre que possível, nem sempre, diria.

Talvez, inconscientemente, caiamos no Paradoxo de Salomão, quando podemos dar bons conselhos e, nós mesmos, sermos um desastre tomando nossas próprias decisões. 

Talvez devêssemos, vez ou outra, não seguir certos conselhos, fugir da congruência e ortodoxia, e mandar às favas a coerência. Quem sabe, falar dez vezes antes de pensar.

A iniciar por nós mesmos. Porque a vida está aí, devagar e sempre.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 12/10/2025 - 06:48h

O descobrimento tardio

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Em paralelo com a nossa evolução histórica, o desenvolvimento da filosofia jurídica brasileira baseou-se em ideias transplantadas de países da Europa Continental (Portugal, Espanha, França, Alemanha e Itália, sobretudo). Apenas recentemente (nos últimos 30 ou 40 anos), nossos juristas passaram a debater as ideias das escolas de pensamento típicas do common law, como a escola sociológica e o realismo jurídico americano.

Mas isso vem num crescendo.

A visão de que o direito é, ou deve ser, a maximização das necessidades sociais e a minimização das tensões e custos sociais, desenvolvida pela escola sociológica americana, tem sido cada vez mais aplicada, por exemplo, no direito penal brasileiro. Isso tanto partindo do legislador quanto sendo extensivamente aplicado por juízos e tribunais criminais brasileiros. Como registros específicos, temos o Acordo de Não Persecução Penal – ANPP, medida alternativa agora prevista no Código de Processo Penal para certa categoria de crimes/condutas “menos gravosos”, evitando o processo judicial tradicional e dando uma resposta mais rápida e efetiva à sociedade. Ademais, partindo do princípio de que devem estar engajados nesse equilíbrio de interesses, os juízes e tribunais (incluindo o STF e STJ) também têm ponderado, em suas decisões, sobre os prós e os contras de uma condenação criminal, considerando a baixa significância do crime cometido, por vezes absolvendo o réu.

Doutra banda, nos últimos anos, a comunidade jurídica brasileira também tem dado maior atenção às ideias do realismo jurídico americano, consistentes, em termos gerais, na adoção de um método empírico de investigação científica em que (i) a realidade concreta é priorizada, (ii) a criação do direito por decisões judiciais é reconhecida (iii) e mesmo, por vezes, um papel secundário é atribuído à legislação. No Brasil, está se tornando bastante claro – “claro demais”, até – que o direito consiste em decisões tomadas por agentes detentores do poder estatal, incluídas, nesse conjunto, as decisões judiciais. Isso tem progressivamente desmascarado a doutrina ortodoxa segundo a qual os juízes apenas aplicam regras preexistentes.

Argumentam os “realistas brasileiros” que os juízes frequentemente tomam suas decisões de acordo com suas preferências políticas ou morais, apenas apontando a norma legal para fins de justificação/racionalização. Todo esse novo contexto nos demanda uma nova abordagem científica que se concentre tanto no que os juízes e tribunais dizem quanto no que eles fazem, bem como no impacto real que suas decisões têm nas mais amplas camadas da sociedade brasileira.

É verdade que as visões mais ecléticas da filosofia jurídica anglo-americana são mais adequadas à tradição brasileira. O renomado justice Benjamin N. Cardozo (em “The Nature of Judicial Process”, Yale University Press, 1921, edição fac-símile de 1991), afirmando que reconhecia “a criação do Direito pelo juiz como uma das realidades existentes da vida”, há tempos já indagava: “Onde o juiz encontra o Direito que incorpora em seu julgamento?”. E ele mesmo respondia: “Há momentos em que a fonte é óbvia. A regra que se enquadra no caso deve ser fornecida pela Constituição ou por lei”. Entretanto, ele pontificava: “É verdade que códigos e leis não tornam o juiz supérfluo nem seu trabalho perfunctório ou mecânico. Há lacunas a serem preenchidas. Há dúvidas e ambiguidades a serem esclarecidas. Há dificuldades e erros a serem mitigados, se não evitados”.

A verdade está a meio caminho entre os extremos. Juízes – nos Estados Unidos ou no Brasil – utilizam diversos critérios para proferir suas decisões, a depender das circunstâncias e fatos do caso em julgamento. Do ponto de vista teórico, não há diferença insuplantável entre os processos de produção de decisões judiciais nas tradições do civil law e do common law. E de uma coisa não há dúvida: do trabalho de preencher lacunas – ou seja, do processo utilizado pelo juiz para decidir um caso em que não há uma segura referência preexistente (lei ou precedente) – surgem decisões que criam algo novo, “make new law”. Alhures e aqui.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 12/10/2025 - 04:38h

A escola silenciosa da convivência

Patrick Nilo

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Não se misture com quem você não gostaria de se tornar.

A convivência é uma escola silenciosa e, muitas vezes, sem perceber, você se matricula nela sem ler o regulamento.

Você absorve tudo: as palavras, os gestos, as reações.

Conviver é respirar a alma do outro. E quem respira o que é tóxico adoece sem notar.

A mente humana é uma esponja emocional: ela apreende por repetição, contágio e espelhamento.

É por isso que os sábios escolhem seus círculos com a mesma prudência com que um médico escolhe seus instrumentos.

Cada pessoa com quem você se conecta é um arquivo que se abre dentro de você.

Alguns ampliam sua consciência; outros corrompem seus valores.

Cuidado com os que zombam do que é sagrado, banalizam o que é belo e justificam o que é errado.

Aos poucos, você começa a achar normal o que antes o feriria.

E o perigo não está em se aproximar, mas em se acostumar.

Selecione suas companhias como quem escolhe o ar que respira.

Alguns o elevam; outros o esvaziam.

E, no fim, o que ficará não é o quanto você conviveu, mas o quanto você se tornou parecido com quem esteve ao seu lado.

Porque o caráter é moldado pelo convívio, e o destino, pelas influências que você aceita calado.

Patrick Nilo é procurador da República, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 05/10/2025 - 11:14h

“Nossas” filosofias

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa da Web

Arte ilustrativa da Web

Em consonância com a nossa evolução histórica, o desenvolvimento da filosofia jurídica brasileira baseou-se em ideias transplantadas de países da Europa Continental (Portugal, França, Alemanha e Itália, sobretudo). Essa herança, por óbvio, também influenciou no status que é atribuído às decisões judiciais como fontes do direito no nosso sistema jurídico.

Historicamente, duas concepções filosóficas opostas dominaram o debate na jusfilosofia brasileira durante os séculos XIX e XX: as ideias naturalista e positivista do direito.

Em geral, as ideias naturalistas, como foram reelaboradas no Brasil, afirmam a existência de um direito fundado na razão ou no mais íntimo da natureza humana, na qualidade de ser individual ou coletivo, ou mesmo na nossa relação com Deus, que preexiste ao direito que é produzido pelos homens ou pelo Estado e que deve ser sempre respeitado (conferir Miguel Maria de Serpa Lopes, em “Curso de Direito Civil”, v. 1, Freitas Bastos, 1988). Para os jusnaturalistas brasileiros, esse direito natural e superior deve ser respeitado ou ao menos levado em consideração pelos operadores do direito. O direito positivo (e mesmo a Constituição brasileira), sob o qual vive a nossa sociedade, deve estar em harmonia com as leis da natureza e os direitos naturais dos seres humanos.

Partindo da ideia de que há um direito preexistente ao direito produzido pelo povo ou pelo Estado (referido como direito positivo), os partidários do direito natural, sobretudo na sua concepção mais “purista”, não dão ao precedente judicial o status de criador do direito. Para eles, o papel das decisões judiciais não é criar, mas, sim, revelar algo: descobrir (a partir de princípios do direito natural e da razão) e declarar o direito que já existe. Elas são o resultado de um raciocínio simples: “o direito como deveria ser” (a decisão judicial) deve refletir “o direito como ele é” (o direito natural preexistente). 

