domingo - 03/08/2025 - 09:48h

Ao redor do buraco, tudo é beira

Por Bruno Ernesto

Traíra em açude seco (Foto: Bruno Ernesto)

Traíra em açude seco (Foto: Bruno Ernesto)

Um dos pontos esquecidos sobre o chamado “período do banditismo”, que eclodiu nos sertões profundos do Nordeste brasileiro no final do século XIX e que se intensificou até a década de 1940, foi a paradoxal relação entre o santo e o profano.

O protoreligiosismo sertanejo, com suas rezas incisivas, especialmente de proteção e fechamento do corpo, com alguma pouca incursão no sincretismo religioso, mas acentuada correlação entre a injustiça terrena e a salvação divina, foi a gênese do que se renova hoje no Brasil, sob outra tutela e cosmovisão, porém com mesmo proselitismo e interesses econômicos, sempre subjacentes.

Religiosidade nos grotões do sertão Nordestino sempre foi um fenômeno endêmico, peculiar, e de uma mistura mística difícil de compreender, e que deixou marcas indeléveis.

Nos tempos revoltosos do sertão, a mão que pedia a bênção e debulhava o terço, era a mesma que erguia o punhal, puxava o gatilho ou apertava a carne.

A religiosidade primitiva, se assim podemos dizer, guarda inúmeras facetas. O perdão nem sempre se conquista com a fé.

Lembro muito bem a colocação do escritor Honório de Medeiros, autor da importante obra “Histórias de Cangaceiros e Coronéis”, que destaca que o coronelismo foi o braço forte desse movimento, com nomes que até hoje reverberam entre nós, porém com pouca correlação de poder econômico e paralelo daquele tempo, como Veras, Maias, Saldanhas e tantos outros.

A religiosidade sempre foi esteio do povo, especialmente no meio da miséria econômica. Que o diga Cícero Romão.

O poder da palavra é exponencialmente maior do que o da força bruta, ainda que essa também lhe sirva.

No caldeirão nordestino daquele tempo, podia se dizer que, ao redor do buraco, tudo é beira. ‎

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 03/08/2025 - 04:04h

O Brasil e o quadro “Xeque-Mate” – a esperança na última jogada

Por Marcos Araújo

Friedrich Moritz August Retzsch, em pintura óleo sobre painel, 1831 (Reprodução)

Friedrich Moritz August Retzsch, em pintura óleo sobre painel, 1831 (Reprodução)

Há uma famosa pintura atribuída a Friedrich Moritz August Retzsch, artista alemão do século XIX, intitulada “Xeque-Mate”. A obra retrata uma cena tensa: de um lado da mesa, o Diabo triunfante; do outro, um jovem abatido, desesperançado. No tabuleiro de xadrez entre eles, parece não haver mais escapatória: o Diabo sorri, certo de sua vitória, enquanto o jovem vê todas as peças alinhadas contra ele. Mas, a despeito das aparências, há uma peça esquecida: o rei ainda não foi vencido. Existe uma última jogada.

Esse quadro tem servido, ao longo dos tempos, como metáfora poderosa da luta entre o bem e o mal, entre o desespero e a resistência. E talvez não haja figura mais apropriada para ilustrar o momento que vivemos no Brasil.

Vivemos um tempo em que o tabuleiro nacional parece dominado por forças hostis à racionalidade, à liberdade e ao senso comum. A política se vê encurralada por polarizações que se retroalimentam. A sociedade, fraturada, busca identidade em extremos. E o Direito — última trincheira da civilidade — parece por vezes cooptado por conveniências ideológicas, ativismos institucionais ou silêncios convenientes.

Em nome de causas, esquecem-se os princípios. Em nome da ordem, rasga-se o devido processo legal. Em nome do bem comum, toleram-se abusos que seriam intoleráveis em qualquer democracia madura. O povo — como o jovem do quadro — observa o tabuleiro com crescente desesperança, como se os lances já tivessem sido todos feitos e a derrota fosse inevitável. Mas talvez, como no quadro de Retzsch, o jogo ainda não esteja perdido.

Conta-se que um grande enxadrista, ao observar essa pintura, exclamou: “O jogo ainda não acabou! O rei ainda tem uma última jogada!”.  A observação partira do lendário campeão de xadrez Paul Morphy (1837–1884). Essa frase, que virou quase uma lenda, carrega um ensinamento poderoso: a esperança não está em negar a gravidade do cenário, mas em enxergar além do óbvio. O que parece xeque-mate pode ser apenas aparência — se houver sabedoria, coragem e fé.

O Brasil precisa reencontrar essa última jogada.

Talvez ela esteja na redescoberta dos valores republicanos, na restauração dos freios e contrapesos constitucionais, na recuperação da confiança entre as instituições e os cidadãos. Talvez esteja na sociedade civil, que pode — e deve — abandonar a passividade e exigir ética, técnica e decência na política. Talvez esteja na juventude, nos educadores, nos pequenos atos de resistência ao cinismo e à mentira.

