sexta-feira - 30/09/2011 - 11:56h
Crônica

À lembrança do pai

Por Cefas Carvalho (jornalista e escritor) no Facebook:

Um dia 30 de setembro de registros. Alguns, de felicidade: 4 meses de namoro com Sandra. 4 meses no apartamento novo. Mas, o registro maior é de saudades: hoje completa 20 anos da morte de José Luiz Silva, o “Padre Zé Luiz”.

Teólogo, escritor, jornalista, publicitário, pai de primeira qualidade e dono de um humor ferino (que lhe rendeu inimigos e desafetos), padre que marcou época em municípios como Pendências, Zé Luiz deixa saudades entre amigos e familiares.

Nota do Blog – Meu querido amigo, acordei há pouco e deparo-me com essa ode ao padre Zé Luiz. Você, filho, rebento legítimo de sua inteligência e cultura, premia seus amigos na infovia, com o sentimento que nunca cessa; não cessa por ser o melhor dos sentimentos: o amor. Abração! Saúde e paz. Zé Luiz vive!

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segunda-feira - 19/09/2011 - 10:01h
A um filho

Reverência à minha saudade

A saudade tem um gosto paradoxal: faz bem e atenua a falta; faz mal porque nos avisa que não estamos próximos.

Sempre tenho saudades. Cultivo-as como um sacrário. Presto-lhes homenagens não apenas com a lembrança, mas com reverência.

Hoje, do filho distante; perto, assim mesmo.

O filho que está em “Sum” Paulo e que não sai de mim.

O filho amado, de quem sou fã.

Amado a distância; querido, quando perto.

Amém!

Assim é minha saudade: reverencial.

Feliz aniversário, meu filho!

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quinta-feira - 25/08/2011 - 10:05h

Imagens do meu sertão de uma janela embaciada

No instante em que escrevo esta postagem, Natal é coberta por uma densa chuva. Água fertilizadora.

Da janela do apartamento, em Morro Branco, vejo uma cidade que se entrega ao banho matinal. Mesmo assim, ruge. O ronco de seus carros, o zunir de uma furadeira do outro lado da rua e o abrir e fechar do elevador, que cospe gente para sua rotina urbana, quebram meu encanto inicial.

Na vidraça, embaciada, pincelo minha rubrica com o indicador. Ou caberia o grafismo de um coração, que se volatiza porque não é feito de pedra?

Lá no meu sertão, a chuva espanta bode, empanzina açudes e junta amigos e famílias nas calçadas.

Caindo mansa ou de forma torrencial em nosso cocuruto, das bicas nas casas alpendradas ou não, vira ducha  in natura. É uma cascata celestial. Um privilégio. Se for acompanhada por uma boa cachaça, ô!!

É a mesma expressão da natureza que multiplica a vida e transforma árvores retorcidas e chão árido em cenário de encher os olhos. Sapos coaxam, curimatã cumpre seu ciclo de reprodução; insetos povoam as lâmpadas da posteação e fogem da lamparina ardente.

Um vento frio sibila à ponta do nariz. Muitos de nós emitem sons ininteligíveis. Fazemos vibrar os próprios lábios em bico e urramos para espantar a temperatura estranha. As crianças e os mais velhos cruzam os braços e apertam o próprio corpo, como se fossem esmigalhá-lo.

A pele tostada pelo sol, se enruga.

“Fenômeno da seca”, lugar-comum de cientistas, leigos e imprensa, quer fazer do que é costumeiro, algo inusitado. Não, não.

Na verdade, é essa chuva benfazeja que lá, no meu sertão, é recebida como um acontecimento inusitado. Pra muitos, benção divina.

Entregamo-nos a rituais que agradecem sua chegada ou por vezes clamam que pare um pouquinho, só um pouquinho, como na célebre canção de Luiz Gonzaga.

De minha janela, no segundo andar, não tiro os olhos das imagens que a mente guarda. São telúricas, sim. Dou-me ao luxo de experimentar o feijão na panela de barro; canjica que sai quentinha do fogão à lenha e a água tirada do pote no canto de parede.

O vira-lata, dócil, como a fiel “Baleia” de Graciliano Ramos, faz-me um pouco Fabiano – seu dono. Mas não é de sua morte que quero falar. Chove lá fora… e aqui, faz tanto frio…

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domingo - 24/07/2011 - 13:13h

Nenhuma mulher se acha bonita

Por Fabrício Carpinejar

Toda mulher bonita não se acha bonita. Mesmo a mais bonita. É alguma coisa que não agrada: a orelha, o pé, a mão.