O positivismo jurídico no Brasil se opõe à ideia de um direito natural. Antes de mais nada, o direito é positivo porque é criação do homem. Ademais, enquanto os defensores do jusnaturalismo se ocupam da fundamentação e da legitimação do direito positivo, calcando sua validade no respeito a princípios e valores absolutos, os positivistas estão interessados principalmente em apurar os princípios lógico-formais de sua validade.

Sob a visão do positivismo adotada no Brasil, a tarefa do juiz é principalmente manter a integridade lógica do sistema jurídico. Em outras palavras, o papel da atividade judicial (ou do precedente judicial) é manter a coerência do direito vigente (incluindo a Constituição). Ela serve, usando uma metáfora, como um amálgama para preencher lacunas indesejáveis (para aqueles que admitem sua existência) ou simplesmente para manter todo o sistema em uma forma mais coesa.

O problema é que o positivismo jurídico se divide em diversas correntes. Se há algum consenso relativo quanto aos objetivos da atividade judicial, as opiniões entre os positivistas brasileiros se dividem consideravelmente quanto aos atributos constitutivos dos precedentes: eles criam ou meramente revelam o direito? Alguns positivistas, baseados sobretudo numa visão estrita do princípio da separação de poderes, negam aos precedentes os atributos de criação do direito. Mas outros afirmam (seguindo a opinião de Hans Kelsen em “Teoria pura do direito”, Martins Fontes, 1991) que uma decisão judicial não tem, como frequentemente se supõe, um simples caráter declaratório. O labor do juiz não é uma mera “descoberta” de um direito já de antemão pronto e acabado. Não é um “jurisdictio” no seu sentido puramente declaratório.

A descoberta do direito, por meio de uma decisão fundamentada, consiste também na determinação da aplicação da norma geral e particular ao caso concreto. Essa determinação não tem apenas natureza declaratória, mas também constitutiva. Esse importante elemento do decisionismo na atividade do juiz – embora este esteja vinculado à norma legislada – aproxima essa visão kelseniana do direito ao realismo jurídico americano. O direito é uma criação humana e as normas específicas que decidem casos concretos são assim criadas pelos juízes.

Por outro lado, apenas recentemente (nos últimos 30 ou 40 anos), os juristas brasileiros vêm debatendo as ideias das escolas de pensamento típicas do common law, como a escola sociológica americana e o realismo jurídico americano. Mas é isso assunto para um outro papo. 

Marcelo Alves Dias de Souza é Procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 05/10/2025 - 09:48h

Sobre Luiz Gama e a abolição da escravatura em Mossoró

Por Odemirton Filho

Arte ilustrativa

Arte ilustrativa

Estou lendo o livro Luiz Gama contra o Império, do advogado e historiador do Direito, Bruno Rodrigues de Lima. Na obra, o autor destaca a luta de Gama pelo Direito no Brasil da escravidão. É uma leitura densa, fazendo-nos enveredar pelos tortuosos caminhos da escravidão brasileira. Luiz Gama nasceu em Salvador, na Bahia, em 21 de junho de 1830, e foi uma voz incansável na defesa dos direitos dos escravos.

Por coincidência, em um dia 30 de setembro, só que de 1871, ele escreveu:

“A minha missão única, missão de que orgulho-me, não é provar forças com assassinos, que desprezo; é prestar auxílio e proteção a pessoas livres, que sofrem cativeiro ilegal; é arrancar as vítimas das mãos dos possuidores de má-fé, é vencer a força estúpida e a sórdida cavilação, perante os tribunais, pelo direito, e com a razão. Minhas armas são as da inteligência, em luta pela vitória da justiça, e só pararei quando os juízes tiverem cumprido o seu dever”.

A leitura do livro despertou a minha curiosidade para saber um pouco mais sobre a história da abolição da escravidão em Mossoró, ocorrida em 30 de setembro de 1883. Infelizmente, não damos o devido crédito ao passado de nossas cidades, pois cada comunidade, e seu povo, tem uma história que merece atenção, muitas vezes com vários aspectos desconhecidos da sociedade. Creio que poucos mossoroenses ouviram falar em Rafael Mossoroense da Glória, que foi um dos alforriados.

Segundo dados que pesquisei, em 1861 existiam em Mossoró “somente” 153 cativos para uma população de 2.493 habitantes. Vale ressaltar, que no dia 06 de Janeiro de ano de 1883 foi criada a Sociedade Libertadora Mossoroense, a qual tinha por objetivo lutar pelo fim da escravidão no município; naquele ano, Mossoró contava com 86 escravos.

Destaque-se que ao lado da Sociedade Libertadora Mossoroense estava o Clube dos Spartacus (referência a Espártaco, líder das revoltas de escravizados na Roma Antiga), composto principalmente por ex-escravizados que, diferentemente dos membros da Libertadora, utilizavam-se de sua força braçal na luta pela emancipação dos escravizados. (Fonte: Cartilha didática, curso de História, UERN/Campus Mossoró).

Conta-se que no dia 30 de setembro “a cidade amanheceu em festa. Ao meio-dia, a Sociedade Libertadora Mossoroense se reúne na Câmara Municipal (onde atualmente funciona o Museu Lauro da Escóssia). O Presidente da Sociedade, Joaquim Bezerra da Costa Mendes, abre a sessão, e se inicia a leitura de cartas de alforria dos últimos escravos da cidade. Com a liberação oficial, ele declarou: “livre o município de Mossoró da mancha negra da escravidão”.

Eis, portanto, um breve relato sobre Luiz Gama e a abolição da escravatura em Mossoró. Existiram, é claro, vários interesses sociais, políticos e econômicos que permearam esse fragmento da nossa história. No entanto, o objetivo deste texto foi tão somente apresentar uma visão geral sobre o tema.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
domingo - 05/10/2025 - 08:00h

São Jorginho

Por Bruno Ernesto

Filhote de iguana posa tranquilamente numa árvore no rio Mossoró (Foto: Bruno Ernesto)

Filhote de iguana posa tranquilamente numa árvore no rio Mossoró (Foto: Bruno Ernesto)

Antes de tudo, é preciso ter fé e coragem – muita coragem – para se pedir proteção divina. Até os menos crédulos, vez ou outra, no íntimo, rogam por uma proteção. Desde que o pedido seja genuíno, acredito que nenhuma divindade se recusará a lhe conceder.

Eu mesmo, no início da minha adolescência, ousei – uma única vez – brincar com a proteção divina e o arrependimento veio poucos minutos após. 

Antes que você possa pensar, não considero Deus sádico. Não, ele não se deleita com sacrifícios, embora toda a tradição espiritual ocidental se baseie no sofrimento.

No texto intitulado “Na ponte à esquerda” (//blogcarlossantos.com.br/na-ponte-a-esquerda/), publicado no último dia vinte de julho, falei da necessidade de desacelerar e se observar as pequenas coisas que passam despercebidas, e que as duas iguanas que moram numa árvore na margem do rio Mossoró, bem no centro da cidade comprovam que nem tudo merece tanto esforço.

Aqueles dois pequenos dragões desafiam o caos e, tal qual a tradicional imagem de São Jorge em luta, nos dá coragem e fé num dia corrido e, para minha grata surpresa, após semanas sem avistá-las, eis que surge uma pequenina iguana pendurada nos galhos da mesma algaroba, e que logo batizei de Jorginho. Um pequenino dragão.

Quanto ao meu arrependimento, digo.

Após meses de negociação, convenci meus pais a permitirem que eu pudesse ir de bicicleta para todas as atividades fora do horário de aula, e assim, alguns dias da semana, eu atravessava a cidade inteira sozinho, num estirão de uns quatro quilômetros entre o Alto de São Manoel e o Colégio Diocesano Santa Luzia de Mossoró.