A democracia brasileira não pode ser reduzida a um duelo de torcidas nem a um teatro de vaidades togadas. É tempo de nos lembrar de que o jogo da história nunca está encerrado enquanto houver um povo disposto a lutar, pensar e crer.

Como no quadro de Retzsch, pode parecer que o Diabo venceu. Mas o rei ainda pode se mover. Ainda há uma última jogada…Nas mãos do povo.

Marcos Araújo é advogado, escritor e professor da Uern

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 27/07/2025 - 11:00h

Vai saber?

Por Bruno Ernesto

Amsterdam Tulip Museum Foto: do autor da crônica)

Amsterdam Tulip Museum (Foto: do autor da crônica)

Sempre tive a certeza de que a história pode ser muito irônica. Por vezes, parece até proposital. Não duvidemos. Todavia, embora não acredite muito em coincidências históricas, talvez possa acontecer.

Talvez isso aconteça de propósito para reforçar a célebre frase do filósofo George Santayana, de que “Aqueles que não podem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo”. Se bem que, por vezes, vale a pena. Pelo menos por um instante, afinal a vida é um fluxo e um refluxo.

Por tal razão, é imprescindível que a história registre os momentos cruciais da humanidade. Eis um dos grandes problemas de se compreender a história.

Não se deve estudá-la de modo isolado, como se tal ou qual evento histórico tenha se dado isoladamente, sem considerar o contexto de suas origens e seus desdobramentos, de maneira que é imprescindível que se tenha uma visão global e interconectada entre os fatos, ainda que se analise uma pequena porção e de forma particular.

Afinal, para se compreender a parte, é preciso compreender o todo. Por isso temos os museus, os monumentos históricos e toda sorte de registros históricos.

Quem tem familiaridade com os meus textos – ainda que não os valorize e os leia na surdina – pode perceber que sempre abordo experiências de fato vividas por mim. Ainda que num pequeno trecho deles.

A primeira vez que estive em Amsterdam, a caminho da casa de Anne Frank, na mesma rua Prinsengracht, por acaso avistei do outro lado do canal, o Museu das Tulipas de Amsterdã e, claro, imediatamente lembrei do famoso caso da Crise das Tulipas, considerado o primeiro caso de bolha especulativa da história.

Para quem não lembra, no tempo de Rembrandt, enquanto os holandeses ocupavam o Brasil, produzindo toneladas de açúcar para enviar para uma Europa sedenta dessa especiaria, não se sabe por que cargas d´água, alguém disse que as tulipas eram o novo ouro dos Países Baixos.

Bastou tal previsão mercadológica para, em 1634, iniciar uma descomunal corrida pelos bulbos de tulipa. A loucura foi tão significativa e sem precedentes, que teve quem vendesse todo o patrimônio para investir nesse novo mercado. Inclusive herança de gente viva.

O açúcar – especialmente o saído da região Nordeste brasileira – que outrora era considerado um símbolo de poder e status para quem podia consumi-lo regularmente, dado o seu alto valor de mercado, chegou a ponto de se criar uma horrorosa representação simbólica-social de que ter os dentes careados e pretos por consumir açúcar era o ápice da ostentação.

Todavia, no caso das tulipas, no ano de 1637, bastou um produtor de tulipas dizer que não poderia entregar a produção aos compradores daquele mercado futuro conforme combinado, que o mercado evaporou, causando a ruína imediata de todos os que acreditaram naquele sonho, sendo o impacto tão grande, e a lição tão duradoura, que até hoje os holandeses são vigilantes com as suas economias, embora seja um país economicamente estável, e são ultra céticos em relação a aventuras financeiras.

No nosso caso, após o estouro da bolha especulativa com cheiro de tulipa, o açúcar retomou o seu protagonismo, e, desde então, continua a adoçar nossas vidas.

Aliás, retomando a ironia histórica que suscitei acima, na última semana – de repente, quase como sem razão, sem motivo aparente, sem lógica, sem pé nem cabeça -, eis que o açúcar mostrou o seu lado especulativo, tal qual aconteceu com as tulipas no tempo de Rembrandt.

Tão brilhoso, açucarado, vermelho e saboroso que, tal qual o bulbo de uma tulipa, cabe confortavelmente na palma de nossa mão; e o frenesi em sua busca nas pâtisseries só é comparável ao da Crise das Tulipas.

Todavia, embora carregue no nome um sentimento totalmente intangível, desta vez, tornou-se tangível e real, pelo menos até que alguém diga que não poderá mais entregá-lo como prometido. Não o doce, porém o sentimento.

Se não o mesmo enredo, talvez a mesma história. Vai saber?

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 27/07/2025 - 04:02h

Sob o pé de seriguela

Por Odemirton Filho 

Foto ilustrativa - por Mário Franco

Foto ilustrativa – por Mário Franco

A casa onde eu morava quando era criança ficava na rua Tiradentes, no centro de Mossoró. Na rua por trás, José de Alencar, era a padaria do meu pai. Havia ligação entre a casa e a padaria. Eu passava o dia pra lá e pra cá.