São detalhes imperceptíveis para a tripulação barbuda. Ou as veias estão muito saltadas ou as unhas quebram rápido. Uma coisinha que somente ela nota. E ela sofre duas vezes: quando alguém descobre e quando ninguém enxerga.

A segunda opção é a mais triste.

Caso o problema passe despercebido, partirá do princípio de que é tão insignificante que não merece a atenção dos outros.

Toda mulher se vê filha única do defeito. E não é um defeito, mas uma cisma. A maior parte dos defeitos é superstição.

Talvez o martírio feminino venha do excesso de controle: ela se olha demais, e tudo ganha o dobro de importância. O homem se olha de menos, e nunca teve estrias e celulite.

Para a mulher, espelho é lupa. Para o homem, espelho é janela.

Uma espinha, por exemplo, quando descoberta por uma mulher torna-se o próprio rosto. O rosto não existe mais, somente a espinha, que é alisada a cada preocupação.

Mulher não se acha realmente bonita. Nem Brigitte Bardot antes. Nem Gisele Bündchen agora.

Mulher nenhuma no mundo é vaidosa; vaidade é a confirmação de um atributo e ela desconhece suas qualidades. Mulher nenhuma acredita que é bonita, apenas disfarça que é bonita.

O elogio que recebe soa como ironia. A ausência de elogio soa como reclamação.

Arrumar-se de manhã para a mulher não é um prazer, e sim um pânico. No fundo, ela se considera um encalhe. Jura que qualquer novo amor é resultado de compaixão ou cegueira masculina.

Mulher não nasce bonita, torna-se provisoriamente bonita (em sua concepção, a beleza dura apenas um dia).

Ela se monta por 24h, mais do que isso não consegue: carrega o medo de se desmanchar com a luz e desiludir a expectativa do próximo. Seus cuidados são vinganças: à infância, ao deboche da família, ao bullying na escola.

Dentro dela, ela continua uma nerd. Guardará para sempre a imagem de menina inteligente e problemática, de gorda balofa, de desengonçada e fora do time, de alta girafa, de sardenta enferrujada, de vesga fundo de garrafa.

Não adianta convencê-la de que ela é linda, ela se acorda despenteada e nasce de novo, como se não tivesse vivido antes. Não é falsa modéstia, sequer é modéstia, ela se percebe feia.

Toda mulher bonita acredita que, no máximo, pode se ajeitar.

Em seus olhos, corre uma insatisfação permanente que não permite descanso e luto. Se seus cabelos são lisos, ela gostaria que fossem cacheados; se são cacheados gostaria que fossem ondulados, se são ondulados gostaria que fossem crespos.

A beleza é uma conclusão. E toda mulher vive de dúvidas, toda mulher é uma pergunta. Uma insaciável pergunta.

Fabrício Carpinejar é jornalista, professor e escritor gaúcho

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quarta-feira - 20/07/2011 - 19:43h
Assim penso

Confissão da amizade sem dia, hora ou lugar

(…) Os melhores amigos
Não trazem dentro da boca
Palavras fingidas ou falsas histórias
Sabem entender o silêncio (Amizade Sincera, Renato Teixeira)

Avisam-me pela rede de microblogs Twitter (siga-me AQUI), que hoje é o “Dia do Amigo”.

Ah, tá!

Tudo bem.

Dizer o quê?

É-me fundamental falar o que penso. É de minha natureza. Rejeito o lugar-comum.

Meus amigos o são. Sem dia, sem hora, sem lugar. Feliz, triste. Bem, mal.

Cada um com seu jeito, suas manias e defeitos (ainda bem). Sim, todos têm defeitos, mas nenhuma deformidade.

Ex-amigos? Não os tenho. Algumas pessoas passaram por mim, como rios cauladosos que avançam pelas margens em busca de um pedaço a mais de territorio, mas que terminam áridos ou assoreados pela pequenez de seus gestos.

Por vezes borbulham anos sem que eu os veja. Noutros tempos, nos falamos diariamente… de forma diluviana.

O silêncio e a distância não viram vácuo.

Por quê?

Porque o são. Somos amigos, sim.