Nesses dias, podia sentir o gostinho da liberdade de locomoção, não sem antes minha mãe pedir à Deus que me acompanhasse nesse trajeto. Assim, com sua bênção, rumava para o colégio.

Num desses dias, ao sair de casa, ao pé do portão, minha mãe mais uma vez pediu à Deus para me acompanhar no trajeto. Eu, com uns doze anos de idade, muito empolgado, sem pensar, disse que não precisava, pois Deus era pesado e eu cansaria rápido pedalando e podia me atrasar.

Pois bem. Naquele dia – justamente naquele dia – fui assaltado por dois pivetes bem em frente ao Seminário Santa Terezinha. Naquele instante, ouvia em câmera lenta minha mãe dizer que Deus me acompanhasse.

Até hoje minha mãe me recorda deste episódio. Não com sadismo, jamais. Porém, como uma lição de que não se deve renegar proteção.

Quanto à Jorginho, em breve buscará seu próprio caminho. Antes, porém, certamente terá muitas lições e a proteção dos pais.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

 

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - Climatização - Agosto de 2025
domingo - 05/10/2025 - 06:30h

A cigarreira carioca

Por Cid Augusto

Foto escolhida pelo autor da crônica

Foto escolhida pelo autor da crônica

Por volta das 11h, de segunda a sábado, trabalhadores da região lotam o canteiro do cruzamento das ruas Afonso Pena e Governador Juvenal Lamartine para almoçar no restaurante de Angélica, mais conhecido como Cigarreira da Carioca. Dia após dia, ela e sua fiel escudeira Avete atendem dezenas – talvez centenas – de pessoas.

Comida sem frescura, saborosa, farta, barata. O prato, como diria o livreiro Abimael Silva, custa “somente 15 contos”. Hoje, o cardápio é arroz, feijão, macarrão, farofa, salada e carne – boi ou frango. Não tem o pudim que Angélica garante ser o melhor do mundo, por questões logísticas passageiras. O jeito é quebrar o galho com rapadura.

O povo faz fila. Quem não chegar cedo, dança, a exemplo do que me ocorre de vez em quando pelo costume de almoçar tarde. Reservaria por WhatsApp se a proprietária lesse a mensagem antes de a comida se acabar. “Tem dias” – se Chico usa, posso usar – que raspo as terrinas de arroz e feijão, e peço um ovo frito de complemento.

A propósito, para quem não sabe, cigarreira nada tem a ver com cigarros no RN. Nas bandas de cá, à revelia dos dicionários, a expressão designa pequenos pontos comerciais construídos em metal e instalados em canteiros e calçadas. Na própria Afonso Pena há várias delas, com oferta de produtos e serviços diversos.

A dona do empreendimento que inspira esta crônica, conforme o apelido antecipa, nasceu no Rio de Janeiro. Quando a conheci, levado pelo poeta George Veras, a Carioca comentou sobre a mudança para Natal. Não me lembro do motivo exato. Recordo apenas tê-la ouvido comparar a violência em ambos os lugares.

A capital fluminense, disse-me, tem índices bem maiores de criminalidade. Lá, seria perigoso agir como estávamos agindo, eu e George, almoçando em via pública com os celulares sobre a mesa, embora ela própria tenha sido furtada por cá. Levaram-lhe o par de sandálias na praia. Este ano, ao menos um roubo foi registrado nas imediações.

O importante é que a gente se delicia com a comida e com as conversas. Ouve-se de um tudo: cálculo estrutural, rede de internet, vendas, pendengas jurídicas, corações partidos, política, literatura, religião, futebol. Escuto em silêncio, a fim de capturar vestígios do cotidiano, matérias-primas da crônica.

Agora mesmo, entre uma garfada e outra, observo dois jovens debatendo o custeio de festas pelo município. Um deles, afobado, declara ter ido à última delas. Bebeu, comeu, embriagou-se, divertiu-se… “Enquanto – arremata o narrador – falta escola, saúde, educação…”. E haja pau no prefeito e nos frequentadores “alienados”.

O interlocutor exige coerência: “Você estava lá, meu amigo!”. O cara retruca: “Estava, sim, foi pago com o nosso dinheiro. E não me considero alienado, não, porque consigo identificar a manipulação da política de pão e circo”. Em acréscimo, explica que essa estratégia é antiga e evoca o Império Romano.

O rapaz do lado oposto da mesa insiste em tom sarcástico: “Perda de tempo protestar contra uma festa, especialmente se você vai a ela”. O boêmio consciente solta a última em forma de questionamento – “Perda de tempo lutar por seus direitos?” – e se levanta com raiva por haver tropeçado nas próprias contradições.

Como se vê, a Cigarreira da Carioca é também um ambiente de livre manifestação do pensamento. Pena eu não poder me demorar além dos já consumidos 10 minutos, em razão do trabalho. Vou perder inclusive o desfecho da peleja entre o sujeito de barbas brancas e o inimigo imaginário dele. Pense numa briga! Arrisca sair bofete.

Adoro garimpar histórias, histórias de gente, histórias que não frequentam noticiários nem interessam ao ego inflado dos grandessíssimos intelectuais da província. Contudo, o dever me fustiga. Por míseros segundos de devaneio, penso na aposentadoria, que nunca chegará. Então, volto bruscamente à realidade e chamo por Avete.

– A conta, por favor.

– Crédito ou débito?

– Crédito.

– Pode aproximar.

Pausa dramática. Sempre rola aquela tensão básica enquanto o pagamento é aprovado pela operadora de cartão de crédito.

– Passou?

– Passou, obrigada.

– Até amanhã!

– Até! Caso se lembre, guarde o meu almoço.

Cid Augusto é advogado, jornalista, professor e poeta

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Categoria(s): Crônica
domingo - 28/09/2025 - 09:38h

Frequência e criatividade

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa reproduzida da página Dannemann

Arte ilustrativa reproduzida da página Dannemann

As últimas décadas no Brasil testemunharam um aumento substancial no uso de precedentes como um dos principais fundamentos das decisões judiciais. Hoje, tribunais e juízes raramente se referem apenas à Constituição ou às leis pertinentes ao caso em julgamento, e os precedentes são citados tanto na ausência como na presença de disposição legislativa disciplinadora. Nestes casos, os precedentes têm sido uma espécie de meio para referência da legislação (e não uma alternativa a ela), cujas disposições são abordadas, analisadas e interpretadas por meio da discussão de precedentes relevantes, assim ganhando concretude e vida.

É verdade que essa expansão do uso de precedentes no Brasil é mais visível, em termos de frequência e poder decisório, em determinadas áreas do direito. É racional. Se um campo do direito é regulado por disposições legislativas não codificadas – como no caso dos direitos administrativo e previdenciário –, os precedentes aí desempenham um papel mais significativo. Além disso, percebe-se uma importância significativa no uso de precedentes em direito constitucional, eleitoral e tributário, devido ao fato de que os casos nessas áreas tratam principalmente de questões de direito, enquanto em outras áreas, como direito penal, os juízes frequentemente dedicam maior atenção às questões de fato.

Isso também leva a outra diferença observada no uso de precedentes pelos tribunais brasileiros. Considerando os níveis da estrutura judicial, os tribunais/juízos inferiores dedicam muito de sua atenção às questões de fato. Consequentemente, o uso de precedentes, comumente limitado à decisão de questões de direito, parece ser menos decisivo.

Por outro lado, como os tribunais superiores lidam principalmente com questões de direito, os precedentes ali desempenham um papel crucial na fundamentação de seus julgados. Aliás, esse desequilíbrio no uso de precedentes entre tribunais inferiores e superiores é comum também em outros países, a exemplo da Itália, como apontam Michele Taruffo e Michele La Torre (em “Precedent in Italy”, texto constante do livro “Interpreting Precedents: a Comparative Study”, Aldershot/England, Ashgate/Dartmouth publishing, 1997).