A casa tinha um primeiro andar. No pavimento superior, ficavam os quartos, no inferior, sala e cozinha. No quintal existia uma simples e pequena piscina, onde eu, minhas irmãs, primos e amigos tomávamos banho. Ali, aprendi a nadar.

Havia, também, um frondoso pé de seriguela. Sob a árvore, ficávamos conversando e brincando. Nos finais de semana, juntava-se uma ruma de meninos para tomar banho de piscina e comer as seriguelas. Eu gostava das verdes, minhas irmãs, das maduras.

Às vezes, meu pai reunia alguns familiares e amigos para tomarem umas sob o pé de seriguela. Entre outras músicas, ouvíamos meu pai cantar Nelson Gonçalves, “boêmia, aqui me tens de regresso”, e o Calhambeque, de Roberto Carlos, sua preferida. Eu via emoção em seus olhos, talvez, por relembrar da Mossoró do seu tempo de rapaz.

Meu tio Albecir, da Banda Bárbaros, acompanhava com o violão. Tio Alcides cantava O Menino da Porteira. Tio Ezanildo, lá pra tantas, levantava-se e fazia um discurso. Preocupações da vida? Deveriam existir, é claro. No entanto, curtia-se a vida, como deve ser.

Quando era adolescente convidava um bocado de amigos lá pra casa. Como sabemos, para a juventude tudo é diversão; reunir-se com amigos, paquerar, os namoricos, os passeios sem a responsabilidade da vida adulta.

Certa vez, num comício da vitória de um candidato, tomei uns goles a mais de vodka com Fanta Laranja. Os meus amigos foram me levar em casa e, para não perder o costume, mergulharam na piscina, de madrugada.

Hoje, aqui ou acolá, lembro-me, com saudade, da casa da rua Tiradentes, na qual vivi os dias da minha infância e adolescência. Dos momentos ali vividos forjou-se o homem com inúmeros defeitos e, quem sabe, alguma virtude.

De vez em quando, vem à memória o quintal da minha infância. E eu ainda sinto o sabor das seriguelas.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 20/07/2025 - 13:34h

O velho pescador

Foto ilustrativa extraída da Web

Foto ilustrativa extraída da Web (Depositphotos/arquivo)

Por Odemirton Filho 

“Agora não há tempo para pensar o que você não tem. Pense no que pode fazer com o que tem”. (O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway).

Na beira do mar o velho pescador costurava a sua velha rede de pesca pra passar o tempo. Já não tinha a força da juventude, pois carregava mais de oitenta anos na cacunda. A sua jangada não mais rasgava as águas salgadas; os seus filhos e netos não continuaram no ofício.

Estava sozinho com os seus pensamentos. E não eram poucos. A solidão, dizem, nunca está só, sempre vem acompanhada de muitas lembranças; algumas saudades.

Lembrava das suas aventuras no mar. A água banhando a jangada, o frio da madrugada, a escuridão medonha da noite. Ele e um amigo de profissão precisavam tomar uns goles de cachaça para enfrentar a lida.

Teve medo de tubarões; viu algumas baleias. Aqui ou acolá, ficava vários dias em alto-mar, pescando na embarcação de um conhecido pra melhorar o ganho.

Criou os filhos com o suor do seu trabalho. A comida da casa de taipa era simples. Pela manhã, bebericavam café “preto”, no qual molhavam o pão dormido. Almoçavam, quase sempre, peixe com farinha. À noite, tomavam um caldo ralo.

O lazer era escutar um rádio de pilhas ao lado de sua mulher, ouvindo um programa que tocava músicas que embalavam o tempo de namoro.

Tinham quatro filhos. Um dos filhos é funcionário da prefeitura; o outro vive bebendo pela praia, mas não faz mal a ninguém. O filho mais velho mora longe, raramente vem visitar os pais. A filha embuchou ainda adolescente, tem uma ruma de meninos.

O velho pescador continuou a costurar sua rede de pesca e a prosear:

– O aposento, meu filho, mal dá pra comer. Neste ano de eleição, alguns candidatos vão passar lá por casa, prometendo mundos e fundos, dando tapinha nas minhas costas, pedindo um gole de café, mas já estou passado na casca do alho, não caio mais na conversa desses políticos.

Enfim, vida que segue, apesar dos pesares.  A nossa fé deve ser maior do que os nossos medos. Ouvi essa história numa das belas praias de Areia Branca, nas minhas andanças. E são muitas.

“Agora, cabe ao humilde pescador ficar quieto em sua praia olhando o seu mar, de preferência pela madrugada, sentindo seu mar, pensando seu mar”, diria Rubem Braga.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

*Republicada

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Categoria(s): Crônica
domingo - 20/07/2025 - 09:50h

Na ponte à esquerda

Por Bruno Ernesto

Foto do autor da crônica- 2025

Foto do autor da crônica- 2025

Há uns 4 ou 5 anos, o que seria um irritante engarrafamento antes das 7h da manhã, em plena ponte no centro da cidade, enquanto corria para levar meus filhos para mais um dia de aula, se revelou um grande presente.

Embora estressante, esse momento acabou sendo de uma descoberta incrível.