Não padeço da solidão glacial da falta de amigos. Possuo-os com a intensidade dos que amam de graça, feliz por tê-los quando não parecem importantes e quando são imprescindíveis.

Meus amigos, muito obrigado.

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domingo - 03/07/2011 - 13:44h

Se não fosse o anel…

Por Honório de Medeiros

Como se encarnasse um sonho irreal de adolescente, na terceira ou quarta volta em torno do salão onde casais dançavam ao ritmo das músicas daqueles loucos anos 70 ela lhe apareceu. Em um gesto instintivo você levantou o copo de rum Montilla com coca-cola como que oferecendo enquanto a avaliava.

Ali estava uma mulher bonita, muito bonita, pelo menos para o seu padrão: cabelos longos, crespos, cheios, displicentemente soltos e partidos ao meio, emoldurando um rosto oval perfeito no qual pontificavam um nariz diminuto acima de uma boca carmim/carnudo-vermelha e olhos sempre meio escondidos por longos e abundantes cílios; o corpo magro quase oculto por um daqueles vestidos longos, típicos da época, terminava nos tornozelos pousados em sandálias das quais saiam finas tiras de couro que subiam pernas acima.

O copo foi aos lábios dela e sem trocarem qualquer palavra se dirigiram a um batente meio afastado que circundava a área onde ficavam as mesas. Então conversaram. Não se sabe se o primeiro beijo veio logo ou demorou. Não se sabe acerca do que falaram, mas o passado e o futuro se fizeram presente.

Na ânsia de conhecê-la você mergulhou seus olhos nos dela querendo alcançar os fatos e pensamentos mais remotos gravados em sua memória. A noite adquiriu contornos mágicos: seu perfume, discreto, suave, era único; o bulício longínquo da festa, um pano-de-fundo perfeito para os silêncios intermitentes; a música estava dentro de cada um.

Já no final, ainda desatento ao fato de que a encontrara vagando sozinha e não fora procurada, até então, por quem quer que seja, enquanto a multidão se dispersava você perguntou onde ela morava. Ela lhe disse, vagamente, que no Centro. E como iria para casa? Não houve resposta.

Àquela hora somente havia táxi. Ou carona, já que carro era um luxo distante. Poderiam ir a pé, você propôs, afinal não ficava tão distante, e as ruas e bairros seriam atravessados lentamente enquanto o sentimento fluía mundo afora e saudava a manhã nascente. Não ocorrera, ainda, a você, quão estranho era a solidão que a cercava.

Se você não estivesse ali – era o caso de se pensar – ela teria ido sozinha enfrentando a madrugada, para casa? Assim, foram. Mãos dadas. Silêncios interrompidos por brincadeiras. As ruas silenciosas por testemunha. A manhã possuindo a noite.

Na altura do velho cinema ela parou e lhe disse que ali precisariam se separar. Não era possível deixá-la em frente à sua casa. Não houve questionamento. Sua relutância não a oprimiu. Beijou-a e lembrou-lhe o compromisso de telefonar no momento que acordasse.

Pegou o caminho da volta. Antes da esquina que a tiraria de seu ângulo de visão olhou para trás. Ela estava lá esperando esse gesto. Beijou a palma da mão, apontou-a para você e soprou. E seu coração adolescente, feliz, exultou. Foi a última vez que a viu. Ao longo do dia a espera foi interminável, opressiva.

O toque do telefone fazia o coração disparar. O livro, sequer folheado, jazia pousado no chão ao lado do sofá. Passaram-se os dias. Nada. Nenhum rastro. As pessoas que moravam no entorno do lugar onde você a deixara talvez tenham estranhado seu vai-e-vem incessante, nos primeiros dias, quando ainda havia a esperança de encontrá-la saindo de algum lugar.

Todo tipo de pergunta, a si mesmo, foi feita. Não houve resposta. Nunca houve. Não haverá. Poderia parecer algo sobrenatural não fosse, passados todos esses anos, aquela bijuteria – um anel – que teima em lhe deixar pensativo e um pouco melancólico quando você o põe na palma da mão, e o lenço – naquele tempo ainda se usava – no qual resiste ao tempo a lembrança de um perfume.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 19/06/2011 - 08:22h

Canção de homens e mulheres lamentáveis

Por Antônio Maria

Esta noite… esta chuva… estas reticências. Sei lá.

Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida? De dizer o nome? De lembrar, sequer lembrar, o rosto?