Apesar desses desequilíbrios, o resultado é que, na prática judicial brasileira, os precedentes desempenham um papel atualmente mais importante do que o da doutrina. Se outrora os precedentes não foram formalmente listados entre as fontes do direito no Brasil, hoje eles são considerados pelo menos como “fontes de fato”. E gradualmente caminhamos – parte da doutrina assim já aponta – para o reconhecimento da jurisprudência como fonte formal no ordenamento jurídico brasileiro. Esse panorama serve para desafiar o mito que afirma ser a doutrina dos precedentes vinculantes ou stare decisis uma prática exclusiva do direito consuetudinário. A vinculação das decisões judiciais é uma característica livremente autoatribuída por qualquer ordenamento jurídico a fim de alcançar a igualdade, a estabilidade, a previsibilidade e a celeridade nas decisões judiciais. Em outras palavras, a adoção de uma regra de stare decisis por um ordenamento jurídico não requer sua associação histórica com a tradição do direito common law.

Esse novo panorama também desconstrói um outro mito que afirma que os juízes de civil law, em termos da criatividade das suas decisões, desempenham um papel completamente diferente em comparação com seus pares do common law. Semelhantemente aos juízes em países do common law, os juízes brasileiros também criam direito – andam até criando demais, diga-se de passagem –, o que pode ser comprovado pelo fato de que algumas áreas do nosso direito, que não eram originalmente disciplinadas por lei, foram desenvolvidas pela jurisprudência.

Em resumo, embora historicamente associado ao civil law, o direito brasileiro passou por mudanças qualitativas, com a adoção de práticas bem-sucedidas do common law, como o uso mais amplo de precedentes fundamento das decisões judiciais. Isso tem se intensificado visivelmente e, no que diz respeito à frequência no uso e à criatividade dos precedentes, o sistema jurídico brasileiro provavelmente se tornará, no futuro, um exemplo de modelo misto.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 28/09/2025 - 08:26h

O calhambeque

Por Odemirton Filho

Roberto Carlos e o seu "Calhambeque" (Foto: reprodução da Web)

Roberto Carlos e o seu “Calhambeque” (Foto: reprodução da Web)

Das lembranças que eu trago na vida, parafraseando Roberto Carlos, uma delas marca profundamente a minha alma: o meu pai cantando a música O calhambeque, do “rei” Roberto. Inúmeras vezes ele cantou essa música, enquanto tomava uns goles de cerveja. Ao violão, quase sempre estava o meu saudoso tio Albeci, da banda Bárbaros; seja em Mossoró, na rua Tiradentes, seja no alpendre da casa de Tibau, eram momentos de pura nostalgia e descontração.

Esses momentos são “de vera” o que importam no decorrer de nossas vidas. Nada como estar ao lado de familiares (alguns, é claro) e amigos queridos. Por isso, tentemos viver de forma leve, apesar dos pesares e das dificuldades cotidianas.

Pois bem, ao cantar O calhambeque, acho que o meu pai viajava ao passado, resgatando tempos idos. Talvez, lembre da sua lambreta, quando passeava pelos arredores do Cine Pax, flertando com as moças da época. Certa vez, um amigo dele me disse que ambos pilotavam as suas lambretas e, às vezes, empinavam o pneu para impressionar os “brotos”.

E logo uma garota fez sinal para eu parar, e no meu calhambeque fez questão de passear, não sei o que pensei, mas eu não acreditei, que o calhambeque, bi-bi, o broto quis andar no calhambeque”.

Ou, quem sabe, ao cantarolar essa e outras músicas, ele lembre das festas no clube Ypiranga, da ACDP, dos festejos de Santa Luzia, da União Caixeiral (onde conheceu a minha mãe e, logo depois, iniciaram o namoro; poucos dias após, casaram-se).

Hoje, somente vez ou outra papai entoa algumas canções. Todavia, quando o escuto cantar, a minha memória afetiva é ativada, o meu tempo de menino/rapaz vem à tona, fazendo-me reviver, sobretudo, as agradáveis e inesquecíveis tardes/noites no alpendre da casa de Tibau.

Quem não traz no coração uma música que faz lembrar bons tempos? Pois então, o Calhambeque fez parte dos dias da minha infância e juventude; dias de um tempo danado de bom.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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domingo - 28/09/2025 - 06:44h

Crotomania

Por Bruno Ernesto

Pote com cróton (Foto: Bruno Ernesto)

Pote com cróton (Foto: Bruno Ernesto)

Ainda alcancei o tempo de tomar um refrescante copo d´água no pote de barro. O tibungado do copo nele é inconfundível.

Há umas três semanas pude tomar um belo copo d´água de um pequeno pote posto já há muito tempo na cozinha lá do sítio da minha família.

O cheiro da fumaça e da comida sendo preparada no fogão à lenha fez aquela água, bem fria e doce, descer como uma lágrima que escorre nos olhos de saudade do que já vivi por lá desde criança.

Fazia tempo que não via um pote, natural e tradicionalmente, posto na cozinha, sem que fosse um projeto paisagístico. Não que sua inclusão não seja bem-vinda, muito pelo contrário; quanto mais adeptos, melhor.

Nossa casa deve necessariamente refletir nosso estilo de vida, interesses e convicções. Disse e repito: não delegue a sua personalidade.

Se você ainda não percebeu, até os simples trabalhos manuais num sábado ou domingo em casa faz toda a diferença no nosso bem-estar, ainda que você não tenha o menor domínio sobre o que tenta fazer; quer seja organizando as panelas, talheres e louças na cozinha, os livros na estante do quarto ou na mesinha da sala, emoldurando uma fotografia impressa – sim, ainda há quem as “revele” – ou ajeitando o seu jardim.

Em algum momento da vida, enquanto aguardava a sua vez de passar pelo caixa do supermercado, você decidiu que iria iniciar uma pequena horta em casa e comprou aqueles pacotinhos de papel com sementes de hortaliças postos estrategicamente próximo deles: tomate, pimenta, salsa, cenoura, alface, abobrinha, couve, beterraba, rúcula, cebolinha etc.

Não duvido que tenha pedido à pessoa do carrinho logo atrás do seu para guardar a sua vez enquanto você correu feito louco em busca de um saco de adubo. Talvez tenha até se interessado por uma daquelas pequenas pás pintadas de laranja.

Embora tenha inúmeras pequenas e terapêuticas ocupações, dentre as quais cuidar diariamente dos meus gatos, a jardinagem é uma das minhas preferidas.

Aliás, essa relação entre gatos e plantas é muito problemática, pois há plantas que podem ficar no mesmo ambiente que eles e outras – muitas – são terminantemente proibidas, pois eles adoram mordiscá-las e isso é um terrível problema, uma vez que podem acabar intoxicados e nem as sete vidas os salvarão.

De um tempo para cá, para organizar um novo jardim, passei a garimpar potes de barro para transformá-los em jarros, especialmente para colocar crótons que precisam de um bom banho de sol e uns poucos goles d´água. O contraste do cróton com o pote é inigualável.

Viu por qual motivo não sou contra projetos paisagísticos? Desde que você empregue sua personalidade, esse sincretismo, essa fusão, é mais que interessante. Se não acredita, recomendo que aprecie as belíssimas criações de Christian de Saboya, como ele próprio gosta de dizer, o homem dos potes; muitos deles trazidos lá de Trucunhaém.

Assim, quando vir por aí um pote – quanto mais velhinho e rústico melhor -, lembre dos crótons e me avise.

