domingo - 09/02/2025 - 05:52h

Traquinices de Juju

Por Marcos Ferreira

Juju entretida com um de seus brinquedinhos  (Foto do autor da crônica)

Juju entretida com um de seus brinquedinhos (Foto do autor da crônica)

Nasceu no dia 24 de novembro. Há dois meses e quinze dias, portanto. Sabemos precisamente a data porque foi justo no aniversário de Andrea, esposa de meu amigo Marquinhos Rebouças. A mãe de Juju deu à luz nove rebentos, entre os quais adotei essa feroz devoradora de ração. É cheia de inocência, de amor, de pureza, no entanto adora mordiscar os meus calcanhares e os de Natália.

Fui orientado a presenteá-la com alguns brinquedinhos de borracha. Fiz isso, adquiri três brinquedos de cores e formatos diversos e ela gostou bastante, de maneira que os meus tornozelos quase não são lembrados. Juju é uma autêntica vira-lata, característica que me agrada. Já adotei, além de Juju, três gatinhas de rua, pequeninas e sem amparo nenhum, obviamente. Cuidei das felinas, levei-as a veterinários, que ministraram medicamentos e realizaram as castrações quando as bichanas atingiram a idade apropriada. Asseguro que essas companhias só me fazem bem.

Com tantas criaturinhas por aí necessitando de acolhimento, de um lar, de água e comida, não vou a lojas do ramo comprar um gatinho ou um cachorrinho. Não critico de forma alguma quem paga por um pet de raça, com pedigree, como se diz. Pois também receberão amor, cuidados, zelo. Acredito que São Francisco de Assis, o santo protetor dos animais, deve ficar feliz do mesmo jeito.

Juju é tipo uma criança. Tem as suas traquinices, os seus comportamentos que geram um certo caos doméstico. É preciso retirar das suas vistas uma variedade de objetos, a exemplo de tênis e chinelos. Como durmo de rede na sala, onde gosto de assistir a filmes e séries, tinha por hábito pôr uma cadeira perto da rede para colocar o telefone, o controle da tevê e meus óculos. Quando o sono batia, simplesmente desligava a televisão e capotava. Até que uma noite eu me dei mal.

Acordei por volta das oito da manhã. Ao procurar as sandálias, tinham sumido. O mesmo aconteceu com os óculos e o celular. Fiquei logo aflito, sobretudo, pelo desaparecimento dos óculos novinhos, substituídos no mês passado. Juju despertara mais cedo, claro. Encontrei o celular junto da porta da frente, separado da capinha de proteção. Senti uma dor na alma quando vi os óculos diante da geladeira. Os vidros ficaram em contato direto com o piso grosso, ainda sem cerâmica. Não teve escapatória. As duas lentes estão repletas de arranhões profundos. Um prejuízo! Os chinelos, estes completamente intactos, ela carregara para debaixo da escrivaninha.

O celular também ficou um pouquinho arranhado. Apesar disso tudo, Juju continua dormindo dentro de casa, em uma caminha fofa, quadrada, com bordas altas e acolchoadas. Algumas vezes, entretanto, ela adormece sob minha rede. Além disso, inocente que é, uma hora ou outra a danada faz as suas “necessidades” em qualquer lugar da casa. Ao menos o cocô é durinho e fácil de limpar.

Quanto à urina, restrita à sala e a cozinha, já que agora mantenho o quarto e o banheiro com as portas fechadas, eu resolvo com água sanitária e um limpador perfumado. Escrevo esta crônica com os arranhões das lentes atrapalhando o serviço. No mais aprendi a lição. Não marco mais bobeira. Juju não perdoa. Quando meu orçamento permitir, trocarei novamente os vidros dos óculos.

Sendo ainda uma filhota, nutro a expectativa de que adquira bons modos no tocante às referidas peraltices e aos inconvenientes fisiológicos. Descobrirá o quintal como lugar adequado para suas dejeções e micções. Porque nosso bem querer se mostra mais firme e forte à medida que Juju vai crescendo.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 02/02/2025 - 09:26h

Depoimento

Por Ayala Gurgel

Arte ilustrativa

Arte ilustrativa

B.O: N° 01-7871/2019

NATUREZA: INQUÉRITO INVESTIGATIVO

DATA DA COMUNICAÇÃO: 15 DE NOVEMBRO DE 2019

COMUNICANTE: PAULO FERREIRA DE SOUZA

O senhor Paulo Ferreira de Souza, trinta e cinco anos, comerciante, técnico em contabilidade, viúvo e residente nesta freguesia, compareceu a esta delegacia, em data e hora previamente agendadas, em companhia do seu advogado, tendo sido ambos identificados na forma da lei, e narrou perante mim, escrivã de polícia, que se encontra profundamente abalado com o ocorrido e sob efeito medicamentoso, de modo a apresentar pedido prévio de desculpas por explosões emocionais. O advogado do depoente pediu a palavra e destacou que, não fosse de extrema urgência o depoimento do seu cliente no presente momento, preferia voltar outro dia, quando este se encontrasse menos abalado, o que não foi aconselhado pelo delegado encarregado, para o próprio sucesso da investigação. Sobre o fato ocorrido, o depoente declarou ter conhecimento do medo que a vítima, sua esposa há cinco anos, tinha de cobra, afirmando não conhecer outra pessoa com tanto medo, razão pela qual sempre evitou brincadeiras envolvendo essa espécie peçonhenta. Que no dia do ocorrido havia três pessoas dentro do carro, de propriedade do casal e sob seu comando – o depoente, a esposa e uma prima dela, de nome Rosanir Ferreira Alencar – e que se encontravam na estrada carroçável que dá acesso à granja da família da esposa quando a senhora Rosanir passou o seu celular à vítima, com o vídeo de um gato mexendo num cesto de vime, algo que o depoente descreveu como “fofo” e passou cópia a esta delegacia. O vídeo, de acordo com o depoente, deve ter sido feito por alguém que ele não sabe afirmar quem, e se encontra disponível em vários sites, sendo amplamente compartilhado nas redes sociais, de onde provavelmente a senhora Rosanir o recebeu. Que o referido vídeo é feito de tal forma a prender a atenção do espectador, que se empolga com a brincadeira do gato com o cesto, ao som de música infantil, mas termina com uma cobra saindo do cesto e dando o bote em direção à câmera, ao som de um grito de filme de terror. Que o vídeo é uma pegadinha de mau gosto e até mesmo as pessoas que não têm medo de cobra costumam se assustar. Que não sabia do que se tratava quando a senhora Rosanir passou o celular à esposa, sua atenção estava focada na estrada, visto que havia chovido na noite anterior e o terreno se encontrava escorregadio. Que, se soubesse, nunca teria permitido. Que, no momento em que a esposa tomou o susto, jogou fora o celular, que caiu em algum lugar dentro do carro, e se agarrou a ele, puxando o volante e fazendo-o perder o controle, de modo que o carro veio a sair da estrada e capotar. Que tudo foi muito rápido, não teve como reagir e não viu nada. Que não sabe em que momento a vítima foi arremessada do carro ou quanto tempo durou a capotagem, apenas que foi muito rápido e quando se deu conta, estava de cabeça para baixo, preso pelo cinto, e viu ao longe o corpo da esposa, jogado no chão, próximo a uma moita de capim. [O depoimento, a pedido do advogado do depoente, precisou ser interrompido por alguns minutos para que o seu cliente pudesse ser assistido, uma vez que começou a apresentar dificuldades para respirar e crise de choro. Recomposto, o depoente continuou, perante mim, a narrativa da sua versão dos fatos]. Disse que a cena que viu e se encontra registrada na sua memória o apavora todos os dias. Que não consegue tirar da cabeça a imagem da esposa jogada no chão, suja de lama, com a cabeça inclinada em sua direção, a boca aberta e os olhos esbugalhados, como se gritasse por socorro ou de dor. Que, ao deitar todas as noites, costuma vê-la, ao seu lado, com a mesma expressão facial daquele dia. Que se não fosse a medicação que vem tomando regularmente, não conseguiria dormir ou ter algum momento de paz. Que pede a Deus todos os dias que apague tudo isso, que seja só um pesadelo e que se acorde, para descobrir que nada daquilo aconteceu. Disse que esse tipo de vídeo não deveria existir, que deveria ser proibido por lei fazer esse tipo de coisa, que o vídeo foi o responsável por tudo isso. Mesmo sem ser perguntado, confessou guardar rancor da senhora Rosanir, bem como de quem faz e compartilha esse tipo de vídeo. Não soube informar se, no momento do acidente, a vítima estava ou não com o cinto de segurança. Por fim, o depoente disse que não sabia e se mostrou bastante surpreso ao tomar conhecimento de que a causa da morte da vítima tinha sido não em virtude do acidente, com o pescoço quebrado, como ele supunha, mas de uma picada de cobra. Era o que tinha a relatar.

Ayala Gurgel é escritor, professor da Ufersa, doutor em Políticas Públicas e Filosofia, além de especialista em saúde mental

*O texto faz parte do livro homônimo e tem como desafio transformar a escrita ordinária, informal, em literatura, tal como os clássicos fizeram com as cartas (criando a literatura epistolar).

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Categoria(s): Conto/Romance / Crônica
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domingo - 02/02/2025 - 08:38h

Odoyá!

Por Bruno Ernesto

Estátua de Iemanjá da Praia do Forte, Natal/RN (Foto: Jorge Andrade, 14/11/2010)

Estátua de Iemanjá da Praia do Forte, Natal/RN (Foto: Jorge Andrade, 14/11/2010)

No dia 2 de fevereiro comemoramos o dia de Iemanjá, a rainha do mar, e, talvez, o orixá do candomblé que mais contribui para o sincretismo religioso no Brasil.