Quem seria capaz de contar a história? De chamar o maior amigo, ou melhor, o inimigo, e dizer:

— Estou me sentindo assim, assim, assim…

A humanidade está necessitando, urgentemente, de afeto e milagre. Mas não sabe onde etão as mãos, nem os deuses. E, quando souber, vai achar que as mãos e os deuses são de mentira. Os olhos de todos estarão cheios de medo, os olhos das jovens raparigas, os olhos, os braços, o ventre e as pernas das jovens raparigas, receosos de pagar com os quefazeres do sexo.

Nesta noite, com esta chuva, as jovens raparigas não são importantes. Apenas uma tem importância. Mas quem seria de todo livre e descuidado, a ponto de dizer o seu nome? De pensar o seu nome? Você diria em público o nome da Amada? E suportaria ouvi-lo? Não, não; o nome dela, em sua boca ou na dos outros, é tão proibido como sua nudez (dela). Não há diferença.

E por que você não se transforma no homem banal, que se encharca de álcool, para apregoar a desdita? Seria mais fácil. Talvez alguém lhe chamasse de porco e você revidasse com um soco no rosto, um só rosto, de todo o Gênero Humano. Viria a polícia, que simplifica tudo, generalizando. E tudo se transformaria em notícia: “Preso o alcoólatra, quando injuriava e agredia a Família Brasileira, na pessoa de um sócio do Country”.

Há poucos minutos, em meu quarto, na mais completa escuridão, a carência era tanta que tive de escolher entre morrer e escrever estas coisas. Qualquer das escolhas seria desprezível. Preferi esta (escrever), uma opção igualmente piegas, igualmente pífia e sentimental, menos espalhafatosa, porém. A morte, mesmo em combate, é burlesca.

Uma pergunta, que não tem nada a ver com o corpo desta canção. Quem saberia discriminar o ódio do amor? Ninguém. Os psicologistas e analistas têm perdido um tempo enorme.

Ontem à noite, voltando para casa, senti-me espectador de mim mesmo. E confesso que, pela primeira vez, não achei a menor graça. Saíra, pela primeira vez, de óculos e o porteiro do edifício me recebeu com esta agradável pergunta:

— Que é que houve? O senhor está mais velho? Tirei os óculos e, fitando-o, esperei as desculpas. Mas o homem continuou:

— O que é que houve? De ontem para cá, o senhor envelheceu.

Tinha pensado que, sem os óculos…

Não estou escrevendo para ninguém gostar ou, ao menos, entender. Estou escrevendo, simplesmente, e isto me supre: contrabalança, quando nada. Esta noite, esta chuva — e poderia escrever as coisas mais alegres, esta noite. Neruda, coitado, as mais tristes.

Só há uma vantagem na solidão: poder ir ao banheiro com a porta aberta. Mas isto é muito pouco, para quem não tem sequer a coragem de abrir a camisa e mostrar a ferida.

Antônio Maria (1921-1964) era jornalista, escritor e compositor.

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sexta-feira - 20/05/2011 - 11:42h

Um oficial de justiça (amigo) em minha porta

Batendo à porta, porta,Mais uma vez tenho um oficial de justiça à minha porta. A batida ao portão, com o punho cerrado e em sequência tonitruante, não me deixa dúvida. Pergunto só para conferir mesmo:

– Quem é?

– Sou eu, Carlos Santos. É Otacílio, oficial de justiça.

Nem precisava a declaração oficial.

O “toque” de Otacílio é personalíssimo.

Tomo a liberdade, para não atrasá-lo, de sair em trajes quase sumários, com meu físico de pintassilgo resfriado, pernas de talo de coentro à mostra.

Uso apenas uma toalha contornando a cintura, dorso “atlético” à exibição, como um gladiador apolíneo, espécie de deus grego do semi-árido.

Tenho essa naturalidade, em face da frequência com que os oficiais de justiça aportam aqui em meu muquifo, sempre trazendo citações e intimações da patota que está no poder e, que, não é do ramo.

Pelo menos do ramo de governar, que se diga.

Suas manoplas têm outras habilidades.

Bem, mas voltemos ao ponto central desta prosa.

Surpreendi-me. Nem intimação nem citação.

O amigo Otacílio, de manhã ainda cedo, pede desculpas pelo suposto incômodo. Quer apenas uma informação sobre outra pessoa a ser citada judicialmente. Oriento-lhe, ajudo-o. E, lógico, coloco-me sempre à disposição para esse ou outro fim ao meu alcance.