Pode não servir mais para matar a sede, ou mesmo ter preço para uns, mas para mim tem valor.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 28/09/2025 - 03:34h

A minha nada mole vida de advogado

Por Marcello Benevolo

Arte ilustrativa com  recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

No imaginário das pessoas a advocacia é glamourosa: ternos de grife, escritórios alinhados, processos cheios de citações eruditas, cafés em reuniões estratégicas. Pois bem, na prática, o glamour dá lugar a situações pitorescas que só quem milita sabe.

Recentemente vivi mais uma dessas. Dois processos meus estavam parados há quase 60 dias em um Juizado Especial de uma cidade vizinha a Natal. Liguei para a secretaria da Comarca, expliquei a situação, e ouvi a seguinte resposta: “Doutor, os processos estão conclusos para despacho”. Ah, sério? Mas essa informação já aparece no sistema. Eu queria era movimentação, não constatação.

Pedi então para falar com a assessoria do gabinete ou com a própria juíza. Veio a surpresa: só atendiam presencialmente. Isso em plena era digital, quando o próprio Judiciário exige peticionamento eletrônico, audiências virtuais e assinaturas digitais. Viva a tecnologia, desde que não seja para falar com a assessoria ou com a juíza.

Como a cidade era vizinha a minha, então fui. Passei pela recepção, cheguei à secretaria, informei os números dos processos e fui convidado a… esperar no corredor. Sim, atendimento “corridor style”. Veio uma simpática assessora, ouviu meu relato em pé, e ali mesmo em meio a outros transeuntes do Fórum, tratamos do assunto. Nem um banco, nada. Parecia que o gabinete era território sagrado, inacessível.

Expliquei a urgência, ela respondeu que anotaria os números “de cabeça”. Tive que oferecer papel e caneta — coisas raras em um órgão público, ao que parece. Anotou, agradeceu e foi embora. Saí pensando: não espero tapete vermelho, mas ao menos uma cadeira não seria luxo.

Claro que não se deve generalizar. Há servidores exemplares, magistrados acessíveis e assessores solícitos. Mas o episódio mostra o quanto ainda precisamos avançar em respeito, estrutura e eficiência no sistema de Justiça. Porque, entre o glamour e a realidade, a advocacia é feita de perrengues — e de histórias que dariam ótimos capítulos de um diário de bordo.

Marcello Benevolo é advogado e jornalista

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Categoria(s): Crônica
domingo - 21/09/2025 - 10:06h

Além das estações

Por Bruno Ernesto

Foto ilustrativa do autor da crônica

Foto ilustrativa do autor da crônica

Talvez tenha passado despercebido, mas você também gosta de Mozart, Chopin, Bach, Strauss, Wagner, Tchaikovski, Schubert, Beethoven e Vivaldi. 

Busque na memória e perceberá que muitos filmes, desenhos animados, séries de televisão, novelas, peças teatrais e comerciais a que você assistiu, tem a música clássica como fundo musical. Ora lenta, ora tensa. Ora acelerada, ora dramática. E o ápice, o nirvana.

Acredito que se a substituírem por outro gênero musical, soará tão estranho que a cena do filme perderá o encanto.

Escute As Quatro Estações, de Vivaldi, brilhantemente executada por Julia Fischer (//youtu.be/vy-2K9AIqdA?si=F0ft5dXz3-LnIjPO) , ou A Valquíria, de Richard Wagner (//youtu.be/hQM97_iNXhk?si=R-rjNIhpz7zPJ70Q), e perceberá a diferença.

Assista, por exemplo, à dramaticidade da ária de Mozart, nos sentimentos extremos da Rainha da Noite, na ópera “A Flauta Doce” (//youtu.be/YuBeBjqKSGQ?si=n3bWD3ZMbYKteYcY). Certamente você lembrará da melodia.

Não, não é necessário ser um expert em música clássica para apreciá-las. Aliás, música alguma. Certamente você já dedilhou ou tamborilou ao escutar uma música.

Claro, além de refletir nosso estado de ânimo, também reflete nossas crenças, tradições, nos insere num determinado grupo social e, por vezes, é um instrumento de resistência.

Beethoven dizia que o segredo da música não está no toque da nota, mas no silêncio entre elas. Não por onde, se formos falar sobre a letra de uma canção, surgem incontáveis possibilidades de interpretação.

Ela invoca certas lembranças que há muito estão adormecidas num cantinho de nossa memória, e que, num breve momento, tal qual o ritmo sincopado de uma música, aos poucos resgata esse turbilhão de lembranças e sentimentos que simplesmente nos leva àquele perdido momento; seja ele bom ou não.

A música não pede licença à sua memória. Pelo contrário. Ela fustiga o que há de melhor e pior em nós. É como um trem que partiu e vai parando de estação em estação, embarcando e desembarcando esses sentimentos e essas memórias.

Basta escutar o primeiro acorde.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 14/09/2025 - 08:28h

Nem todo Joaquim é Quincas

Por Bruno Ernesto

Túmulo de Quincas Saldanha Foto: do autor da crônica)

Túmulo de Quincas Saldanha (Foto: Bruno Ernesto)

Você já reparou que há pessoas cujo nome de batismo só conhecemos quando um Oficial de Justiça bate à sua porta ou quando o nome sai no obituário?

Desde que me entendo por gente, na rua da minha avó, no bairro do Alecrim, em Natal, conhecia Dona Vil e Seu Brechó.

Dona Vil era uma senhora muito delica. Pouquinha, como dizemos. Rosto afilado, cabelos nos ombros, brancos e naturalmente escorridos, tal qual os cabelos do poeta Ferreira Gullar.

Não me recordo de ter ouvido sua voz – extremamente baixa – a mais de um metro de distância, especialmente nos últimos anos de vida, pois sempre acamada.

Soube que era Elvira, enquanto minha tia Luzia conversava com uma senhora ao meu lado durante o seu velório na Rua 8, no Alecrim.

O mesmo se deu com Seu Brechó, Pracinha que combateu em Monte Castello entre os anos 1944 e 1945, cujos olhos jamais vi a cor, pois sempre usava óculos Ray-Ban tipo aviador e uma boina de feltro impecavelmente branca. Morava três casas antes da de Dona Vil.

Soube que era Belchior quando cheguei para as suas exéquias.

Por acaso você já reparou que no Brasil há um costume de não se apresentar nominalmente nem perguntar o nome das pessoas? Por vezes, você passa anos conversando com uma pessoa e sequer sabe o nome dela.

Aquela pessoa que você encontra todos dias por poucos instantes, quer seja tomando um café, trabalhando no mesmo prédio ou fazendo as compras no mesmo supermercado, se resumem àquele conhecido do lugar comum.

Quando eu era criança, achava muito intrigante os nomes dos amigos e conhecidos do meu pai quando andava com ele lá pelas cidades e Almino Afonso e Patu nos em meado dos anos oitenta.

Dentre muitos, Zé Chapa, Berto, Moça e Zé Melosa. Papai, era Chichico; meu tio, Chiquito. Todavia, o que mais me intrigava – tanto pelo nome, quanto pela aparência – era Quincas.

A última vez que o vi foi por volta dos anos dois mil, a caminho do sítio, quando nos deparamos com ele bem na estrada da parede do açude no centro de Almino Afonso.

Estava como sempre o vi: calça social preta, camisa manga longa de botão e chinelos.

O que me surpreendeu foi que, apesar de muitos anos do falecimento de sua esposa, em sinal de luto, ele ainda usava o pequeno pedaço de tecido preto, do tamanho de uma caixa de fósforo e preso ao bolso de sua camisa com um pequeno alfinete-de-dama.

Não por onde, ainda ficava intrigado com a sua aparência, que destoava totalmente do fenótipo da nossa região. Ele parecia um Árabe com os cabelos pretos retintos, tal qual sua monocelha extremamente volumosa.

Embora há muitos anos tenha se aposentado da vida simples de agricultor de subsistência, jamais perdeu o costume de usar o seu chapéu de feltro preto, com uma fita branca laçada. Não era um Fedora, porém ele nos saudava tirando-o da cabeça.