Avistei penduradas num galho de algaroba, tomando um belo banho de sol, bem na margem do rio Mossoró, duas jovens iguanas. Provavelmente um casal.

Desde esse dia, sempre que passo por lá, diminuo a velocidade e olho, ainda que de soslaio, à esquerda.

Se tiver sorte, pego um engarrafamento e vou lentamente seguindo pela ponte e contemplo essas duas belas iguanas por mais tempo e com mais intensidade.

Às vezes tenho a impressão que ela me encara.

Durante esses anos, poucas vezes não as avistei lá, sempre penduradas no mesmíssimo galhopara pegar mais sol ou para olhar melhor o trânsito e lá permanecem estáticas, adormecidas, quase que anestesiadas, até o “sol esquentar”, como se diz por aqui. Depois somem.

Se fizer tempo de chuva, notei que elas voltam vez ou outra.

Já as fotografei em outras oportunidades, até ficarem adultas; e estão cada vez mais bonitas.

Aliás, para animais herbívoros, estão muito bem cevadas, e desconfio que exista alguma moita de cana-de-açúcar nas proximidades. Só haveria essa explicação.

Nos últimos 3 ou 4 meses, ensaiei parar para fotografá-las novamente, mas a correria sempre cobra o seu preço, e apenas olho e sigo sem parar.

Há um mês, passei novamente decidido a fotografá-las, e assim fiz. Dei a volta, estacionei ao pé da escada da ponte que fica bem atrás do Banco do Nordeste, ajustei a câmera para fazer um registro e me postei bem em frente ao galho.

Dessa vez, só havia uma iguana. Linda como sempre. Procurei pela outra e não a avistei.

Adiei tanto esse registro, que imaginei que ela não voltaria mais, pois nesses anos todos sempre estavam lá, juntas. Naquele dia, não.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 20/07/2025 - 06:44h

Moral e Direito

Por Marcelo Alves

Foto ilustrativa (Web)

Foto ilustrativa (Web)

Miguel Reale, em suas inesquecíveis “Lições preliminares de direito” (Editora Saraiva, 1977), já nos dizia que um dos “problemas mais difíceis e também mais belos da Filosofia Jurídica” era o da relação (e das diferenças) entre a moral e o direito. Como normas disciplinadoras do trato social, a moral e o direito se parecem. Há até quem diga – equivocadamente, frise-se – que “o Direito representa apenas o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver” ou que “o Direito não é algo diverso da Moral, mas uma parte desta, armada de garantias específicas”.

Na verdade, temos, “desde a mais remota antiguidade, pelo menos a intuição de que o problema do Direito não se confunde com o da Moral”, até porque “o Direito, infelizmente, tutela muita coisa que não é Moral”. Mas a moral interessa ao direito nem que seja para chegarmos a uma definição (distintiva) deste como uma ordenação externa (à nossa consciência), exigível e coercitiva da conduta humana.

É do velho Reale que extraio uma definição da moral: “Podemos dizer que a moral é o mundo da conduta espontânea, do comportamento que encontra em si próprio a sua razão de existir. O ato moral implica a adesão do espírito ao conteúdo da regra. Só temos, na verdade, Moral autêntica quando o indivíduo, por um movimento espiritual espontâneo, realiza o ato enunciado pela norma. Não é possível conceber-se o ato moral forçado, fruto da força ou coação. Ninguém pode ser bom pela violência. Só é possível praticar o bem, no sentido próprio, quando ele nos atrai por aquilo que vale por si mesmo, e não pela interferência de terceiros, pela força que venha consagrar a utilidade ou a conveniência de uma atitude. Conquanto haja reparos a serem feitos à Ética de Kant, pelo seu excessivo formalismo, pretendendo rigorosamente que se cumpra ‘o dever pelo dever’, não resta dúvida de que ele vislumbrou uma verdade essencial quando pôs em evidência a espontaneidade do ato moral”.

Se na moral tem-se a interior adesão do espírito a uma regra, no direito, diferentemente, há um evidente caráter de externalidade/objetividade na origem e na existência das suas normas. Elas são estabelecidas pelos legisladores, pelos tribunais e juízes, até por costumes consagrados, mas o são sempre por terceiros, podendo coincidir ou não as suas prescrições com aquilo que achamos legítimo/correto. Podemos discordar da lei, mas devemos agir, mesmo que de “cara feia”, em conformidade com ela.

A despeito do nosso querer, das nossas opiniões, da nossa consciência, ela vale objetivamente. Nas palavras do citado Miguel Reale “há, no Direito, um caráter de ‘alheiedade’ do indivíduo, com relação à regra. Dizemos, então, que o Direito é heterônomo, visto ser posto por terceiros aquilo que juridicamente somos obrigados a cumprir”.

Ademais, se no ato moral temos a adesão espontânea do espírito ao conteúdo da regra, a prática do bem apenas por aquilo que ele conscientemente vale, sem laço de exigibilidade por outrem, o direito implica uma relação objetiva, entre duas ou mais pessoas, juridicamente marcada por esse laço/característica da exigibilidade intersubjetiva. Por essa bilateralidade atributiva, pelo direito, os sujeitos de uma relação podem juridicamente pretender, exigir ou fazer garantir (por meio do Estado, muitas vezes) algo que entendem ser seu.