Como jurisdicionado, até cobro tratamento diferenciado, pois me considero o melhor por essas plagas, sem nunca me esconder ou colocar qualquer embaraço ao prosseguimento processual, desde a simples citação.

Dessa vez, na pressa não deu para oferecer pelo menos um copo com água ao Otacílio. Mais não posso. A geladeira parece um chafariz: só tem água.

Fica para uma próxima.

– Volte sempre – intimo ao me despedir.

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domingo - 20/02/2011 - 18:16h

A mensagem do alpinista

Por Carlos Santos

Eu tinha dúvida quanto ao ano. Confesso uma certa dificuldade para me situar no tempo, quando viajo cronologicamente, com uso apenas do recurso da minha memória. É um GPS inconfiável.

Bem, mas o ano não importava.

O que me parecia fundamental era o fato em si. Sua contextualização, pinçando-o para me situar, é o que me interessava mais.

Como alguém tem coragem de cortar o próprio pulso, com a lâmina de um canivete? Razões? Há-as para tudo, até mesmo para automutilação, raciocinava.

Tirou-me o fôlego a narrativa que ouvi à madrugada, em casa, com a TV sendo minha única fonte de luminosidade e companhia, incidindo sobre meu rosto opaco, num quarto lúgubre.

O sorriso de Aron Ralston, um jovem alpinista norte-americano, de braço erguido e parcialmente amputado, era um contraste com minha apatia. Uma sisudez tocada pela alegria de quem tinha acabado de perder parte do corpo e, assim mesmo, comemorava.

Sim, o ano… vamos a ele. Descobri que foi em 2003. Abril.

A TV era uma presença onipotente diante da cama, praticamente ligada 24 horas por dia. Hoje, não. Até de lá foi expulsa. Está entronizada na sala, sem qualquer pompa. Empoeirada.

Tempos difíceis, de transição, de muitas perplexidades e interrogações. Assim era meu 2003. Quase à beira de um ataque de nervos e em meio a constantes esbórnias. Meio “easy rider” (sem destino). Um Peter Fonda sem motocicleta.

Aron, ao contrário, tomado por um vigor maior, prometia voltar ao Grand Junction, um cânion no Colorado (EUA), que quase o sepultara. Não se intimidara com o infortúnio de ter sido preso a uma rocha, que o obrigou a se livrar de uma das mãos, após quase cinco dias imobilizado e sem ser localizado pelo resgate.

Admitiu que em vários momentos acreditou que não sairia vivo do lugar. Ficara entre a dúvida e a esperança. Mesmo após arrancar parte de seu corpo, ainda teve que rastejar, descer um precipício de 18 metros e andar 10 km, até ser socorrido.

A decisão veio de uma força espiritual, que não soube explicar. Conseguir sobreviver, para recomeçar e novamente encarar quem quase o engolira de vez, era uma segunda chance.

Seria uma sobrevida?

Na verdade, a lição que logo tomei para mim e não paro de rememorar, até hoje, é até simplista: para continuar inteiro às vezes é preciso arrancar uma parte de nós.

É uma medida drástica que por vezes somos obrigados a tomar, mas recuamos. Acovardamo-nos. Cortar a própria carne é morrer um pouco, sim. Contudo pode ser nossa única chance de ficar vivo. Renascer das cinzas, como a lendária Fênix.

Lembra um pouco a alegoria do “Mito da Caverna” de Platão. Continuamos na escuridão porque duvidamos da existência da luz. Limitamo-nos, somos limitados; conformamo-nos com as trevas.

Cometemos o pior dos erros humanos: o da omissão.

Somos levados a acreditar que não temos saída ou qualquer alternativa. Essa tal de felicidade fica por aí, no ar, pairando sobre nossas cabeças, como se fora um Zeppelin, aquele imponente dirigível. A qualquer momento, ela flutua e some, ou desaba em chamas.

Vivemos de ciclos. Para começar um novo é fundamental, em alguns momentos, extirparmos por completo o anterior. Toda escolha corresponde a alguma forma de renúncia.

Só chegaremos ao cume do Everest, o nirvana, abrindo mão de boa parte da “carga” amealhada desde o sopé da montanha. É uma espécie de tributo à vida. Impossível levarmos e termos tudo até o alto.