Depois daquele dia, nunca mais o vi. Soube, muitos anos depois, que havia falecido.

Em contraste com a simplicidade de Quincas, amigo de infância do meu pai, recentemente fui conhecer, na cidade de Caraúbas, o túmulo de outro Quincas: Saldanha.

Túmulo de Quincas Saldanha de outro ângulo Foto: Bruno Ernesto)

Túmulo de Quincas Saldanha de outro ângulo Foto: Bruno Ernesto)

Embora não tenha conhecido esse personagem histórico pessoalmente, o que já li e ouvi sobre ele, já me permite ter muito interesse por sua história.

Era, como se diz, um Coronel abastado, influente politicamente e muito respeitado. E, claro, cercado de lendas.

A caminho de lá, antes, passei em frente ao seu antigo casarão, que beira a estrada que leva à cidade de Patu, e lá encontrei um grupo de homens que tangiam gado da antiga propriedade de Quincas Saldanha.

Perguntei se era difícil localizar o seu túmulo e me disseram que embora tenham misteriosamente retirado a lendária corrente que circundava o seu túmulo, a qual tinha por objetivo impedi-lo de vagar à noite, outro detalhe curioso identifica facilmente:

– Ele é a cara de Hitler.

De fato, não foi difícil achá-lo, mas confesso que fiquei intrigado com a sua aparência, muito mais que sua história.

Como meu pai dizia rindo: todo Joaquim é Quincas.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 07/09/2025 - 15:38h

O galo e o vira-lata

Por Bruno Ernesto

Foto ilustrativa de autoria do autor da crônica

Foto ilustrativa de autoria do autor da crônica

Acredito que a figura do galo represente o que há de mais marcante na infância de uma pessoa que gosta do campo ou, como se diz por aqui, do interior.

Quando vejo aqueles galos vistosos nos terreiros dos sítios, estufando o peito e me encarando, não há como não recordar dos bons momentos da infância.

Você, caro leitor, certamente já teve sido indagado de sua origem só pelo jeito de falar.

Não se engane. Ninguém consegue omitir sua origem.

Uns a negam veementemente, outros disfarçam e tergiversam com o mesmo intuito.

Porém, nada como ter orgulho de suas raízes.

Sim, claro que só o jeito de falar não quer dizer muita coisa. Na verdade, diz muito e não diz nada.

Se você, durante uma refeição, acomoda o talher no modo continental, experimente comer sem formalismo.

Se você gosta de risoto, prove arroz de leite. O arroz da terra, aquele vermelho, é o melhor.

Se você gosta de queijo Gouda ou Camembert , experimente queijo de coalho e de manteiga.

Se você gosta de soda italiana, prove um caldo de cana-de-açúcar.

Se você gosta de chantilly, prove nata. No feijão-de-corda é espetacular.

As coisas simples para uns, é um tesouro e tradição para outros.

O que é Vira-lata para um, é galo para outros.

Como dizia Guimarães Rosa, a lembrança da vida da gente se guarda é num lugar mais fundo que a alma, e o que é ruim a gente desaprende depressa.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 07/09/2025 - 13:50h

Bravíssimo, Veríssimo!

Por Odemirton Filho

Luís Fernando Veríssimo morreu em Porto Alegre (Foto: Mateus Bruxel/Agência RBS)

Luís Fernando Veríssimo nasceu em Porto Alegre-RS (Foto: Mateus Bruxel/Agência RBS)

“A crônica é literatura que se apega às coisas miúdas da vida. Nasce do rés do chão, com uma simplicidade reveladora e penetrante”.

No último dia 30, o Brasil perdeu a verve do cronista Luís Fernando Veríssimo. Ele deixou um legado imensurável de crônicas, contos e romances. Nascido em Porto Alegre/RS, em 1936, Veríssimo era detentor de uma fina ironia. Em seus textos, sabia navegar no cotidiano e perscrutar a alma humana.

Assim é o cronista. Do simples, extrai o que há de melhor na vida. No entanto, não fica amarrado ao estilo culto da língua. Ao contrário, prefere a linguagem coloquial que se identifica com o dia a dia das pessoas. O cronista observa a paisagem, um jardim florido, uma praça, o azul do mar, o luar, um casal enamorado, conseguindo transformar o que parece banal em especial.

Certa vez, ao ser entrevistado, Veríssimo disse que com trinta e poucas linhas se conseguia escrever uma crônica. Entretanto, em relação ao romance, essa quantidade de linhas daria, talvez, para um capítulo de um livro. Sem dúvida, ao escrever crônicas podemos enveredar por caminhos diversos, às vezes, de forma sucinta, deixando fluir palavras carregadas de sentimentos, lembranças e saudades.

Entre os seus inúmeros textos, destaca-se a série de crônicas sobre a Velhinha de Taubaté. Tratava-se de uma senhora que acreditava no governo durante a gestão do general João Baptista de Figueiredo (1979-1985). Ela continuou a acreditar nos mais variados políticos até que, com o tempo, de tanto se decepcionar, morreu. (Tenho para mim que continua vivendo em pessoas que acreditam e idolatram políticos).

Luís Fernando gostava de frases marcantes, instigantes, reflexivas. Eis algumas: “No Brasil o fundo do poço é uma etapa”. “Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data”. “Os tristes acham que o vento geme, os alegres acham que ele canta”. “O futuro era muito melhor antigamente”.

Bravíssimo, Veríssimo. Valeu!

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
sexta-feira - 05/09/2025 - 10:38h
Senhor Redator:

Um destino inevitável e a boa escrita

Na biblioteca do mestre, tentando aprender a escrever, com infusão de Serra Limpa (Foto: Fevereiro/2022/Natal, BCS)

Na biblioteca do mestre, tentando aprender a escrever, com infusão de Serra Limpa (Foto: Fevereiro/2022/Natal, BCS)

“Ninguém é jornalista só por desejar, por vaidade incontrolável ou por ter um diploma com letras heráldicas. Jornalismo é um destino. Ou, e tão pior: inevitável.”

A análise é do jornalista Vicente Serejo, arrimado na coluna Cena Urbana do Tribuna do Norte, sua casamata há algumas décadas – numa trajetória de mais de 50 anos de imprensa. Bote aí também, 32 de docência na Universidade Federal do RN (UFRN).

Sua crônica “Dois Brasis” dessa quinta-feira (04) é um primor. Redundância minha, ora, ora, Senhor Redator.

Diariamente a gente tem à disposição uma aula de perspicácia, escrita fina e conhecimento. Ao vivo, Vicente (só o trato pelo prenome, ao contrário da maioria dos seus interlocutores, que adota o Serejo), é ainda mais melhor.

“Ninguém ensina ninguém a escrever bem. Mais: escrever correto se aprende até o segundo grau e escrever com talento não está nos manuais”, assinalava Vicente pros seus alunos, já os impactando no primeiro dia de aula na Comunicação Social.

Aprendiz, esse blogueiro nacionalmente ignorado e mundialmente desconhecido teima em espiar o talento do mestre para contrariá-lo: ele ensina a escrever bem. A gente tenta.

Que privilégio!

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 31/08/2025 - 18:30h

Domingo

Por Carlos Santos

Capa do livro de João Almino (Foto: do autor da crônica)

Capa do livro de João Almino (Foto: do autor da crônica)

É um deleite “As cinco estações do amor” do conterrâneo João Almino. Domingo desacelerado, não tenho pressa também à leitura. Nem poderia.

Em casa, em Mossoró, testemunho a neblina fugaz e extemporânea desse quase setembro que zomba, lá fora, do perpétuo verão. Inverno? Não. Talvez apenas um flerte com a estação que se foi, nosso “tempo bom” sertanejo.