Por fim, talvez o mais importante, temos a coercibilidade do direito, incluindo as suas múltiplas sanções. Consoante Miguel Reale, “a Moral é incoercível e o Direito é coercível. (…). Coercibilidade é uma expressão técnica que serve para mostrar a plena compatibilidade que existe entre o Direito e a força”. Aliás, a partir dessa concepção, poderíamos até definir “o Direito como sendo a ordenação coercitiva da conduta humana. Esta é definição incisiva do Direito dada pelo grande mestre contemporâneo, Hans Kelsen, que, com mais de noventa anos, sempre se manteve fiel aos seus princípios de normativismo estrito”.

Acredito que, como derradeira norma disciplinadora do trato social, essas características de externalidade, exigibilidade e coercibilidade do direito são fundamentais. Na ausência de um plus, a consciência moral pode não ser tão forte ou eficaz. Afinal, a sabedoria popular já diz que “o medo de ser pego [pelo direito?] é a melhor consciência”, expressando a ideia de que o temor de ser descoberto ou punido é o que muitas vezes guia a nossa consciência moral, impulsionando-nos a agir de forma honesta e correta.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 20/07/2025 - 03:30h

Um conto bem-feito

Por Marcos Ferreira

Inácio tinha 53 anos de idade (Foto: Reprodução)

Inácio tinha 53 anos de idade quando faleceu no domingo passado (Foto: Reprodução)

Terça-feira passada, ao ler um conto do escritor Inácio Rodrigues Lima Neto, delegado da Polícia Civil e colaborador deste Blog Carlos Santos, senti-me inspirado diante da ótima urdidura de Inácio Rodrigues. Então, como há muito eu não faço, falei de mim para comigo e disse: “Vou escrever algo assim para o próximo domingo!” Coisa nenhuma! Fiquei só na vontade, no caqueado.

Sem querer jogar a toalha, sem digerir a derrota, procurei alguns autores e as suas páginas a fim de me livrar da influência do enredo trazido por Inácio, que no final das contas embaçou o meu horizonte criativo.

O referido conto, publicado aqui no Blog no dia 17 de novembro de 2019 sob o título “Memórias em cacos”, vale quanto pesa, conforme o adágio. O danado me pegou mesmo de jeito. Esse causo oferta ao leitor uma história cheia de surpresas e astúcias literárias que nos deixa de queixo caído no seu desfecho. Ouso dizer, sem sombra de dúvida, que se trata de um dos melhores contos já publicados neste espaço, muito embora o autor seja uma espécie de contista bissexto.

Como podem notar, findei entregando os pontos. Não escrevi o que pretendia, contentei-me com louvar o texto de Inácio, cuja narrativa merece ser lida ou relida por todos que acompanham o que se estampa aqui.

De minha parte, quando eu reorganizar a oficina da inventividade, almejo produzir uma peça dessas do chamado gênero short story. Por enquanto, sem lhes apresentar uma crônica propriamente dita e muito menos a ambicionada ficção, considero razoável tecer estes palpites acerca de “Memórias em cacos”. Apesar da ideia de fragmentação, tudo se encontra nos devidos lugares. Recomendo, portanto, a quem não conhece o texto, que procure ler essa escrita do Inácio Rodrigues.

Não se trata de incensar ou adular. Porém (coisa que não dói nem arranca pedaço) apenas parabenizo o autor. Pois se agora me comporto de tal forma é por único e simples merecimento desses bem-articulados “cacos”.

Marcos Ferreira é escritor

*Crônica originalmente publicada no dia 18 de agosto de 2024 no BCS.

Leia também: Delegado da Polícia Civil do RN falece em Mossoró.

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 13/07/2025 - 21:00h

“Dr. Jivago” em três momentos de minha vida

Por Inácio Rodrigues 

Cartaz - Reprodução

Cartaz – Reprodução

Essa crônica foi originalmente publicada no dia 21 de abril de 2024. O texto é de Inácio Rodrigues, bacharel em direito e delegado da Polícia Civil do RN, falecido neste domingo (13) – veja AQUI. A republicação é uma homenagem singela a você, meu caro, lembrando de nossas conversas sobre filhos, família, futebol, amizade, vida, política e paz. A paz definitiva que agora tens, depois de tanto sofrimento. Fique com Deus, Inácio.

Assistir “Dr. Jivago” em três momentos distintos da minha vida foi como ver três filmes diferentes, cada um revelando camadas divergentes, não só da obra, mas também das minhas próprias convicções e experiências pessoais. A primeira vez, aos dez anos, eu vi Yuri Jivago como um herói burguês; aos dezoito, sob a influência da ideologia socialista, julguei-o por outros prismas; e, finalmente, na maturidade, o percebi como um homem dividido entre dois amores, refletindo sobre as complexidades humanas, tendo como pano de fundo a Revolução Russa.