No catolicismo, é Nossa Senhora dos Navegantes ou Nossa Senhora da Conceição. Na língua Iorubá significa mãe dos peixes. Protege os pescadores, favorece o amor e representa o amor materno.

A primeira vez que pus os olhos numa estátua de Iemanjá foi na companhia dos meus pais em Natal.

Quando criança, nas férias, meus pais me levavam para tomar banho de mar na praia do meio em Natal, nas proximidades da estátua de Iemanjá, e como gostava de pescar, já naquela época, levava minha vara de bambu com linha e anzol para pescar no recife da praia do meio.

Lembro que, ao passar por ela, rumando para as proximidades do forte dos Reis Magos, ficava curioso com aquela estátua gigantesca de uma mulher com cabelos longos, pretos, vestido azul com detalhes brancos nos punhos e na gola, uma tiara com uma grande estrela prateada, de braços abertos e de mãos espalmadas, na iminência de falar algo, e olhar penetrante.

Para mim, naquele tempo, não significava algo além de uma grande estátua. Entretanto, não sei por qual motivo, tinha uma admiração e até certo respeito por ela. Talvez achasse que era uma santa. Algumas vezes havia flores aos seus pés.

Passava a manhã inteira na praia tomando banho, brincando com meus irmãos, além de, é claro, pescar, e, vez ou outra, olhava Iemanjá de longe. Aquele vestido azul dela sempre se misturava com o azul do mar ou com o azul do céu.

Anos depois, foi que me dei conta de que já praticava o sincretismo religioso sem nem saber o que era. Apenas sentia, como muitas pessoas hoje também o fazem com Iemanjá ao jogar flores e oferendas em seu dia.

Talvez, quem sabe, até tenha sido salvo por ela de um afogamento naquela mesma praia quando, ao final de mais uma pescaria, descendo do recife junto com minha irmã, já com a maré cheia, caímos no num canal de retorno chamado Poço do Dentão.

Por mais que nadássemos, não conseguíamos sair da água. Já perdendo o fôlego, eu e minha irmã, fomos agarrados pelas mãos por um homem, que para nós, surgiu do nada e nos tirou do mar para alívio dos meus pais. E, depois, muita bronca de minha mãe. Meu pai, como sempre, estava calmo. Hoje penso que só aparentava estar calmo.

Apesar do episódio, voltamos inúmeras vezes à praia do meio e naquele mesmo local e eu continuei a admirar Iemanjá.

Uma coisa é certa: naquele dia, minha mãe foi a verdadeira Iemanjá, pois percebi, depois, que foi ela quem alertou e buscou socorro para nós. Ela foi nossa Iemanjá, protegendo aquele pequeno pescador e representado o verdadeiro amor materno.

Hoje até brinco com aquele episódio, dizendo que Iemanjá não me levou pois refugou a oferenda. Ainda bem! Odoyá!

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 02/02/2025 - 07:28h

Das vantagens de ser bobo

Por Clarice Lispector

Arte ilustrativa da página doce limão

Arte ilustrativa da página doce limão

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar no mundo.

O bobo é capaz de ficar sentado, quase sem se mexer por duas horas. Se perguntando por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando.”

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem.

Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas.

O bobo ganha liberdade e sabedoria para viver.

O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro.

Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.

O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem nota que venceu.

Aviso: não confundir bobos com burros.

Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: “Até tu, Brutus?”

Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

Os bobos, com suas palhaçadas, devem estar todos no céu.

Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.

Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos.

Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham vida.

Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.

É quase impossível evitar excesso de amor que um bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

Clarice Lispector (1920-1977) – foi escritora e jornalista

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 02/02/2025 - 05:38h

O crítico

Por Marcelo Alves

Karl Raimund Popper (Foto: Web)

Karl Raimund Popper (Foto: Web)

Karl Popper (1902-1994) é provavelmente o maior vulto da filosofia da ciência e um dos grandes nomes da filosofia dita liberal. Nascido em Viena, à época uma das capitais do Império Austro-Húngaro, sua família era culta e politizada. Sofreu deveras com a debacle do seu país na Primeira Grande Guerra. Na Universidade de Viena, envolveu-se com o marxismo e o Partido Comunista austríaco. Decepcionado com a morte de jovens companheiros, refutou e rompeu com essa ideologia. Fez-se professor.

Doutorou-se em filosofia em 1928. Com o nazismo, em 1937, deixou a Áustria rumo à Nova Zelândia. Passada a Segunda Grande Guerra, em 1946, foi viver no Reino Unido, para ensinar na London School of Economics. Como filósofo da ciência, sua obra mais importante talvez seja “A lógica da pesquisa científica” (1934), em que expõe o seu “princípio da falseabilidade”. E junto a Ludwig von Mises, Friedrich Hayek e Milton Friedman, entre outros, Popper foi um dos grandes defensores do liberalismo clássico.

É de Popper uma das mais conhecidas e belas assertivas sobre a democracia, a liberdade e a tolerância. Basicamente, em seu livro “A sociedade aberta e seus inimigos” (1945), no que ficou conhecido como o paradoxo da tolerância, ele defendeu que, em ultima ratio, a intolerância não deve ser tolerada, uma vez que, se a tolerância permitir que a intolerância triunfe numa sociedade que não consegue se defender contra o ataque dos intolerantes, a própria tolerância seria destruída. Uma filosofia intolerante – que pregue, por exemplo, a incitação ao assassinato de governantes, o racismo, a eugenia ou a ruptura com o Estado Democrático de Direito – deve ser considerada ilegal e combatida até criminalmente. Reflitamos…

Mas é de outra sacada política e especialmente de outro livro de Popper, a sua “Autobiografia intelectual” (em publicação das Editoras Cultrix e da Universidade de São Paulo, 1977, que ando lendo), que gostaria de falar. Uma autobiografia que focaliza sobretudo as ideias do autor. “Um estudo pessoal da evolução das ideias popperianas e do ambiente intelectual onde se desenvolveram”, um ambiente onde “desfilam vultos como Carnap, Einstein, Godel, Polanyi, Russel, Schrödinger, Tarski, Wittgenstein, Woodger e outros de igual eminência”, com os quais Popper muito debateu, aprendeu e inspirou.

Na sua “Autobiografia”, Popper anota que foi criado em ambiente indiscutivelmente livresco: “Meu pai (…) tinha uma grande biblioteca e havia em casa livros por toda parte. (…) Assim, os livros fizeram parte de minha vida muito antes que eu pudesse lê-los”. E, para o grande filósofo da ciência: “Aprender a ler e, em menor grau, a escrever são, naturalmente, os acontecimentos mais significativos no desenvolvimento intelectual de uma pessoa”.

Como que antecipando a lição da menina filósofa Mafalda, para quem “viver sem ler é perigoso; te obriga a crer no que te dizem” – embora ele atribua isso não só à leitura, já que outros fatores, em especial a Primeira Grande Guerra, os anos de conflito e suas consequências, também entrariam na conta –, o fato é que Popper, desde jovem, tornou-se “um crítico das opiniões correntes, especialmente das políticas”. Agradeçamos…

Na Europa de então, havia a utopia do comunismo/marxismo, “um credo que promete a concretização de um mundo melhor. Diz-se basear-se em conhecimento: conhecimento das leis do desenvolvimento histórico”. Mas a própria história, ao submeter o marxismo à prova, anota Popper, refutou-o como pseudociência. Doutra banda, “por aquela época, poucas pessoas sabiam o que a guerra significava. Corria por todo o país um ensurdecedor brado de patriotismo, pelo qual até mesmo alguns membros do nosso grupo, anteriormente alheio às provocações de guerra, foram envolvidos”. E não muitos anos depois veio o degenerado cabo Hitler.

O problema estava – como de resto quase sempre está – nos extremos. O anticomunismo da época de Popper – assim como o atual anticomunismo tupiniquim, de baixíssimo nível e com complexo de vira-lata – se mostrava bem parecido, nas suas práticas e simbologias, com os movimentos autoritários que Popper denunciou como fascistas. E estes, sabemos, eram ontem – e são hoje – piores do que tudo!

Parodiando o criticado Marx, é de se indagar: a história agora se repete como tragédia ou como farsa? Leiamos e pensemos. Sejamos críticos…

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 02/02/2025 - 03:30h

Quando fevereiro chegar

Por Odemirton Filho

Ilustração

Ilustração

Um dia desses um amigo me disse: “rapaz, quando você escreve sobre Tibau das antigas, me dá uma vontade danada de chorar”. Eu respondi que um dos meus objetivos era escrever sobre coisas que nos faziam bem, como lembranças, saudades e sentimentos.

Aliás, lembro-me dos ensinamentos do saudoso Inácio Augusto de Almeida que me dizia: “escreva com sentimentos, tente passar emoção ao leitor”. No mesmo pensar, o dileto editor deste Blog gosta de ressaltar que a leitura aos domingos deve ser leve.

E é o que tento fazer quando resgato do baú da memória lembranças de Mossoró e Tibau. Não com melancolia, mas com o propósito de fazer com que o leitor navegue por tempos idos.

Noutro dia, num supermercado, outro amigo me falou: “gosto de ler suas crônicas, pois remetem aos bons tempos”. E me contou histórias de tempos passados, as quais algumas também vivenciei; qualquer domingo desses, eu compartilho com o leitor.

Confesso que fiquei feliz, uma vez que já bastam os problemas cotidianos, as notícias sobre corrupção, o radicalismo político-partidário e a toxicidade das redes sociais. É claro que precisamos enfrentar a vida com pragmatismo, vivendo o presente, não do passado, nem no futuro. Contudo, aqui ou acolá, uma pitada de boas lembranças faz um bem danado.