No livro, sigo os passos de Ana, parágrafo a parágrafo. Não sei o que me espera adiante. Mas gosto da companhia e do que começa a ser descortinado por ela.

“Sem que eu percebesse, o tempo tornou-se um bem raro e fez sumir a disponibilidade que toda amizade exige.”

Concordo.

Carlos Santos é criador e editor do BCS

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domingo - 31/08/2025 - 11:46h

Não se preocupem, amigos

Por Bruno Ernesto

Torta de café Foto do autor)

Torta de café (Foto do autor)

Dia desses, entre um compromisso e outro, desviei do caminho por quarenta minutos e parei para tomar um copo de água com gás, uma rodela de limão – apenas uma –, gelo – bastante –, e três cafés expressos com torra média. Sim, três. Um atrás do outro. Como um dependente químico que precisa manter-se entorpecido.

Por hábito, sempre que possível, prefiro sentar no mesmo local. Isso é péssimo pois, não raro, flagro alguém desavisado nele. Enfim, tenho que procurar outro o mais próximo possível do ar condicionado.

Nesse dia, por sorte, a minha mesa preferida estava desocupada e pude aproveitar para debelar um pouco o calor descomunal que fazia, e ali fiquei bebericando minha água bem gelada e tomar meus cafés enquanto lia algumas notícias e dava uma olhada nas redes sociais.

Como é comum – infelizmente -, por vezes, você se depara com alguém conversando com o volume muito acima do adequado para o ambiente, de modo que acaba por escutar todo tipo de conversa. Engraçadas, tristes, fofocas, assuntos profissionais, aleatórios e desabafos.

Nesse contexto, duas mulheres conversaram efusivamente na mesa em frente, quando uma delas pegou o telefone e efetuou uma ligação e passou a conversar no viva-voz.

Muito embora tentasse não ouvir a conversa, a propagação do som teimou em ser obediente às leis da física e todos os presentes tiveram o desprazer de ter que escutar toda aquela conversa.

Aparentemente, o esposo da dita interlocutora estava tendo um sério problema na obra que tocava, pois tentava convencê-la de várias escolhas de materiais que ela insistia em dizer que, mesmo após instalados, não tinha gostado.

Entre muitos vocativos carinhosos, fofos e melosos, para – aparentemente – convencer o marido de que não estava satisfeita, contabilizei o desacordo em relação à cor do piso, o tamanho de uma pia e a cor de uma porta.

Pude escutar o desespero do pobre homem naquela estridente ligação no viva-voz, que tentava justificar a escolha, dizendo que já estava tudo finalizado e que foi feito da forma que havia sido por ela escolhida, e que ela própria havia jurado ter adorado o projeto arquitetônico, apresentado cinco meses antes na tela com resolução 4K, pela renomada arquiteta.

Tudo em vão. A mulher levantou a mão, pediu mais uma fatia de torta, e, com a voz trêmula, disse:

– Amor, não gostei. Estou cansada dessa obra, amor. Tem como refazer?

Como precisei ir embora, não pude escutar o fim daquela boa conversa. Muito embora, pelo pouco que pude involuntariamente escutar, me lembrei do que o filósofo moralista francês Jean Rostand disse:

– “Não se preocupem, amigos. Não se preocupem. Não se preocupem. Não acontecerá nada do que vocês têm medo. Acontecerá coisa muito pior.”

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 31/08/2025 - 10:28h

A recente influência do common law

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

A conformação do direito brasileiro, assim como da grande maioria dos países do Novo Mundo, é o resultado de uma mistura de herança histórica, filosofias sucessivamente em voga e disposições legislativas, antigas e recentes.

No início da história do Brasil, as antigas normas importadas de Portugal ofereciam soluções satisfatórias para a maioria das questões jurídicas da nova colônia e, em seguida, do novo país. Entretanto, o direito brasileiro foi progressivamente se adaptando à nossa realidade. Um direito rudimentar foi desenvolvido no Brasil durante o período do Primeiro Império. Surgiram as nossas primeiras codificações. O direito brasileiro foi sendo fortemente influenciado pelo direito produzido em países da Europa Continental, levando-o à histórica ligação com a tradição romano-germânica ou do civil law, cujos conceitos aqui prevalecem sobre a prática do common law. Vários ramos do direito brasileiro são codificados, embora as leis não codificadas também desempenhem um papel substancial na estrutura do sistema jurídico.

Entretanto, se o direito brasileiro acabou optando por uma associação com o civil law (lembremos que os códigos e as leis ainda são a nossa primeira fonte formal para a aplicação do direito), ele não ficou, sobretudo nos últimos 30 ou 40 anos, imune à influência do common law.

Como bem já explicava Cândido Rangel Dinamarco (em “Fundamentos do processo civil moderno”, Malheiros Editores, 2002), uma das tendências mais visíveis em toda a América Latina é “a absorção de maiores conhecimentos e mais institutos inerentes ao sistema da common law. Plasmados na cultura europeia-continental segundo os institutos e dogmas hauridos primeiramente pelas lições dos processualistas ibéricos mais antigos e, depois, dos italianos e alemães, os processualistas latino-americanos vão se conscientizando da necessidade de buscar novas luzes e novas soluções em sistemas processuais que desconhecem ou minimizam esses dogmas e se pautam pelo pragmatismo de outros conceitos e outras estruturas.

O interesse pela cultura processualista dos países da common law foi inclusive estimulado por estudiosos italianos que, como Mauro Cappelletti e Michele Taruffo, desenvolveram intensa cooperação com universidades norte-americanas. Os congressistas internacionais patrocinados pela Associação Internacional de Direito Processual contam com a participação de processualistas de toda origem e isso vem quebrando as barreiras existentes entre duas ou mais famílias jurídicas, antes havidas como intransponíveis. Ainda há o que aprender da experiência norte-americana das class actions, das aplicações da cláusula due process of law, do contempt of court e de muitas das soluções do common law ainda praticamente desconhecidas aos nossos estudiosos – mas é previsível que os estudos agora endereçados às obras jurídicas da América do Norte conduzam à absorção de outros institutos”.

De fato, nos últimos decênios, colocando como ponto de partida a adoção e o desenvolvimento das ações coletivas, o legislador brasileiro tem se voltado progressivamente para os países que adotam o common law a fim de buscar ideias para o aprimoramento da sua legislação e do seu direito, especialmente em áreas como o direito processual. No Brasil contemporâneo, devido à globalização, a absorção dessas práticas do common law – incluindo um uso mais amplo e criativo de precedentes vinculantes nos tribunais – intensificou-se visivelmente.

Há até quem diga – e eu mesmo questionei isso na minha tese de doutorado/PhD no Reino Unido, no King’s College London – KCL, intitulada “The Brazilian Model of Precedents: a New Hybrid between Civil and Common Law?” (em português, algo como “O modelo brasileiro de precedentes: um novo híbrido entre o civil law e o common law?”) –, com fundamento na atual relevância do uso dos precedentes como fundamento para os nossos pronunciamentos judiciais, que o sistema jurídico brasileiro provavelmente se tornará, no futuro, no que toca ao balanço leis/precedentes, um exemplo do que apelidamos de “sistema jurídico híbrido ou misto”.

Aliás, a própria questão da existência de sistemas jurídicos híbridos ou mistos mundo afora deve ser assunto para um outro papo nosso. Aguardem. É palavra de escoteiro.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 31/08/2025 - 08:24h

Tocando em frente

Por Odemirton Filho

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS

Nesses tempos de intolerância, nos quais não se escuta o que o outro tem a dizer, e todos são donos da razão, procuro me blindar da toxicidade das redes sociais. Não sei você, mas eu tento manter a calma para enfrentar as batalhas da vida. Que são muitas.

Na verdade, não sei como alguém consegue viver permanentemente em guerra; não sei como o coração suporta, a alma aguenta. Sendo assim, ante as dificuldades impostas pela, procuro respirar fundo, pedindo sabedoria a Deus para superar as adversidades.