Aos dez anos, minha percepção de “Dr. Jivago” foi pintada com as cores da simplicidade infantil. Yuri Jivago, com sua postura nobre, seu talento para a poesia e medicina, emergiu para mim como um herói quase mítico. O luxo sutil de sua vida antes da revolução, contrastando com a decadência ao seu redor, não me parecia uma questão de privilégio, mas de merecimento, diante do que ele representava.

Via nele a personificação do sucesso individual, um farol de civilidade e cultura em meio ao caos que dominava aquele microcosmo. A Revolução Russa, por sua vez, era o pano de fundo dramático, uma tempestade que desafiava o protagonista a manter sua integridade, sua altivez e posição, frente a uma sociedade profundamente dividida.

Aos dezoito anos, minha visão do mundo estava saturada de ideais socialistas. Reassistindo “Dr. Jivago”, minha empatia pelo personagem principal se transformou em crítica feroz. Enxerguei Jivago não mais como herói, mas como um símbolo da burguesia, cujos dilemas pessoais pareciam triviais frente às lutas coletivas daqueles que a revolução pretendia emancipar e empoderar como seres sociais.

A poesia e o amor, outrora elementos de beleza universal, agora me pareciam indulgências de quem tinha o privilégio de ignorar a luta de classes. A Revolução Russa, em minha interpretação juvenil e até inocente, era o despertar necessário, e Jivago, com sua hesitação e falta de compromisso político, uma figura obsoleta.  Enquanto um sofrimento inominável se desenrolava, ele estava envolto em temas menores, sentimentalismos indefinidos e fúteis.

Na maturidade, minha compreensão de “Dr. Jivago” e de seu protagonista se aprofundou significativamente. Percebi Yuri Jivago não como herói ou vilão, mas como um homem profundamente humano, cuja verdadeira batalha era interna.

Os dilemas amorosos, antes vistos como fraquezas e futilidades, revelaram-se reflexos das contradições que todos enfrentamos. A divisão de seu coração entre Tonya e Lara simbolizava a eterna luta entre o dever e desejo, entre o conforto do conhecido e a paixão pelo desconhecido.

Nesta fase, a Revolução Russa ganhou novas camadas de significados pessoais para mim. Entendi que, além de ser um evento político e social, ela representava as mudanças inevitáveis que todos nós enfrentamos, as revoluções internas que desafiam nossas crenças e valores. Jivago, com sua relutância em abraçar a causa bolchevique, não era mais apenas um símbolo de apatia política, mas um indivíduo tentando preservar sua humanidade em um mundo que exigia escolhas impossíveis e que relegava o eu e suas complexidades ao nada.

REFLETINDO DE MANEIRA BREVE e rasa sobre essas três visões de “Dr. Jivago”, percebi que cada uma delas captura verdades essenciais, não só sobre o filme, mas sobre a natureza humana e a sociedade de cada tempo. Na infância, vi a importância do indivíduo; na juventude, a força do coletivo; e na maturidade, a complexidade das importantes escolhas pessoais em contextos históricos amplos.

Talvez a questão não seja qual análise é a mais correta, mas como cada uma reflete um estágio de compreensão e empatia sobre o filme e o personagem que lhe dá o nome. “Dr. Jivago” é uma obra rica e multifacetada, que oferece diferentes significados a diferentes espectadores, em diferentes momentos de suas vidas. O verdadeiro poder do filme, e de qualquer grande obra de arte, reside em sua capacidade de nos fazer refletir, questionar e, por fim, obter algum nível de crescimento pessoal.

A maturidade, e também problemas de saúde, me ensinaram que a vida, assim como a história, raramente oferecem respostas simples. Yuri Jivago, com suas fraquezas e contradições, é um lembrete de que, em meio às grandes narrativas da história, existem histórias pessoais de amor, perda e buscas por significados próprios da condição humana. E talvez seja na apreciação dessas histórias “menores” que encontramos nossa maior humanidade.

Veja e reveja o filme, na fantástica interpretação de Omar Sharif, Julie Christie, Geraldine Chaplin e Alec Guinness. Imperdível em qualquer época da vida.

Inácio Rodrigues é bacharel em direito e delegado da Polícia Civil do RN

*Baseado no romance de Boris Pasternak, Dr. Jivago é um médico e poeta que inicialmente apoia a revolução Russa, mas, aos poucos, se desilude com o socialismo e se divide entre dois amores: a esposa Tania e a bela plebeia Lara. Lançado em 1965, a fita teve direção de David Lean e trilha sonora de Maurice Jarre. Ganhou cinco Oscars, nas categorias de Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Direção de Arte – A Cores, Melhor Fotografia – A Cores, Melhor Figurino – A Cores e Melhor Trilha Sonora.

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Categoria(s): Crônica
domingo - 13/07/2025 - 13:34h

Comam brioche

Por Bruno Ernesto

Palácio de Bourbon - Paris Foto: do autor da crônica)

Palácio de Bourbon – Paris Foto: do autor da crônica)

Dia 14 de julho sempre foi uma data especial para mim, pois é a data de aniversário do meu saudoso pai.