Como sabemos, “todos os dias é um vai-e-vem, a vida se repete na estação”. Assim, continuemos nessa jornada de encontros e despedidas, afinal, não sabemos quando será o último adeus.

Certa vez, o cronista Fernando Sabino escreveu sobre o tempo pretérito. Segundo ele, um tempo em que as areias das praias eram mais claras. Em que as letras impressas eram maiores. Em que as ladeiras eram mais suaves. Em que as distâncias eram mais curtas. Em que os dias eram mais longos. Em que o amor era mais puro. Em que a mocidade era eterna”.

É a mais cristalina verdade. Quando estamos na flor da idade, a vida parece ser eterna, apesar do entardecer dos nossos dias chegar tão depressa.

E fevereiro chegou.

Vamos à luta, já que “saudade já não mata a gente”. Nessa breve caminhada pela vida, “a gente ri, a gente chora…

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 26/01/2025 - 07:28h

O intelectual

Por Marcelo Alves

Bertrand Russell (Foto da Getty Images)

Bertrand Russell (Foto da Getty Images)

Ainda durante o verão estou lendo “As ideias de Bertrand Russell” (Editoras Cultrix e da Universidade de São Paulo, 1974), livro de autoria do também filósofo A. J. Ayer (1910-1989).

Conheci Bertrand Russell (1872-1970), o 3º Conde Russell, aristocrata, matemático, lógico, filósofo, historiador, professor, popularizador da ciência/filosofia, escritor Prêmio Nobel de Literatura, liberal múltiplas vezes casado, ativista, pacifista e muitas coisas mais, quando, há muitos anos, encantado, li sua “História da filosofia ocidental” (1945) e sua “História do pensamento ocidental” (1959). Revisitei esses livros algumas vezes na vida. Eles consagram o dito: “Um livro que não merece ser relido não merece ser lido”.

Tenho Russell como um perfeito exemplo do que Horácio Gonzalez (1944-2021), em “O que são intelectuais” (Editora Brasiliense, 1981), chama de “intelectual cosmopolita”, uma vez que ele concebia “a vida cultural como uma forma de comunicação acima das particularidades nacionais, regionais e locais”. Acreditando que o objetivo da prática intelectual é o aperfeiçoamento tanto do patrimônio cultural como social da humanidade, ele era também um “intelectual iluminista”, já que buscava trasladar, para todos os cantos do mundo, uma “cultura” que achava a melhor. Era deveras engajado. E, por fim, embora sofrendo a crítica dos puristas, para nosso deleite ele soube fazer ciência/filosofia e escrever deliciosamente para os leigos.

Muitas vezes perseguido, impedido de lecionar, proibido de viajar e preso, tudo em razão das suas ideias, Russell passou por alguns perrengues na vida. Em boa medida, a “História da filosofia ocidental” foi o que os ingleses chamam de “turning point” na sua vida, já que, financeiramente um sucesso, livrou o autor, daí em diante, de problemas com dinheiro. E foi sobretudo na virada dos anos 1940 para os 1950 que as atividades de Russel ganharam vulto.

Foi merecedor de “favores oficiais”, como a Ordem do Mérito e a eleição para várias sociedades britânicas. Em 1950, veio o Prêmio Nobel de Literatura. As publicações não pararam. Junto com Albert Einstein (1879-1955) e outros grandes cientistas, militou em favor da cooperação pacífica e do desarmamento nuclear.

Como anota Ayer, Russell “correspondia-se com chefes de Estado e interveio tanto na crise cubana de 1962 como no incidente sino-indiano, provocado por questão de fronteiras. Defendeu a causa dos judeus na Rússia, dos árabes em Israel e dos prisioneiros políticos na Alemanha Oriental e na Grécia”. Criou até um “Tribunal Internacional de Crimes de Guerra”, do que qual Jean Paul Sartre (1905-1980) foi o integrante mais badalado. E por aí vai.

Como lembra o “biógrafo intelectual” Ayer, Russel “é figura singular entre os filósofos de nosso século, por haver combinado o estudo de problemas especializados não apenas com o interesse pelas ciências naturais e sociais, mas também com a dedicação a questões de educação, tanto primária como superior, e, ainda, com ativa participação em política. A celebridade internacional, de que gozou no fim da vida, teve, sem dúvida, por principal motivo, sua atividade política e a ação de pregador de ideias morais e sociais; contudo, o lugar que venha ocupar na história, ele o deverá a sua obra filosófica e, especialmente, à que produziu na juventude e nos primeiros anos de maturidade. (…). Em verdade, com a possível exceção de seu discípulo Ludwig Wittgenstein, não há filósofo de nosso tempo que tanto tenha inovado, não somente no que respeita ao tratamento de particulares problemas filosóficos, mas ainda no que concerne à colocação global da matéria”.

De toda sorte, impossibilitado de “entender” os seus “Principia Mathematica” – que,  publicados de 1910 a 1913 em coautoria com Alfred North Whitehead (1861-1947), muito provavelmente são sua obra-prima –, homenageio aqui as “Histórias” da filosofia e do pensamento de Bertrand Russell. Confesso que elas são em grande medida responsáveis pela minha paixão pela história das ciências e das artes e, em especial, do direito.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 26/01/2025 - 05:30h

Entre céu e mar

Por Odemirton Filho

Arte ilustrativa da Meta AI do BCS

Arte ilustrativa da Meta AI do BCS

Amyr Klink é um navegador brasileiro e escritor. Foi pioneiro na travessia, a remo, do Atlântico Sul, em 1984. No livro que narra a sua saga (Cem dias entre céu e mar), Amyr mostrou-se resiliente para alcançar os seus objetivos. Enfrentando mares revoltos, sozinho dia e noite, com a companhia de baleias e tubarões, ele soube vencer os desafios.

“Descobri como é bom chegar quando se tem paciência. E para se chegar, onde quer que seja, aprendi que não é preciso dominar a força, mas a razão. É preciso, antes de mais nada, querer”.

Querer. Talvez, seja a palavra-chave. O desejo de vencer um obstáculo, a força motriz que nos faz alçar voos. Muitas vezes, ficamos amuados, desiludidos com os problemas da vida. E são muitos. Quem não pensou em “chutar o balde”? Às vezes, parece que nada dá certo.

Entretanto, é preciso paciência. Persistência. Querer. Conheço muitas pessoas que reclamam da vida. Porém, nada fazem para sair do lugar que se encontram. Não há vitória sem luta, como dizem por aí.

Vou dar um exemplo: tive muitos alunos e alunas que sonhavam em ser aprovados em um concurso público. Contudo, quando não conseguiam ser aprovados na segunda ou terceira tentativa, desistiam. Faltou o querer. Concurso se faz até ser aprovado, não importa quantas vezes, se realmente é isso que se quer. Essa persistência serve para tudo que se almeja na vida.

E mais: quantos empreendedores não fracassaram? Aqui em nossa cidade, empresários já foram à bancarrota, mas conseguiram se reerguer. Somos forjados na labuta diária, no sol a pino que aquece nossa cabeça e alma.

“O sertanejo é, antes de tudo, um forte”; “o brasileiro não desiste nunca”. Mais do que frases de efeito, são verdades. O brasileiro enfrenta uma luta renhida para sobreviver, sobretudo num país marcado pela desigualdade social e corrupção.

E assim, solitário no meio do oceano, por vezes sentindo um frio de rachar, Amyr Klink pensava no percurso a ser vencido; nas inúmeras remadas para concluir o trajeto. Todavia, continuou descortinando o horizonte à sua frente.

“O horizonte, linha perfeita e segura, fronteira do destino que se renova eternamente e que abriga nossos objetivos, passou a ser meu ponto de apoio e companheiro de viagem”.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 26/01/2025 - 03:44h

Ponta Negra

Por Bruno Ernesto

Embarcação holandesa em escala. Exposição Rijksmuseum (Foto do autor da crônica)

Embarcação holandesa em escala. Exposição Rijksmuseum (Foto do autor da crônica)

Certamente você já deve ter chegado a algum lugar e pensado o que de interessante ocorreu ali num passado remoto. Pelo menos eu sempre tive essa curiosidade.

Também já deve ter lido e escutado inúmeras vezes que conhecer o passado é abrir as portas para o futuro ou mesmo não repeti-lo, quando ruim.

Embora seja uma colocação um tanto filosófica para muitos, é importante que conheçamos, na medida do possível, nossa história local.

No meu caso, umas das maiores surpresas que tive quando comecei a me interessar pela história do Rio Grande do Norte em seu período colonial, foi saber que muitos dos lugares que me são familiares desde que me entendo por gente, foram palcos de muitos acontecimentos importantes não só para a história local, mas também para história mundial, e que hoje, infelizmente, são desconhecidos por muita gente.

No meu caso, com a recente conclusão da engorda da praia de Ponta Negra, lembrei-me de um dos episódios mais interessantes que aconteceu no Rio Grande do Norte.

Foi lá que muitos navios franceses aportaram para contrabandear o pau Brasil no século XVI. Ali, praticamente ao pé do famoso Morro do Careca.

Entretanto, foram os holandeses que fincaram os pés na história do Rio Grande do Norte, embora pouco se fale.

Hoje, ao que parece, os holandeses são lembrados no Rio Grande do Norte apenas pelo episódio denominado massacre de Cunhaú e Uruaçu, ocorridos em 16 de julho e 3 de outubro de 1645, transformado em feriado estadual, celebrado todo dia 3 de outubro, em homenagem aos mártires, que foram canonizados em 15 de outubro de 2017, pelo papa Francisco.

Em outra oportunidade (veja AQUI), escrevi sobre a presença e o papel dos holandeses na indústria salineira de Mossoró que, até hoje, tem muita relevância na economia do estado do Rio Grande do Norte e, infelizmente, pouco se fala sobre.