Certamente não é uma tarefa fácil. No entanto, é preciso tecer em nossas vidas um caminho que possa ser percorrido com discernimento e paz. A escolha certa depende, sobremaneira, de um matutar sereno ou, quem sabe, de uma oração singela que ilumine as nossas decisões.

Cada um tem os seus desafios, uns mais, outros, menos. Contudo, para vencê-los, é preciso diminuir o ritmo do dia a dia, procurando arejar a cabeça. Decisões atabalhoadas, irrefletidas, levam-nos a atitudes inconsequentes, às vezes, sem volta.

Por exemplo: qual a vantagem de continuar um debate quando o interlocutor entende que suas convicções são imutáveis? Ora, se ele tem sempre razão, torna-se infrutífero qualquer diálogo. Assim, não há argumento, por mais verossímil que seja, que faça o intransigente mudar de opinião.

Por isso, em certas ocasiões, é preciso ensarilhar as armas, saber a hora de recuar. Para vencer uma guerra é fundamental ter estratégia, ou seja, é preciso refletir para, somente depois, avançar.

Enfim, “penso que cumprir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente”. Buscando paz.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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domingo - 24/08/2025 - 05:32h

O porquê do civil law

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa do Jusbrasil

Arte ilustrativa do Jusbrasil

Como sói acontecer na grande maioria dos países do Novo Mundo, a configuração do direito brasileiro pode ser vista como o resultado de uma mistura de herança histórica, filosofias sucessivamente em voga e disposições legislativas, antigas e recentes.

A origem histórica do direito da República Federativa do Brasil está no estabelecimento de uma colônia portuguesa, no chamado Novo Mundo, no início do século XVI. Cerca de três séculos depois, em 1815, o Brasil foi promovido de colônia a reino soberano, unido a Portugal. Em seguida, em 7 de setembro de 1822, o filho mais velho do rei português João VI e regente do Brasil, o príncipe Pedro, declarou a independência do país de Portugal.

O príncipe Pedro foi declarado e coroado (em outubro e dezembro de 1822, respectivamente) o primeiro governante do Brasil independente, como Imperador Dom Pedro I. Foi durante esse Primeiro Império, em 25 de março de 1824, que a primeira Constituição brasileira foi promulgada. Pedro I abdicou em 7 de abril de 1831, deixando o seu filho mais velho como sucessor, que viria a ser o Imperador Dom Pedro II.

Assim como o exemplo célebre da conformação inicial do direito estadunidense à fundação, pelos ingleses, nos albores do século XVII, de colônias independentes na América do Norte, no início da história do Brasil, as antigas normas importadas de Portugal ofereciam soluções satisfatórias para a maioria das questões jurídicas da nova colônia e, em seguida, do novo país. Por exemplo, as Ordenações Afonsinas (1492) e as Ordenações Manuelinas (1512), bem como as Ordenações Filipinas (1603), foram aplicadas por vários anos no Brasil, estas últimas mesmo já durante o Primeiro Império.

Em forma e substância, entretanto, o direito brasileiro foi progressivamente se adaptando às condições específicas do país. Primeiramente, além do direito civil português, um direito rudimentar foi desenvolvido no Brasil durante o período do Primeiro Império. Surgiram as primeiras codificações brasileiras, como o Código Penal de 1830 e o Código de Processo Penal de 1832 (o primeiro Código Civil só surgiu em 1916), que auxiliaram na administração da Justiça. Em segundo lugar, além da influência do direito ibérico (de Portugal e também da Espanha), o desenvolvimento do direito brasileiro foi fortemente influenciado pelo direito produzido em países da Europa Continental, como França, Alemanha e Itália, o que certamente já sinaliza a associação brasileira com o civil law.

É realmente devido a esse contexto que o direito brasileiro está historicamente ligado à tradição romano-germânica, e que os conceitos de civil law prevalecem sobre a prática do common law. Vários ramos do direito brasileiro são codificados, embora leis não codificadas também desempenhem um papel substancial na estrutura do sistema jurídico. Obras doutrinárias têm forte influência no desenvolvimento legislativo e nas decisões judiciais. Os precedentes judiciais, até bem pouco tempo, eram geralmente apenas persuasivos (neste ponto, a coisa é hoje um pouco mais complexa).

Atualmente, todo o sistema jurídico brasileiro deve obediência à Constituição Federal de 1988 (promulgada em 5 de outubro do referido ano), a lei fundamental do Brasil. Até hoje, já foram aprovadas e incorporadas 135 emendas à Constituição Federal, além das seis emendas constitucionais de revisão e dos quatro tratados internacionais aprovados com equivalência às emendas constitucionais, totalizando, assim, 145 alterações ao texto original. De acordo com o princípio da soberania da Constituição, o restante da legislação e as decisões judiciais devem estar em conformidade com suas disposições. Isso inclui as constituições estaduais e as leis orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal, que também não devem contradizer a Constituição Federal.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 24/08/2025 - 05:00h

Eternos momentos

Por Odemirton Filho

Criança e avô caminham na praia - Imagem ilustrativa com recursos de Inteligência artificial para o BCS

Criança e avô caminham na praia – Imagem ilustrativa com recursos de Inteligência artificial para o BCS

Na semana passada fui à praia com o meu primeiro neto. Foi a segunda vez que ele viu o mar, e parece que gostou. É ainda um bebê, começando os dias de sua vida. Sentado na areia com os seus pais, ele sorria, olhava o mar, as ondas quebrando, pegava na areia; a brisa batendo em seu pequenino rosto.

Eu o olhava, de longe, apreciando esse momento tão singelo, de descobertas. E pensei no junho de minha vida. Vi-me na areia, fazendo castelos, brincando com os carrinhos. Eu estava a jogar bola com o meus primos e amigos, tomando banho de mar, desbravando o morro do labirinto.

Não sei se o meu neto continuará gostando de ir à praia, no entanto, espero que possa acompanhá-lo nessa jornada, e possamos jogar bola. Formaremos uma pequena trave, com chinelos. Ele, então, fará gols. Sorrirá. Depois, mergulharemos no mar; pegaremos “jacaré”; banharemos nossos corpos, sobretudo a alma, afastando mau-olhado.

Esperaremos as jangadas que aportarão à beira-mar e compraremos peixes. Vamos nos lambuzar saboreando picolés de chocolate. Caminharemos até a pedra do Ceará, recolhendo as conchas que embelezam a praia (as grandes, levaremos ao ouvido para escutar o barulho do mar, o fenômeno da reverberação), e afundaremos os nossos pés na areia, em ensolaradas tardes de fluxo e refluxo da maré.

Tudo isso, é claro, sob o olhar carinhoso e atento dos seus pais.

Na casa dos seus bisavós, ele vislumbrará uma linda paisagem; um mar azul, um lindo coqueiral. Na linha do horizonte, verá o Porto-ilha, que leva o nome do seu trisavô. O alpendre da casa será palco de redes armadas, onde se joga conversa fora, e se toma café coado, com bolo, grude e tapioca.

Na adolescência, talvez, ele não queira ir à praia comigo. Decerto, preferirá a companhia dos amigos e amigas, iniciando as paqueras, “as ficantes”, os namoros, na “vibe” dos doces anos da juventude. Pena que não curtirá as festas do Creda e a escadaria de Zé Félix.

Por isso, tento aproveitar esses eternos momentos, fazendo-os inesquecíveis, singulares.

Lembrei-me do poeta paraibano Ronaldo Cunha Lima, no seu livro de sonetos, Sal no rosto:

“Quando os meus filhos disserem aos meus netos o quanto eu os amava; e quando os meus netos disserem aos meus filhos que guardam lembranças minhas, e de mim sentem saudade, não terei morrido nunca:

Serei eternidade”.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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