148 anos antes do seu nascimento, a Bastilha caiu e o médico Joseph-Ignace Guillotin prescreveu a utilização de um mecanismo que, até hoje, é o símbolo da Revolução Francesa.

Em umas das minhas idas à capital francesa, resolvi percorrer a pé toda a extensão da famosa Champs-Élysées, desde o Arco do Trinfo até a Praça da Concórdia.

Não entrei em nenhuma daquelas famosas lojas luxuosas, que você poderia identificar de longe, só pelo aglomerado de pessoas em frente às portas e vitrines.

Assim como a esmagadora maioria deles ali postos, o que me faltava não era tempo. Se bem, que o meu interesse ali era eminentemente histórico.

Quando você conhece algum fato histórico, especialmente aqueles que reverberam até hoje, é muito emocionante quando você tem a oportunidade de ver, sentir o cheiro, os sons e até a textura.

Por mais que você tenha lido ou escutado sobre aquele local ou fato histórico, nada se compara à experiência pessoal.

Disso, podemos ter tantas experiências e produzir tantas outras histórias sob o nosso ponto de vista, que se torna muito mais interessante quando encontramos pessoas que comungam dessa mesma visão de mundo, ou seja, pessoas que se interessam pelo conhecimento que nos enriquece culturalmente. Há certas coisas na vida que dinheiro não compra.

Conversar e conviver com pessoas que agregam cultura e assuntos interessantes é muito importante para o nosso bem estar, além de abrir novos horizontes, perspectivas, visão de mundo e, sobretudo, de ideias.

E quando falo de cultura e conhecimento, não me refiro apenas às culturas e histórias estrangeiras de forma excludente, como se ainda estivéssemos no viés do antigo eurocentrismo – se é que ainda de fato exista, diante das notícias que se revelam nos últimos tempos -, embora inegavelmente grandes rupturas históricas e sociais tenham tido gênese e eclodido no Velho Continente, especialmente no período das grandes revoluções, como, por exemplo, a de 14 de julho de 1789, com a Queda da Bastilha.

Aliás, no mesmo contexto histórico, no dia do meu aniversário, a Assembleia Nacional Constituinte da França aprovou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, outro marco na história dos direitos humanos, com a adoção dos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade que serviram como base de diversas constituições no mundo inteiro.

Embora essas datas sejam mera coincidência, já é um ponto de partida para uma boa conversa.

Dessa maneira, embora o desconhecimento de uma forma geral não deve desmerecer ninguém, há situações nas quais é necessário que sejamos influenciados pelo bom conhecimento, pois todo tipo de conhecimento que agregue algo de bom e útil é valioso. Ainda mais hoje, quando influenciar tem sido sinônimo de degradação cultural e moral.

Isso se reflete vividamente nas pequenas porções de ideias e colocações mal postas e mal interpretadas sobre todos os tipos de assuntos. Especialmente nos embates de posicionamentos ideológicos, desdobrando-se num verdadeiro escárnio sobre questões e contextos históricos, os quais são totalmente subvertidos, quer seja conscientemente para a massa de desconhecedores, quer por eles próprios.

Assim, até hoje se discute se Maria Antonieta, de fato, fez aquela famigerada colocação para que se não tivessem pão, que comessem brioche, o que teria ocasionado a fúria dos franceses e posto a sua cabeça sob a lâmina de Dr. Guillotin, na Praça da Concórdia, no dia do aniversário da minha esposa.

O motivo, afinal, não foi a falta de pão, mas o excesso de brioches.

Bruno Ernesto é advogado professor e escritor

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domingo - 13/07/2025 - 06:28h

Um dia na fazenda

Foto ilustrativa (Web)

Foto ilustrativa (Web)

Por Odemirton Filho 

Um menino nascido e criado na cidade não é acostumado ao dia a dia do campo. No máximo vai a uma fazenda ou sítio de um parente ou amigo. Com aquele menino criado no centro da cidade não poderia ser diferente. Raras vezes foi à zona rural.

O seu mundo era o patamar da Igreja perto da sua casa e as ruas adjacentes, onde brincava com os amigos de infância.

Certa vez, o menino foi a uma fazenda lá pelas bandas do “Junco”. Conheceu, também, uma fazenda do pai de um amigo, na terra dos poetas.

Nunca tinha visto uma mesa tão farta. Café coado e leite quentinhos; tapiocas; queijo de coalho; cuscuz; carne de sol. Comida à vontade. Na cozinha, potes de barro e pilão, entre outros utensílios domésticos.

Foi ao curral. Tentou andar a cavalo; tomou um banho nas águas barrentas do açude. Abriu porteiras. Viu a plantação; o gado pastando. Ficou andando pra lá e pra cá. Sentiu-se quase um Menino de Engenho, do livro de José Lins do Rêgo.

À noite, depois dos adultos tomarem uns goles de cachaça, ficaram deitados nas redes, no alpendre da antiga casa. Uma ruma de meninos ouvindo as conversas dos mais velhos. “Estórias” sobre almas penadas que, aqui ou acolá, assombravam a fazenda.