Foi lá na praia de Ponta Negra que os holandeses, a partir de 1631, tentaram capitular Natal, recém estabelecida pelos portugueses.

A primeira tentativa por parte dos holandeses ocorreu em 21 de dezembro de 1631, quando catorze navios vindos do Recife aportaram na pequena enseada que se forma bem em frente ao morro do Careca, em Ponta Negra e marcharam em direção ao forte dos Reis Magos, passando por onde hoje é a Via Costeira e que está abarrotada de hotéis luxuosos. Sim, aquele mesmo forte que até hoje podemos visitá-lo e que está localizado na praia do Meio.

Muito embora essa primeira tentativa, dois anos antes, não tenha sido bem-sucedida, em 12 de dezembro de 1633 – da mesma maneira que a tentativa anterior – os holandeses desembarcaram novamente na praia de Ponta Negra, rumaram para a foz do rio Potengi e lá, com a ajuda dos índios, capitularam o Forte dos Reis Magos, rebatizando-o de Castelo de Keulem, e ali Natal passou a ser denominada de Nova Amsterdã, tal qual a cidade de Nova Iorque, rebatizada no ano de 1625.

A par disso, é interessante ter em mente que não só temos belíssimas paisagens naturais ou pontos turísticos históricos, como a praia de Ponta Negra ou o Forte dos Reis Magos, mas também histórias interessantes, as quais devem ser contadas e recontadas. Caso contrário, realmente, ninguém se interessará e, de fato, serão esquecidas.

Nem todo conhecimento individual deve ser voltado exclusivamente para se transformar em dinheiro; monetizado. O prazer de conhecer por conhecer também é muito importante.

Do contrário, ninguém visitaria lugares históricos ou museus para conhecer a história. Qual seria o sentido?

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 19/01/2025 - 04:22h

Lembranças e esquecimento

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa com recursos da Inteligência oficial do BCS

Arte ilustrativa com recursos da Inteligência Artificial do BCS

Se a memória não me falha, já é o quinto verão seguido que passo na companhia do australiano Morris West (1916-1999), um dos meus romancistas favoritos. Invariavelmente bestseller, West sempre combinou entretenimento com boa literatura, no conteúdo e na forma. E, se de fato sei o que fiz nos verões passados, acho que já escrevi aqui sobre “As sandálias do pescador” (“The Shoes of the Fisherman”, 1963), “Os fantoches de Deus” (“The Clowns of God”, 1981) e “A eminência” (“Eminence”, 1998), livros que, bem ao estilo do autor, ex-seminarista que manteve a sua fé católica, premonitoriamente mistura as coisas da Igreja, sua mística e sua política, com as ideologias e a política internacional.

Desta feita, ao avaliar minhas opções na biblioteca de casa, foi por um singelo insight – que explico logo a seguir –, que decidi trazer para a praia “O advogado do Diabo” (“The Devil’s Advocate”, 1959), para muitos a magnum opus do autor, numa antiga edição de bolso da Editora Rio Gráfica (de 1986), muito leve, já surrada, perfeita para adormecer com a gente, sem maiores consequências, na preguiça de uma rede.

E é da contracapa dessa minha sofrida edição que podemos, sem fazer spoiler, dar uma ideia da trama em que se mete o “Advogado” de West: “O sacerdote inglês Blaise Meredith recebe do Vaticano uma das maiores missões da sua vida: investigar a fundo a história de Giacomo Nerone, legendário eremita venerado pela população de um miserável lugarejo da Calábria. Na busca de elementos que impeçam a canonização de Nerone, o padre depara com as estranhas personagens: a amante e o filho do eremita, um médico ateu, um pintor homossexual, uma condessa rica e entediada. Todos fazem parte de um passado que não desejam revelar – cabe a Meredith desvendar o mistério que cerca o silêncio daquela gente”.

Uma trama, aliás, que transversalmente perpassa a ciência jurídica, suas ramificações e suas inusitadas personagens. Afinal, para a beatificação de um Servo de Deus, como aponta West, seria necessária a designação de dois cultos sacerdotes como verdadeiros “profissionais do direito”, “um, como Postulador da Causa, para iniciar a investigação e levá-la avante e, o outro, como Promotor da Fé, ou Advogado do Diabo, para submeter as provas e as testemunhas a severo escrutínio, segundo as cláusulas pertinentes do direito canônico”.

Mas não foi a excelência de “O advogado do Diabo”, nem muito menos suas passagens jurídicas, que me fez escolhê-lo como releitura de verão. Afinal, tinha várias outras boas opções na estante e fiquei sobretudo na dúvida em trazer “As sandálias do pescador”, já que, também pelo que me lembro, havia escrito mais sobre o filme homônimo de 1968, direção de Michael Anderson (1920-2018), do que sobre o livro propriamente dito. O que me fez optar por “O advogado do Diabo” foi uma lembrança instantânea, quando da seleção do livro, que chamei acima de insight, do nosso Servo de Deus Padre João Maria (1848-1905).

Com uma vida consagrada em prol dos mais necessitados – escravos, retirantes da seca, vítimas da varíola, doença que acabou contraindo e dela falecendo –, o “Anjo de Natal” está, faz já alguns anos, com as devidas intervenções do Postulador da Causa e do Advogado do Diabo, em processo de beatificação, com inúmeras graças a ele atribuídas sendo canonicamente registradas. E li ainda dia desses – pelo menos é a minha lembrança – que a Arquidiocese de Natal teria finalizado a fase local/diocesana do procedimento, sendo então a causa enviada ao Vaticano para análise e definição. Numa terra de tantos pecadores, roguemos que tenhamos pelo menos um santo.

De toda sorte, depois de tantas lembranças, ao começar a releitura de “O advogado do Diabo”, constatei algo deveras curioso: lido há muitos anos, já não me lembrava de mais nada do “Advogado” de West. É verdade que alguns “esquecimentos” têm sido comuns depois que passei dos 50 anos.

Depois dessa idade, dizem, tudo que entra na nossa cabeça implica a saída ou esquecimento de outra. Tenho às vezes me queixado disso. Mas, desta fez, tomei o esquecimento como uma verdeira dádiva (dizer milagre do Padre João Maria seria talvez um exagero). Pois agora vivo o romance tão maravilhado como se fosse uma primeira vez.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 19/01/2025 - 03:34h

O Estado é invenção do tinhoso

Por Honório de Medeiros

Arte ilustrativa (Reprodução)

Arte ilustrativa (Reprodução)

O ESTADO – com “E” maiúsculo, é uma invenção do tinhoso.

Não existe de fato, não é uma “coisa”, é uma abstração, uma ruma de leis e homens no Poder, massacrando, espoliando, manipulando os outros – a imensa maioria, em proveito próprio…

No começo, disseram que o total do “pacto social”, pai do Estado, era necessário para defender os homens comuns dos criminosos,  das doenças, e da ignorância.

A Igreja entrou nessa, para alegria dos reis e seus cortesãos.

O tempo mostrou que é somente conversa fiada, coisa do tinhoso. O que eles – os criadores desse lero – queriam, era ficar por cima da carne seca, no bem-bom, fazendo maldade.

E assim tem sido, desde que o homem deixou de rastejar e passou a andar em pé. Nada mais, nada menos. Tanto é que nada mudou, de lá para cá.

Mas Deus tá vendo!

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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domingo - 19/01/2025 - 02:44h

Auschwitz-Birkenau

Por Bruno Ernesto

Auschwitz-Birkenau sob o foco do autor da crônica

Auschwitz-Birkenau sob o foco do autor da crônica

O próximo dia 27 de janeiro marcará oitenta anos da libertação de Auschwitz-Birkenau, o mais famoso e emblemático campo de concentração nazista, onde foram mortas mais de um milhão de pessoas, a maioria delas judeus.

Qualquer fato histórico sobre a Segunda Guerra Mundial é impressionante, porém – tenha certeza -, por mais que você leia, escute ou assista qualquer coisa sobre Auschwitz-Birkenau, nada se compara a andar por aquelas instalações e pôr as mãos em suas paredes. Até o sol e as sombras são diferentes.

Embora seja uma história bem relatada e documentada, com vasto material escrito, diversas vezes retratada no cinema, documentários, e em incontáveis histórias, imagens e imaginário, andar por suas instalações é indescritivelmente angustiante.

Originalmente, primeira parte do complexo – denominada de Auschwitz I e composta por 28 edificações de tijolos aparentes -, era uma instalação militar no sul da Polônia e que, após a invasão alemã em 1939, foi transformada em uma prisão para presos políticos e, somente a partir de 1941 é que teve início a utilização das câmaras de gás, e é lá onde está localizado o famoso letreiro com a infame frase “Arbeit macht frei” (O trabalho liberta), que representa o sadismo dos nazistas.

Para quem, assim como eu, se interessa pela história da Segunda Guerra Mundial, nada mais marcante que poder conhecer pessoalmente onde a história se materializou.

Cada prédio, suas salas e pátios, por si, já permite contar um infindável numero de histórias macabras como, por exemplo, as experiências médicas de Josef Mengele no bloco 10.

O terror do bloco 11, conhecido como o bloco da morte, onde os prisioneiros infratores eram submetidos a um julgamento sumário, e cuja sentença invariavelmente era a morte por fuzilamento, logo ao lado da sala de julgamento. Bastava o sentenciado sair da sala, despir-se na sala ao lado, descer uma pequena escada para o pátio lateral e ser posto de frente ao pelotão de fuzilamento para encontrar o seu fim.

No bloco mais à frente, já em direção à câmara de gás e um pouco antes dela, pode-se ver a trave de enforcamento.