Talvez resida nesse aspecto, outro grande ensinamento à minha existência. Trato-o como “a parábola da montanha”.

Aron Ralston voltou tempos depois ao cânion, amputado, mas não mutilado.

Entendi assim, a mensagem que me chegara àquela madrugada, pelas “mãos” do alpinista.

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sexta-feira - 21/01/2011 - 00:07h

Nau esperança

Relembro o poeta Gonçalves Dias em “Juca Pirama” para proclamar: “Meninos, eu vi”. Testemunhei duas enchentes épicas em Mossoró. Dois quadros, duas visões.

Rua Jerônimo Rosado virou um marzão (Foto: origem não identificada)

Rua Jerônimo Rosado virou um marzão (Foto: origem não identificada)

Em uma delas fui desalojado pela enxurrada; de outra resultou meu alojamento, de forma indireta, numa paixão: o jornalismo.

Vou contar o primeiro caso. Depois, quem sabe, abordo o outro, acontecido em 1985.

Situo-me em 1974. Estou nos arrabaldes do Santuário do Sagrado Coração de Jesus, Centro de Mossoró. Assisto o rio Mossoró banhar lentamente a rua Jerônimo Rosado, escalar as escadarias do adro desse templo e ocupar nossa casa sem resistência.

Sua água barrenta e devastadora produzia cenas incomuns aos meus olhos infantis: Homens com calças arregaçadas, outras crianças a nado, caminhões ou simples carroças transportando móveis e picuás da vizinhança.

A chuva incessante que engordou o rio nos empurrou para fora com a força de quem manda, sem pedir licença. Um poder onipotente. Mesmo assim, a água que quase batia à cintura de muitos ali bem em frente, me divertia, sem que eu soubesse medir os estragos ou pressentir os desdobramentos da cheia.

Sapos apareciam aos montes, como se fora reprodução de uma das dez pragas do Egito. Multiplicavam-se aos milhares, fazendo do enorme quintal uma Normandia no Dia D, só para anfíbios. Uma cena grotesca que nunca mais vi se repetir.

Canoas e pequenas lanchas navegavam à nossa frente; o rádio ligado noticiava a ampliação territorial do rio Mossoró. Estávamos ilhados, acuados, a cada dia.

O burburinho na rua e o alagamento continuado não me afligiam. A imagem diluviana era acima de tudo encantadora à minha avaliação limitada. Cinematográfica. Estimulava a imaginação cheia de aventuras e super-heróis da TV e quadrinhos.

Ruas, praças e avenidas estavam transformadas num marzão. Uma via só. Fluvial. Quase amazônica.

Só me toquei do pior com a convocação final: “Arrume suas coisas. Amanhã cedinho a gente vai embora”. Partimos para nunca mais voltarmos àquele endereço.

Lá ficou uma parte de minha infância e inocência: a pequena pracinha de seu João Cantídio, nosso Colégio Dom Bosco a tão poucos passos.

Para trás o presépio de Maria de Uriel, miniatura bíblica cheia de vida em todo Natal; a casa acolhedora de dona Fefita e seus netos, todos meus amigos, que vez por outra me convocavam para tumultuar seu sossego.

A padaria de seu Eliseu Costa e dona Julita nunca mais seriam meu endereço de fim de tarde. Seus pães e bolos deliciosos, enrolados com técnica apurada em papel madeira, continuam em meus olhos, olfato e paladar. Memória sensorial.

As confrarias noturnas à calçada, com o tititi do dia, quase sempre vetadas à presença de crianças curiosas, continuam gravadas. As famílias pareciam uma só, sem o temor da violência urbana, sem as aflições psicossociais deste século XXI.

Vários nomes e lugares mantêm-se memorizados, outros se dispersaram com o tempo, mesmo que a imagem deles, ainda turva, pulule até hoje em minha mente.

Vejo o casal Izete-Raílton; Moisés dos Portões, padre Américo Simonetti e suas concorridas missas no Coração de Jesus; o tenente e delegado Clodoaldo Meira aboletado num Jeep aterrorizando quem teimava em jogar bola na área, pronto para picotar a pelota.

A senhora Júlia Menezes absorta; as irmãs Ilná e Alaíde Nascimento; minha “Maura” sempre loquaz, festiva e amante da prosa com Nadir Brasil e tantos amigos e amigas. A professora exemplar Dagmar Filgueira e a serenidade do senhor Trajano Filgueira.