Horror maior foi ter entrado na câmara de gás, correr as pontas dos dedos em sua parede e sentir que os veios escavados nela eram, em verdade, as marcas de arranhadura das unhas de suas vítimas, agonizando em busca de fuga enquanto o gás cianídrico obtido do pesticida Zyklon B as sufocava e, logo ao lado, o crematório lhes aguardava.

Ao lado, via-se a pomposa casa de Rudolf Höss, o comandante encarregado de Auschwitz, onde ele sua família desfrutavam de uma vida em outra dimensão, separados do inferno por ele comandado e que, ele próprio, encontrou o seu fim em 16 de abril de 1947, numa forca posta bem na entrada da câmara de gás do campo de extermínio que ele comandou.

Em verdade, o complexo de Auschwitz-Birkenau é bem maior que se possa imaginar, pois esses 28 blocos que compõem Auschwitz são apenas a primeira parte da máquina de morte nazista, sendo o campo de Birkenau, localizado logo ao lado dele, e que pode ser alcançado em poucos minutos de carro, muito maior, e cuja primeira visão de quem vão visitá-lo são os trilhos nos quais chegavam os vagões abarrotados de prisioneiros. Simplesmente é inacreditável.

Como já pontuei em outras oportunidades, a história, por vezes, é muito irônica, pois, naquele 27 de janeiro de 1945, Auschwitz foi libertada pela Primeira Frente Ucraniana, que na época fazia parte da União Soviética, e era comandada com mão de ferro por Stalin, e hoje é a Ucrânia quem luta para se ver libertada da Rússia.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 05/01/2025 - 11:30h

Bougainville

Por Bruno Ernesto

Foto do autor da crônica

Foto do autor da crônica

Praticamente não há quem não admire plantas. Entretanto, mais uma vez recorro a Liev Tolstoi e sua inigualável percepção de mundo: Há quem passe por um bosque e só veja lenha para a fogueira.

É inegável que qualquer paisagem ou ambiente fica mais ameno e agradável se tiver plantas, e que andar por entre elas é reconfortante e as flores são mais que simbólicas; tanto na alegria, quanto na tristeza.

Posso dizer que fui privilegiado por, desde sempre, viver por entre elas e ver minha mãe manter e cuidar do seu jardim; sempre diverso, perfumado, exuberante e colorido.

Já vi inúmeros jardins com a assinatura do famoso paisagista Burle Marx, e digo, sem modéstia, que o da minha mãe é muito mais bonito. Pois é.

Quem chegasse à minha casa, inevitavelmente, o primeiro assunto abordado era o seu jardim, ainda que não estivesse na pauta.

Ela sempre fala com orgulho dele e contava com a assistência do meu pai, tanto física – mudando os jarros de posição, podando ou adubando – quanto técnica – era engenheiro agrônomo.

Quando criança, costumava regar com auxílio de um pequeno balde um batalhão de plantas cultivadas em jarros, além de outras tantas encravadas diretamente no solo por todo terreno da casa, e finalizava o serviço aspergindo água por cima delas, feito chuva de final de tarde, só para sentir o cheiro de terra molhada. Embora meu pai protestasse dizendo para economizar água.

Tempos depois, descobri que esse cheiro característico tem até nome científico: petricor. Aliás, ainda hoje, quando ela viaja, tenho que ir à casa para regá-las.

De todas as plantas para se ter no jardim, a que mais me fascina é a bougainville. É de encher os olhos. Em qualquer parte do mundo você verá bougainville, acredite.

Nunca deixo de admirar essa trepadeira, que também pode ser cultivada como se tivesse um tronco firme, com os seus galhos se agarrando em tudo em busca do céu, com folhas de um verde intenso e flores que parecem ser feitas de papel machê.

O nome da planta, por si só, passa a impressão de que não é natural do Brasil. Contudo, é brasileiríssima, encontrada especialmente na Mata Atlântica.

Sua fama mundial se deu após ser encontrada pela naturalista francesa Jeanne Baret, que integrava a expedição do navegador francês Louis Antoine de Bougainville, que liderou a primeira circum-navegação mundial a mando do rei Luís XV, e que aportou na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1767, tendo ele espalhado a sua beleza mundo afora. Daí o seu nome.

Quem mantém um pequeno jardim, também cultiva outra tradição: conseguir mudas, a qualquer custo ou conseqüência, diga-se de passagem.

Invariavelmente via alguém puxando os galhos dos bougainville multicoloridos que alcançavam a rua por cima do muro. Decerto era alguém em busca de uma muda deles.

Pelo que me recordo, quando tinha por volta de oito ou dez anos de idade, quando tocavam a campainha lá de casa, normalmente eu que ia abrir o portão.

Tempos depois, passei a observar que algumas senhoras e moças bem sérias tocavam a campainha e me perguntavam se podiam colher as flores dos bougainville. Eu dizia que sim e elas colhiam tudo que podiam e levavam. Não raro, outras pessoas apareciam com mesmo intuito.

Tempos depois, tocaram novamente a campainha e, dessa vez, quem pediu para colher as flores do bougainville foram umas três crianças, mais ou menos da minha idade.

Antes de autorizar perguntei para que elas precisavam das flores e elas me responderam que era para um velório. Não falei mais nada e disse que podiam pegar as flores que quisessem. Colheram e foram embora. Nunca mais ninguém pediu flores.

O tempo passou, e numa recente viagem à Paris, num dia muito frio e bastante chuvoso, após passar pela célebre livraria Shakespeare and Company, avistar a Catedral de Notre-Dame na iminência de ser reaberta após o terrível incêndio ocorrido em 2019, rumamos a pé, por entre os prédios da Sorbonne, em direção ao Panteão – preterido em outras passagens pela cidade – e lá me deparei novamente com o nome bougainville.

Naquele silêncio ensurdecedor do subsolo do Panteão, percorrendo aqueles corredores a meia-luz, reconheci os nomes de notáveis como Victor Hugo, Voltaire, Émile Zola, Louis Braille, Jean-Jacques Rousseau, Marie Curie, Alexandre Dumas, Josephine Baker, e tantas outras personalidades francesas.

Já de saída, quase por acaso, li numa pequena placa na porta de uma cripta: Vice-Amiral Comte L. A. de Bougainville 1729-1809.

De imediato lembrei-me daquelas pessoas que tocavam a campainha em busca das flores do bougainville lá de casa para homenagear seus entes queridos, sem saber, sequer, os seus nomes.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 05/01/2025 - 10:22h

Os chacais

Por Marcelo Alves

O dia do Chacal (Foto: reprodução)

O dia do Chacal (Foto: reprodução)

“Envolvente em sua indiferença, admirável em sua frieza, pertinaz em sua determinação, ele é o Chacal, um assassino de aluguel contratado pela OAS, Organização do Exército Francês, inimiga da independência da Argélia, para fulminar o General De Gaulle com uma bala de fuzil. Sem identidade, mas com gestos refinados e elegantes, o Chacal trabalha nas sombras e mata friamente quem se interpõe em seu caminho. Um plano macabro. Conseguirá o inominável Chacal executá-lo?”, essa é a chamada da contracapa do célebre romance “O dia do Chacal” (Abril Cultural, 1980), do inglês Frederick Forsyth (1938-2010).

Evidentemente, não vou responder à pergunta. Não faço spoiler.

Quero aqui, na verdade, para além de ressaltar a excelência desse best-seller, falar do seu caráter duplamente “imitativo”, já que ele imita a vida e a vida acaba o imitando.

Segundo consta, Forsyth teria imaginado o enredo de “O dia do Chacal” quando, trabalhando para a agência Reuters, observou a labuta das forças de segurança em torno do General De Gaulle. Escrito em estilo marcadamente jornalístico, o livro principia narrando um fato histórico: a tentativa frustrada, em 22 de agosto de 1962, patrocinada pela OAS (no original “Organisation de l’Armée Secrete”), através do tenente-coronel Jean-Marie Bastien-Thiry, de assassinar o heroico líder francês. Nesse ponto, o livro é um bom exemplo de ficção histórica.

Se a arte imita a vida como no princípio de “O dia do Chacal”, é também danado para, a partir da ficção policial, numa mistura infeliz de loucura com pura criminalidade, a vida imitar a arte. “O dia do Chacal” parece ser um caso clássico desse tipo de influência no mundo real.

O próprio método para adquirir passaporte e identidade falsos, como descrito no romance, restou doravante imitado e conhecido, sobretudo no Reino Unido, como “Day of the Jackal fraud”. Consta que vários assassinos e terroristas eram fanáticos leitores do romance de Forsyth. Com Yigal Amir, que assassinou primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin em 1995, foi encontrada uma cópia em hebraico de “O dia do Chacal”.

Sobretudo temos o caso do terrorista venezuelano Ilich Ramírez Sánchez, notadamente apelidado de “Carlos, o Chacal”, uma vez que também teria sido encontrada uma cópia do romance nos pertences do dito cujo. Tido como marxista-leninista radical, ele foi o responsável por uma série de assassinatos e atentados terroristas nos anos 1970 e 1980, inclusive na França. Esteve entre os criminosos internacionais mais procurados. Foi finalmente capturado no Sudão e transferido para a França, onde atualmente cumpre várias penas de prisão perpétua. Quem sabe algum dia não falamos sobre o caso real de Carlos, o Chacal?

É fato que o romance “The Day of the Jackal”, desde quando originalmente publicado em 1971, tem sido um sucesso de crítica e de público. Venceu o prêmio Edgar, da Mystery Writers of America, no ano seguinte ao seu lançamento. Ainda hoje popular, figura sempre nas listas dos romances mais lidos da literatura inglesa e universal. E, já em 1973, com o mesmo título, foi excelentemente adaptado para a grande tela, com direção de Fred Zinnemann e estrelado por Edward Fox e Michael Lonsdale. O filme ganhou um BAFTA, além de outras merecidas indicações para o mesmo prêmio, para o Globo de Ouro e para o Oscar. Tornou-se um clássico.

Por sinal, acabei de descobrir que o livro de Forsyth foi recentemente adaptado para a TV. “The Day of the Jackal” (2024) é uma nova série da televisão britânica, estrelada por Eddie Redmayne e Lashana Lynch, que, desde a estreia em novembro último, virou sucesso mundial. Logo indicada ao Globo de Ouro (melhor série – drama), batendo recordes de audiência nos Estados Unidos e no Reino Unido, com a segunda temporada já anunciada, ela chegou ao Brasil por meio da plataforma de streaming Disney+. Para quem quer menos badalação no verão, esse “novo” Chacal é uma boa opção, não?

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da Repúblicao, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 05/01/2025 - 08:48h

O prazer de escrever

Por Odemirton Filho

Arte ilustrativa da Inteligência Artificial do BCS

Arte ilustrativa da Inteligência Artificial do BCS

O cronista, por vezes, ressente-se da falta de assunto. Aliás, a maioria já escreveu sobre esse vazio de ideias. Às vezes, sentamos diante da tela do computador e não conseguimos extrair algo para ser dito. Ficamos a matutar. E nada.

Olhamos para um lado, para o outro. Tomamos um gole de café. Olhamos pela janela, e a danada da inspiração não vem. Pensamos até em não enviar texto algum para ser publicado.

Entretanto, temos uma necessidade. Algo que nos impele, força-nos a escrever algumas linhas, e terminamos por fazer. Por obrigação? Não, não, por prazer.

Escrever nos deixa leves. Colocamos a nossa alma nos textos. Deixamos registrados em palavras os nossos sentimentos, o nosso coração, angústias, sonhos, alegrias e tristezas. Como sabemos, entra ano, e sai ano, e a vida se repete.

Por isso, é preciso oxigenar a vida, fazer valer a pena os nossos dias neste plano terrestre. Fazer o que se gosta, amar e ser amado, viver ao lado daquelas pessoas que nos fazem bem.

Como é bom cultivar o que é prazeroso. Assim, eu escrevo sem qualquer pretensão de reconhecimento literário. Sei das minhas limitações. A minha paga é simplesmente o prazer de escrever, de compartilhar um pouco de mim.

As reminiscências que, vez ou outra, trago a este espaço são um deleite para a alma, pois alegram o nosso cotidiano. Lembrar o que nos fez bem é tão bom.

Assim, escrevo este pequeno texto para me manter fiel ao que me dá prazer; livre, como se estivesse em pleno voo.

Tentarei escrever por mais um ano neste espaço plural, repleto de boa gente. Continuarei a oferecer um pouco de mim; o leitor, a sua agradável companhia.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
domingo - 29/12/2024 - 17:44h

A pessoa que faltava

Por Ivan Lira

Ilustração de crônica postada Instagram do autor

Ilustração de crônica postada no Instagram do autor

Gentil Alves da Silva foi, por muitos anos, o titular do único cartório de registro civil de pessoas de Doutor Severiano, uma pequenina e simpática cidade do oeste potiguar, na fronteira com o Ceará. O termo era vinculado à Comarca de São Miguel, onde fui Juiz de Direito e vivi tempos felizes na década de oitenta.

Seu Gentil era um tipo formidável: gordinho, de estatura mediana, com a cabeleira farta e um bigode bem cuidado. Vinha quase todos os dias a São Miguel, carregando processos de habilitação de casamento ou registros de nascimento fora de prazo, para receber o meu despacho. Colocava-se de forma discreta ao lado do balcão do cartório de Zé Rocha (à época não havia fórum, e o juiz atuava diretamente nos cartórios, sem espaço reservado), observando tudo atentamente.

Aos poucos, conquistou minha confiança e amizade, tanto que, algumas vezes, fui almoçar em sua casa. Confessou-se admirador da poesia popular e, bastante encabulado, mostrou-me alguns versos que havia escrito. A partir daí, de vez em quando, escondia entre os autos cartoriais umas quadrinhas, sextilhas e até décimas. Em seus versos, exaltava a natureza, as belezas da serra, as presepadas de um oficial de justiça “ad hoc”, as desventuras de um bêbado, a beleza das moiçolas e outras trivialidades.

Talvez preocupado com o meu doce exílio voluntário naquela distante Comarca, convidou-me para um baile em sua cidade. Fui, dancei e gostei. Algum tempo depois, repetiu o convite, mas, dessa vez, não pude aceitar, pois estava em viagem à capital.

Quando voltei, o pesar pela minha ausência foi traduzido em versos. Um deles trazia um neologismo que jamais esqueci: masculinizou o qualificativo “bacana” para não perder a rima. O mote era: “A pessoa que faltava era só Doutor Ivan”. E lá veio ele:

“Domingo teve uma festa
em Doutor Severiano.
Veio um grupo ‘bacano’
trazendo uma boa orquestra.
Muitas meninas passando
com as faces cor de romã,
e eu de longe observava
que a pessoa que faltava
era só Doutor Ivan!”

Ivan Lira é professor da UFRN, juiz federal e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras (ANRL)

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  • Art&C - PMM - Sal & Luz - Julho de 2025
domingo - 29/12/2024 - 13:08h

Meu amor de salvação

Por Marcos Ferreira

Foto ilustrativa de Bruno Marques (Canção Nova)

Foto ilustrativa de Bruno Marques (Canção Nova)

Após não sei quantas publicações, eis que agora me dou conta de que não escrevi sobre a mais importante personagem que, vez por outra, menciono neste meu exercício de cronista. Pois é, não escrevi. Embora a tenha inserido nalguns textos prolixos acerca de assuntos vários, não a expus, todavia, como protagonista, com uma página apenas dela: minha adorável noiva Natália Maia.

Então, prezado leitor e gentil leitora, peço licença para discorrer, neste domingo de pássaros cantantes e céu azul, sobre alguém que, ao longo dos últimos seis anos (nosso namoro teve início aos 7 de setembro de 2015), só me tem dado alegria e orgulho de tê-la em minha vida. Exatamente! Se em outros momentos a enalteci em merecidos versos, que tornei públicos sem qualquer receio, hoje repito a indiscrição em prosa, nesta crônica de natureza tão pessoal quanto amorável.

Sei do risco que corro, em se tratando do interesse dos leitores, ao abordar um assunto tão íntimo. Tem nada, não. Creio que possuo algum saldo com vocês. Se não, botem aí na conta, que qualquer dia eu pago esse débito literário. Hoje não me furtarei em falar sobre Natália, ela que, antes do meu editor, é quem primeiro lê todas as produções que publico. Exceto esta. Porque é surpresa.

Imagino que agorinha ela acabou de acessar o Canal BCS (Blog Carlos Santos), já tomada banho e decerto bebericando a sua xícara de café matinal, para saber enfim o que danado escrevi para este domingo, posto que desta feita (estranhando desde ontem as minhas esquivas) ela não viu meu texto em primeira mão. Sim, inventei algumas desculpas, escondi-lhe a verdade com esse propósito bem-intencionado, e mantive estas páginas longe dos olhos de Natália até bem pouco.

— Cadê a crônica, hein? — ela perguntava.

Neste minuto, porém, não há mais segredo. O pano caiu; estou a descoberto perante ela. Muito em seu louvor eu gostaria de dizer, contudo sei que nada do que escreva será o bastante para dimensionar as qualidades de Natália Maia, uma pessoa cujo caráter e senso humanitário poucas vezes se encontram em meio ao rebanho da vida em sociedade, como diria o querido amigo Antônio Alvino.

O que mais posso referir sobre Natália? Há tanto o que ser dito de bom a respeito dela, eu que sou o seu maior admirador, mas agora reparo que as palavras começam a me faltar. Acontece. Entre outras coisas, às vezes ela tem o poder, a sutil capacidade de me deixar sem argumentos. Por outro lado, e com firmeza, é a grande incentivadora das minhas letras, da minha escrita. É quem me diz (na saúde e na doença, na tristeza e na alegria) que tenho futuro enquanto escritor.

Não sou um sujeito religioso, nunca fui, entretanto ouso dizer que Natália é um anjo bom que Deus colocou em meu caminho. Hei de ir embora primeiro, sinto que não vim a este mundo caótico para me demorar, mas desejo viver ao lado dela todo o tempo que ainda me resta. Portanto, agradeço ao Altíssimo por todos os dias, horas e minutos que tenho usufruído da companhia de Natália.

Foi ela, com o facho de luz do seu lindo coração, com a aura de um espírito superior, quem me resgatou das trevas em que estive durante tanto tempo, desacreditado de todos e até de mim próprio. Natália, prezado leitor e gentil leitora, devolveu-me a alegria de viver, convenceu-me de que a vida vale a pena, e me trouxe de volta o prazer da escrita, da leitura, meu gosto pela música e pelo cinema. Exatamente, senhoras e senhores, não foi apenas o arsenal de psicotrópicos.

Cheguei ao fundo do poço, a ponto de passar noites amarrado a uma cama de hospício desta cidade, dopado, o corpo cheio de dores, num deplorável estado de semiconsciência e torpor. E quando eu estava lá, caído nas sombras, na sarjeta mental, foi dela a mão que me resgatou. Cuidou dos meus ferimentos e todo dia me ensina a conviver com as cicatrizes que ficaram na minha alma.