O sítio “Pica-pau” no beiço do rio; o Cine Cid tão perto e a lenda de que em seu subsolo existia uma baleia. Com chuva ou sol, enchente ou não, o barulho que vinha de lá nos fazia acreditar nesse “Moby Dick” subterrâneo, enredo que caberia numa aventura escrita por Júlio Verne.

Por aquele pequeno portão gradeado de ferro da casa em que eu morava, de batente alto, soltei meu barquinho tosco, de papel. Vi-o flutuar nas águas por alguns minutos, até que desaparecesse.

Só muito tempo depois descobri que “navegar é preciso”. Minha nau frágil, não tripulada, era também esperança.

Buscava outro porto seguro além-mar.

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sexta-feira - 31/12/2010 - 12:28h
Para 2011

O primeiro dos melhores anos de nossa vida

(…) Este é o exemplo da vida,
para quem não quer compreender:
Nós devemos ser o que somos,
ter aquilo que bem merecer.
(Estrada da Vida, Milionário e José Rico, letra de Jair Cabral)

Impossível não desabar em lugares-comuns no último dia do ano. Em qualquer direção que olhamos nos deparamos com obviedades.

E daí?

Que seja óbvio, desde que sincero.

Já fui preso ao dogmatismo do alheamento, o “tô nem aí”, “tanto faz”, “é um dia como outro qualquer…”

Mas já flertei também com a conversão à data. Vesti-me de branco, fechei os olhos e, compungidamente, pedi “saúde e paz, Senhor!”

Fiz planos e mandei o ano velho “vazar”. Chorei, confesso. Perdi o fôlego. Vi gente sumir. Olhei pro céu infinito e agradeci.

O que sou hoje?

Um pouco disso tudo, fruto de uma vivência que oscila entre os extremos para chegar à moderação.

Não foram os livros de auto-ajuda, um volver na direção de minha fé ecumênica ou alguém que transformou a visão desse tudo, que tenho agora, neste 31 de dezembro de 2010.

Há uma carga de vida vivida, vida louca, vida intensa; vida por viver. Há falta, tenho lacunas. Há vida a preencher.

Nesse pedaço de dia, filigrana na linha do tempo histórico, não há o que satanizar ou incensar. Mesmo assim não estou sentado, vendo a banda passar – “tocando coisas de amor”, como diz Chico Buarque.

Começo o inventário do ano. Borbulham planos. Rabisco metas. Nem otimista nem pessimista: realista. Cartesiano.

Iemanjá, não espere minhas oferendas.

Vem aí o primeiro dos melhores anos de nossa vida.

Feliz 2011!

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quarta-feira - 24/11/2010 - 19:13h

A “metrópole” do livro “no metro” e seus valores fúteis

 

Por Carlos Santos

Como são estúpidos os parâmetros que o grosso da sociedade mossoroense tem adotado, para dimensionar sua ascensão social. Tudo baseado na superficialidade e babaquice do “parece ter”.

Estamos medindo esse novo status nos prédios que sobem, nos milhares de carros que invadem ruas, avenidas e ocupam até calçadas. Naqueles que muitas vezes para subir, precisam descer aos subterrâneos.

Ontem eu tive mais um testemunho do atraso e da distância em que nos encontramos, da inversão de valores e confusão em que nos metemos, em nome do hipotético progresso.

Fuçando livros em um sebo, seu proprietário me fez um relato que fica entre o bizarro e o jocoso. Vamos a ele.

Há algum tempo, esse sebista foi procurado por uma “nova rica”, interessada em comprar “um metro de livro”. Isso mesmo. Não era um título específico, coleção ou tomo de encadernamento especial. Tinha que ser no metro, sim.

Explico, reproduzindo o que ouvi: a deslumbrada precisava preencher um espaço em estante desenhada por sua arquiteta, sendo recomendada a colocar livros com a mesma dimensão estética. O espaço disponível pro “enfeite”? Um metro. Um metro de livros simetricamente alinhados.

Mossoró, até o início do século passado, vivia a influência europeia do movimento conhecido como “art nouveau” – daí nascendo até a corruptela de sua área de prostituição, transformada em “Alto do Louvor”, décadas depois.

Era uma cidade com requintes em roupas, moveis, arquitetura, mas também na cultura, desde o teatro ao hábito da leitura e música. Tínhamos cerca de 100 pianos. E as moças bem educadas tocavam. Eles não serviam apenas de ornamento na decoração.