É difícil falar sobre esta Natália sem exibir um pouco do meu histórico, por mais que o objetivo destas palavras seja prestar uma simples homenagem à musa do meu coração. Penso que outras mulheres (não culpo ninguém por isso) teriam me voltado as costas, desistido de mim nos primeiros sinais da minha doença. Ela, contudo, não o fez, não me largou naquele manicômio. Apostou no meu restabelecimento, não fraquejou, a todo instante apoiada na sua infinda, inabalável fé.

— Você vai ficar bom! — sempre afirmava.

Por que expor aqui coisas tão íntimas? Alguém deve questionar. Não me constranjo, não há problema algum em sermos justos e verdadeiros. Não perco mais tempo com certos pudores e hesitações. Hoje tenho mais passado que futuro e quero dizer às pessoas — inclusive a Natália — o que penso sobre elas, ainda que publicamente. Deixar isso para amanhã pode ser para nunca mais.

Os pássaros cantam, redemoinham na mangueira da residência aos fundos, numa incessante babel que me serve de trilha sonora para este depoimento em homenagem a Natália. O vento também produz barulho nos ramos e folhas da grande árvore, impulsionando o voejar do passaredo ao redor. Então eu gostaria que este relato fosse leve como o vento, agradável e alegre como o canto desses seres alados que orbitam a velha mangueira da senhora Francisca, minha vizinha.

Não só da mangueira advêm as aves que ouço nas imediações. Aqui próximo, por trás das casas do outro lado da rua, passa um córrego (talvez seco nesta época do ano) de onde vez por outra, além do estrídulo das nhambus, escuto o que me parece o pio de uma sericoia e também das rasga-mortalhas. Sobretudo durante as eventuais horas mortas em que me encontro nesta escrivaninha.

Antes, durante um longo período, eu não mais me dava conta de nada disso, da vida que pulsava no meu entorno, das coisas simples e belas da natureza. Tive que reaprender a enxergar e a ouvir muito do que havia esquecido. Natália, que posso chamar de meu amor de salvação, sem pieguice ou exagero, tal qual no romance do Camilo Castelo Branco, é responsável por tudo de bom que me tem acontecido ao longo destes seis anos que abarcam o nosso namoro e noivado.

É possível que o prezado leitor e a gentil leitora considerem esta declaração algo açucarado, quiçá démodé. Podem achar o que quiserem. Estão no seu direito. Acontece, porém, que de amargo hoje em dia eu só estou aceitando café. No mais, ao menos em literatura, um pouco de açúcar, só uma vez perdida, não faz mal a ninguém. Até porque o amor também é doce e nunca sairá de moda.

Marcos Ferreira é escritor

*Texto originalmente publicado no BCS no dia 10 de outubro de 2021.

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Categoria(s): Crônica
domingo - 29/12/2024 - 11:42h

Esperança

Por Odemirton Filho

Arte ilustrativa com uso de Inteligência Artificial do BCS

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Os primeiros versos de um poema de Mario Quintana dizem assim: “lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano vive uma louca chamada Esperança”…

Terminamos mais um ano. Aos trancos e barrancos? Talvez. Mas terminamos. Começaremos uma nova jornada. Jornada de lutas, alegrias e tristezas. A vida é essa eterna batalha, e precisamos estar preparados.

O que nos espera? Sei lá! Só Deus sabe. Contudo, temos que estar firmes e fortes pra o que der e vier. Cada um tem os seus problemas, suas lutas e objetivos. “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.

Em um mundo tão cheio de guerras, onde se matam milhares de pessoas em razão da irracionalidade e ganância de uns poucos, inocentes padecem. Não é de hoje que o homem se digladia, é de sempre, e sempre será. Sem esquecer da fome, da miséria e das doenças, mundo afora.

No Brasil dividido entre a direita e a esquerda, os problemas e o radicalismo político-ideológico continuarão. As promessas descumpridas, a roubalheira nos quatro cantos do país, o velho compadrio, o toma lá, dá cá, também.

Nas famílias, e todas se parecem, só mudam de endereço, as picuinhas e as desavenças acontecerão. Relacionamentos são difíceis, é da natureza humana. Sentimentos menores, infelizmente, fazem parte da alma do homem.

Entretanto, apesar dos pesares, não devemos desesperançar. A vida é uma mistura de emoções, há bons e maus momentos. Estamos vivos, vivos! E isso é motivo para agradecer. Peçamos a Deus saúde pra enfrentar a vida, peçamos ao bom Deus amor no coração.

Agradeçamos pelo ano de 2024; e esperemos que o ano de 2025 seja um dos melhores de nossas vidas, pois “a sabedoria humana está nessas palavras: esperar e ter esperança”.

Na inspiradora reflexão do cardeal José Tolentino de Mendonça: “a esperança mantém-nos vivos. Não nos permite viver macerados pelo desânimo, absorvidos pela desilusão, derrubados pela força da morte. Compreender que a esperança floresce no instante é experimentar o perfume do eterno”.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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domingo - 29/12/2024 - 10:38h

Outros natais

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa com uso de Inteligência Artificial do BCS

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Nesta véspera de Natal, chafurdando no site da BBC, seção de cultura, dei de cara com uma matéria cujo título dizia: “A melhor história natalina de fantasmas: como o filme de terror dos anos 1980, A Mulher de Preto, aterrorizou a Grã-Bretanha”. A matéria faz referência ao filme “The Woman in Black”, direção de Herbert Wise (1924-2015), originalmente exibido pela ITV na véspera do Natal de 1989, a partir de uma adaptação do romance homônimo, de 1983, de Susan Hill (1942-).

Consta que assustadoramente arruinou o sono de muitas pessoas naquela noite de Natal. E, segundo a BBC, a tal “Mulher” representa o pináculo de uma tradição britânica de festivas estórias de fantasmas. Tem boa razão.

Com pequenas variações que decorrem das naturais adaptações, a aterrorizante estória de “A Mulher de Preto” basicamente gira em torno da experiência do jovem advogado Arthur Kipps, em viagem de trabalho, na pequena e chuvosa cidadezinha de Crythin Gifford (que, embora imaginária, estaria situada na costa leste da Inglaterra). Em dado momento, o jovem advogado vê uma estranha “mulher de preto”. Os locais temem falar do assunto. Trata-se, segundo a crença local, do fantasma de uma mãe, que em vida foi separada do filho, em busca de vingança.

A vingança, para infelicidade de pais e mães, recai sobre as crianças do lugar, já que, após cada aparição da “mulher de preto”, uma ou mais delas inesperadamente morrem. Para dar ares ainda mais sombrios à coisa, boa parte da trama, temporalmente situada no começo do século XX, se passa em uma abandonada mansão, localizada em uma remota ilhota na costa, cujo acesso só é possível quando a maré está baixa. Uma ilhota tipo o Mont Saint-Michel, na Normandia francesa, algo que, aliás, embora menos conhecido, a Inglaterra também tem: o St Michael’s Mount, na Cornualha (que nome terrível!), no extremo sudoeste da Ilha Britânica. De toda sorte, os montes reais, o francês e o inglês, são belíssimos e (quase) nada aterrorizantes.

Morando/estudando em Londres, tive a oportunidade de assistir a duas “versões” de “A Mulher de Preto”. O filme “The Woman in Black”, de 2012, com direção de James Watkins (1973-) e Daniel Radcliffe (o queridinho Harry Potter) e Ciarán Hinds nos papéis principais. E a célebre peça homônima, então já há vários anos em cartaz no Fortune Theatre (bem no miolo de Covent Garden).

Em dois atos, com só dois atores no elenco, esta tinha um ambiente ao estilo filme noir, onde, dentro da peça, se encenava outra peça. Com essa habilidosa mistura de “peças”, inconscientemente o espectador ficava transitando entre dois (assustadores) mundos e, em dado momento, não sabia mais se lidava com fantasmas imaginários ou reais. Adorei.

É verdade que assistir aos filmes “The Woman in Black” e (necessariamente) à peça na cidade de Londres dá um toque a mais à coisa. Tem um “espírito assustador” londrino que é sentido/vivido in loco. E esse eu conferi, já impressionado e tarde na noite, voltando para casa, cruzando estranhas ruelas e becos. A verdade é que basta olhar para o lado – ou, para os mais incrédulos, ir checar nas inúmeras publicações sobre a “Haunted London” – para se enxergar que fantasmas e Londres têm tudo a ver. Em Covent Garden mesmo, são “histórias” e mais “estórias” de violência, morte e aparições nas cercanias. Uma pequena amostra da cidade de “Jack, o estripador”, da Torre de Londres, seus enforcados e seus espíritos. Sinistro.

Mas é verdade também que, para aqueles desejosos de espantar seus fantasmas, sobretudo os imaginários, havia sempre – e ainda há – os pubs de estilo.

Bons tempos, posso dizer, embora correndo o risco de parecer demasiadamente saudosista – mas quem não o é no Natal? –, quando o mundo era grande e pequeno e, nos natais, nos preocupávamos apenas com os fantasmas festivos.

Hoje, com a terra e a vida tão estreitas, temos outras preocupações maiores. E nada sobrenaturais.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 22/12/2024 - 15:26h

Amar se aprende amando

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa

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Hoje que te encontro a rir-se em desespero, carecendo de amparo e de equilíbrio, tenho a perder contigo estas velhas e repetidas palavras. Porque eu, assim como todo mundo, também sofri o meu bocado e magoei outros mais neste sempre desconcertante samba do crioulo doido: o amor. E quero dizer-te, por conhecimento de causa, que sei perfeitamente o que estou falando. Sim. A gente sofre, mas aprende.

Talvez o que eu te explique até possa consolar-te por alguns instantes, mas logo que reparares em volta e deres com a ausência de quem amas, tudo isto que te revelo perder-se-á pelo ralo escuro da incompreensão e do esquecimento. É assim o coração de quem ama, um terreiro de feitiços, magias, sortilégios, um rútilo salão de festas, um palco de inúmeros dramas e comédias, lágrimas e risos, dores e prazeres, sonhos e desenganos. Cada qual com a sua lombra e seu lundum, sua fala e o seu silêncio, seu fracasso e sua glória.

Diante dele, sobre ele ou debaixo dele — o amor —, não há quem não dance, quem não se dobre ou quem não vacile, quem não goze e quem não gema… O amor é cheio de caprichos, de vontades próprias. Não há quem não traga no rosto a cicatriz invisível de um beijo, a cruz do sonho morto fincada nas areias movediças do coração amante. Sei exatamente o que sofres neste minuto.

Porque eu, modéstia à parte, possuo doutorado sobre tal assunto. Sou Ph.D. em roedeiras e dores de cotovelo. Reconheço em teus olhos a mesma tempestade, o mesmíssimo ciclone que revolveu minhas entranhas e devastou esta minha alma condoreira.

Conheço muito bem o mau humor que ora te envenena a língua e amarga tuas palavras. Eu já tomei o chá amargo de todas as ervas e raízes do amor não correspondido, do amor sozinho, do sexo solitário. Eu também já catei papel na ventania, matei cachorro a grito e beijei de olhos abertos.

Sei o que é ser trocado por outro (ou outra, nalguns casos) e se sentir o cocô do cavalo do bandido, um zero à esquerda, um risco n’água, um fósforo molhado, uma lâmpada queimada, um cão sem dono. Eu também já quebrei a cara, já cuspi para cima e vi a menina dos meus olhos ir-se embora com o tal palminho de rosto das colunas sociais.

AÍ EU CUSPI NA CRUZ, joguei praga em santo, bati a porta e chorei mudamente embaixo dos lençóis. E só não briguei com Deus porque ele, apesar dos pesares, sempre aliviou a barra e nunca se enfezou comigo. Mas veja que o baque é forte, e a lombra do amor rejeitado já deixou muita gente de quatro.

Não mais me espanta que tenhas agredido o meu nome, condenado os meus dias e amaldiçoado as minhas noites. É que às vezes queremos lançar a culpa sobre alguém quando perdemos a compostura, o respeito, o amor-próprio, a autoestima, a dignidade, os brios, a razão e até nos descabelamos.

Assim nos vemos quando o cisne branco da felicidade (a nossa alma gêmea, nossa cara-metade, entres outras definições românticas) migra para bem longe dos nossos braços. De repente, não mais do que de repente, tudo é desventura e malogro… Faz-se da vida um filme em preto e branco e nada mais nos parece ter a menor graça ou importância.

Entretanto, não te esqueças de que tudo isso passa. Espera o mercurocromo do tempo atuar sobre as feridas da alma. Porque o coração, assim como o fígado, possui o poder de autorregenerar-se. O processo é doloroso e lento, mas é preciso não morrer da cura, como reza o soneto que te fiz.

Então, antes que o pandeiro se cale e as cinzas desabem sobre a quarta-feira, tira a tua dor da avenida que eu quero passar com o meu sorriso. Porque agora eu também já sei namorar, já sei “ficar” e tudo o mais que o diabo gosta.

Além disso, como diz o poeta Drummond, amar se aprende amando.

Marcos Ferreira é escritor

*Crônica publicada originalmente no dia 02 de maio de 2021.

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  • Repet
domingo - 22/12/2024 - 13:24h

Enquanto o leite ferve

Por Bruno Ernesto

Foto ilustrativa feita pelo autor da crônica

Foto ilustrativa feita pelo autor da crônica

Se há uma lei, regra, norma jurídica, regra social, tipo penal, jurisprudência, verdade real, filosófica, exercício da ponderação, sopesamento, interpretação extensiva, restritiva, literal, história, sistemática e cuja a modulação dos efeitos jamais retirará a sua eficácia plena e imediata, é a lei do leite derramado.

Não, não me refiro àquela chance perdida, o termo que se operou, o fato que que se consumou, o ato comissivo ou omissivo, ou qualquer situação que nos ponha a refletir.

Nossa relação quanto a tais ou quais circunstâncias que, rotineiramente, nos foge ao controle, está mais para uma relação sinalagmática, nos mantemos distantes de certas realidades, e trocamos o caos por ideias e metas que, ainda que intangíveis, se mostram extremamente mais atraentes apenas pelo fato de ser uma mera possibilidade.

Há uma sentença, cuja autoria se atribui a Sigmund Freud, e que muito bem se adequa às questões que tentamos solucionar, quando, em verdade, restam insolúveis, e que devemos, por coerência, manter seu estado intocável: “Não vou deixar que nenhuma reflexão filosófica me tire o prazer das coisas simples da vida.”

Ninguém precisa solucionar tudo para que a vida faça algum sentido. Não por incapacidade nossa, mas, sim, por serem essencialmente insolúveis; ou seja, a lógica de sua existência é a sua própria insolubilidade, uma vez que o sentido da vida é algo individual. A sua lógica de vida não é igual ao do outro.

Nem tudo na vida há solução ou mesmo merece ser resolvido; notadamente questões de cunho pessoal, ainda que a reflexão acerca de questões básicas envolvam a lógica de que o sentido de tudo é a coerência entre pensamento, atos e ações, pois, rotineiramente, já não mais guarda qualquer sentido com o seu eventual proveito.

Se você observar bem, certas vontades, dúvidas, alegrias, tristezas ou certezas, duram uma fração de segundo. Quiçá, apenas o tempo suficiente para o leite ferver e sujar o fogão, ainda que observemos a tudo e a todos atentamente.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 22/12/2024 - 10:48h

A César

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa produzida pelo IA do BCS

Arte ilustrativa produzida pelo IA do BCS

Por estes dias, assistindo ao noticiário internacional cada vez mais conturbado, soube que os chamados “rebeldes” na Síria, que derrubaram a ditadura de Bashar al-Assad, estão sendo instados, por grupos ainda mais radicais mundo afora, a instalar no país um governo – e especialmente um direito – baseado na denominada “Sharia” islâmica.

Sobre a Sharia, reproduzo aqui uma definição (leiga) fornecida pela BBC News Brasil: “A Sharia é o sistema jurídico do Islã. É um conjunto de normas derivado de orientações do Corão, falas e condutas do profeta Maomé e jurisprudência das fatwas – pronunciamentos legais de estudiosos do Islã. Em uma tradução literal, Sharia significa ‘o caminho claro para a água’.

A Sharia serve como diretriz para a vida que todos os muçulmanos deveriam seguir. Elas incluem orações diárias, jejum e doações para os pobres. O código tem disposições sobre todos os aspectos da vida cotidiana, incluindo direito de família, negócios e finanças. (…). A lei também pode conter punições severas. O roubo, por exemplo, pode ser punido com a amputação da mão do condenado. O adultério pode levar à pena de morte – por apedrejamento”.

É claro que, mundo afora, existem “versões e versões” da Sharia, com sua aplicação variando enormemente nas comunidades islâmicas. Assim, ela pode servir apenas como orientação para as condutas de muçulmanos em países laicos. Mas ela pode também ser “a base do sistema de Justiça em países islâmicos onde o Estado não é laico – onde o Corão praticamente se torna a Constituição”. Embora não seja especialista em direito islâmico, a partir do meu ponto de vista ocidental, cristão e liberal, acho essa derradeira versão “sinistra”.

Mas também no que toca à nossa civilização dita “cristã”, suspeito enormemente da mistura da religião com a administração do Estado e especialmente do Direito – coisa que, por sinal, alguns têm tentado emplacar, em proporções bem menores que uma Sharia islâmica, mas com relativo sucesso, aqui e alhures. Para além de outras implicações de ordem filosófica, sociológica e política, tenho a nossa Bíblia – talvez o maior livro jamais escrito, tanto sob o ponto de vista literário como de conteúdo e formativo – como um “péssimo” diploma legal.

E aqui aponto apenas uma razão simples. Desde a sua interpretação literal aos seus sentidos mais metafóricos, a Bíblia é mais do que pródiga em significados, seja para a mesma ou para as suas múltiplas passagens interconectadas. Não é à toa que o ramo filosófico da hermenêutica tem o seu desenvolvimento e lugar de destaque tanto na teologia como no direito. Bom, insegurança jurídica, em seus vários matizes, incluindo o interpretativo, é péssimo para o direito.

Como resume John Riches (em “Bíblia: uma breve introdução”, L&PM, 2016), “talvez os leitores da Bíblia tenham de conviver com o fato de que ela apresenta um enorme potencial de gerar sentidos diversos. Talvez, aliás, devam aceitar esse fato não como um problema, e sim como uma parte da própria força da Bíblia. Isso traz sérias consequências. Significa, em primeiro lugar, que a função normativa da Bíblia para uma comunidade se enfraquece notavelmente. Se se reconhece que a Bíblia é, na própria essência, capaz de ter muitos sentidos, a possibilidade de utilizá-la como código de conduta ou mesmo como regra de fé será limitada. Mas não foi sempre assim? O fato de que os judeus recorram ao Talmude para prescrições sobre assuntos práticos e de fé e os cristãos recorram a alguma regra de fé ou aos cânones dos concílios ecumênicos para guiar seus assuntos sugere muito claramente que, na prática, sempre se aceitou que a Bíblia era rica demais, ou variada demais, ou vaga demais para cumprir a função de um Código Napoleônico”.

Talvez por isso o mais do que sábio Jesus tenha dito: “O meu reino não é deste mundo; (…) o meu reino não é daqui” (João 18:36). E nos tenha recomendado: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21).

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCLM e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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