Falar francês era normal para os jovens de ótima extração. Muitos eram poliglotas. Os janotas transitavam sempre impecáveis e ser rico, em verdade, era transformar dinheiro em bem-estar e referência de conteúdo.

Hoje testemunhamos a “Metrópole do Futuro” exultante com seu “crescimento” baseado em carrões pra exibição, TV de LCD e home-theater na sala do apartamento, gente mal-educada saracoteando ao som de “lapada na rachada” e enchendo  sacolas com bugigangas de grife.

Os que se salvam dessa manada são tratados como estranhos e afetados, ou seja, anormais.

Portanto não é por acaso que da atividade produtiva à política, estejamos “dominados” pela ignorância que mesmo rica, não reluz.  É opaca ou furta-cor, mas certamente abobalhada e fútil.

Empobrecemos, em verdade, porque na ânsia de ser diferente, a grande maioria é apenas mais um  nessa multidão pasteurizada, uniforme, feita em escala industrial: modelo standart. Faz da aparência a sua essência, da borra cosmética a sua alma.

Acredita que Paris é “a cidade luz” por ser muito iluminada; toma Old Parr com Coca-cola, mas preferia um legítimo “Odete”, por ser mais barato.

A propósito, bota uma bicada de Serra Limpa aí, amigo. O sertão é aqui.

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - Sal & Luz - Julho de 2025
terça-feira - 05/02/2008 - 02:21h

Muito longe da mitologia e de Argos

Uma série de webleitores indaga-me: “Você não dorme?”

Pareço insone, perturbado psiquicamente. A segunda hipótese é possível, a primeira pode descartar. Por enquanto sou quase normal. “O inferno são os outros”, diria Sartre. Pode ser. Faço o “mea culpa”, sem o complexo de transferência de pecados.

Durmo muito bem, não muito. Já li bastante sobre o assunto e é algo consensual: cada indivíduo tem metabolismo próprio, com cada organismo estabelecendo sua necessidade de repouso.

Eu não preciso mais do que cinco ou seis horas/dia (preferencialmente à noite) de sono. Deslizo serenamente na cama ou rede.

Com o computador sempre à mão, uma rede de contatos que me acessam sobretudo através de e-mails e torpedos telefônicos, é possível ter um razoável leque de informações. A maior parte do tempo à postagem de matérias, comentários ou abobrinhas mesmo, levo no processo seletivo e revisão. Nem sempre publico o que parece importante e, sim, o interessante e até burlesco.

Não posso me desculpar nas desavenças com o vernáculo, jogando a responsabilidade no “revisor” ou em algum webmaster, diagramador etc. Eu sou culpado de tudo. “Eu sou o Blog do Carlos Santos“, proclamo à la Luís XIV. Outra vez escalo Jean-Paul Sartre: “Estamos sós e sem desculpas.”

Quanto às madrugadas produtivas, não significam que eu tenha suprimido o sono necessário. O normal é trabalhar muito, para me tornar um refém voluntário do travesseiro.

TECNOLOGIA

Como há tempos me desvencilhei do hábito, diarista, da imersão na vódca e no uísque, não tenho empecilhos maiores. Não faço o tipo geração saúde, com cuidados pernósticos. É-me necessário fazer o que gosto, a meu modo. Isso tem sido possível.

A alta tecnologia que me assustou no início, revelando traços de tecnofobia, hoje é minha aliada. Deixou de ser esfinge. Entretanto continua como descoberta permanente. Daí, talvez, o segredo por essa crescente paixão que resulta em profunda dedicação ao Blog, com resultados empolgantes.

Tenho conseguido uma considerável interação com o leitor. Webleitor, como se diz. No início identifiquei um certo temor, muita observação sem interveniência. Você tem perdido a inibição e participado com naturalidade de nossa produção diária com críticas, sugestões, aplausos, censuras etc.  Seria impossível tamanho desempenho sem essa parceria, uma troca mútua vitoriosa.

Então, espero ter desmitificado a crença de que não durmo. De que seria um vigilante da notícia 24 horas/dia. Não detenho a capacidade do mitológico Argos. Segundo os gregos, ele possuía 100 olhos, sempre se resguardando com 50 deles abertos.

Bom-dia. Acorda! Já estou de pé há tempos. Vamos à luta.

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