Dormiram cedo e sentiram o friozinho gostoso da madrugada. Somente a lua e uma fogueira (para espantar os mosquitos) alumiavam a escuridão da noite. Acordaram com o sol raiando; o galo a cantar; a sinfonia dos pássaros.

Para ele, tudo era novidade. Porém, o que mais gostou foi ir de madrugadinha ao curral pra ver a ordenha das vacas e tomar o leite num caneco.

“O leite cru, ao pé da vaca, era quente e gostoso. Tinha gosto de vaca por dentro. Gosto e calor. E espumava no copo”, disse, numa de suas belas crônicas, o velho Antônio Maria.

Foi a única vez que o menino tomou o leite ao pé da vaca.

E ainda sente o sabor.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

*Republicação

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domingo - 06/07/2025 - 05:44h

O atalaia

Por Bruno Ernesto

Foto do autor da crônica

Foto do autor da crônica

Quanto eu era criança, minha mãe me ensinou uma reza poderosa: Santo Anjo do Senhor.

Essa mesmo que, provavelmente, lhe veio à mente neste exato momento; se você tiver uma criação católica.

Quem sabe, quando criança, assim como eu, você tenha rezado amiúde antes de dormir ladeado pelos seus pais, no final de mais um dia puxado.

Quiçá, quando criança, você tenha rezado tão puro quanto um anjo. Sem nódoas na alma e sem se atentar para a maldade que sempre nos espreita. A maldade do gesto, da palavra e do pensamento.

Talvez a ordem delas seja o inverso. Inclusive de grandeza.

Naquele tempo, sempre me perguntava o porquê de tantas rezas e orações contra a maldade.

Depois descobri que não se deve ter receio da maldade. Por incrível que pareça, você até se acostuma com ela.

Ela é muito dócil frente à perversidade. Essa, sim, vem disfarçada das melhores formas que você possa imaginar.

Não confundamos religião e religiosidade. Não por onde, podem ser diametralmente opostas.

Depois, também percebi que um dos motivos de haver tantas orações, rezas e rituais, talvez seja em razão da necessidade de uma certa gradação da proteção espiritual.

Chegados a tal ponto, que o sincretismo religioso passou a ser quase uma necessidade.

Nem mesmo Lampião deixou de exortar o seu bando com suas rezas poderosas, embora tenha tido a filosofia de vida que teve e o fim que levou.

Nem mesmo a Oração da Pedra Cristalina e das Treze palavras Ditas e Retornadas o salvaram.

Mas, quantos livramentos antes do fim se deram? Só ele soube.

Não por onde, o mau agouro vem num sorriso.

Por mais que – aparentemente – se tenha por paradoxal, como dizia Nelson Rodrigues, o inimigo é sempre fiel.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 29/06/2025 - 05:26h

A estrada é o destino

Por Honório de Medeiros

Foto produzida pelo autor da crônica

Foto produzida pelo autor da crônica

Toda estrada é um destino. A estrada é o destino, seja metáfora, seja realidade. É nossa história de vida. O começo e o fim de algo inominado. Essência ou aparência. Ínfimo ou descomunal. Ordem ou caos individual.

Para lá onde fica a beira do abismo, limites do seu terreno pedregoso se encaminhava Seu Petronilo, tangendo uma velha, antiquíssima bicicleta caindo aos pedaços.

Parei o carro ao seu lado. Ele me olhou, ressabiado. Dei um bom dia caloroso e ele respondeu no mesmo tom, com o sotaque da Serra, tirando o velho chapéu de massa, respeitoso, condizente com seus aparentes noventa e tantos.

O Senhor vai tomar que rumo?

Meu Senhor, vou pelas beiradas até o Cabeço, se Deus me deixar.

Então eu tou no rumo certo, seguindo em frente.

Tá sim senhor.

Vou lá agora cedo, porque soube que na ponta da Serra, final do Cabeço, as pessoas têm visto umas luzes estranhas, quando chega a noite alta. Quero assuntar. É assim mesmo?

É sim senhor. Eu mesmo fui pastorar uma raposa, num terreninho que tenho por lá, onde crio uns porcos, coisa pouca, era noite de lua grande, e vi essas luzes coloridas rodopiando no céu, indo e voltando, para lá e para cá, bem umas cinco ou seis. Uns caçadores que tavam por perto também viram.

O Senhor teve medo?

Medo mesmo não, porque se tá no mundo é porque Deus quer, até me benzi umas tantas vezes, mas achei meio fora do conforme. Durou um bom pedaço. E eu olhando pro céu, me perguntando o que danado era aquilo.

No final deu tudo certo, não foi?

Mais ou menos. Enquanto eu cuidava das luzes no céu, a raposa cuidou dos meus porquinhos…

Não tive como não rir. Ele riu também, colocou o chapéu na cabeça, pediu licença e tangeu a bicicleta, tomando destino, firme e forte como as rochas que abundam no Cabeço.

Bom dia, Seu Petronilo, fique com Deus.

O Senhor também!

Honório de Medeiros.

Quinta da Aroeira, Cerro, 22 de junho de 2025.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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domingo - 22/06/2025 - 11:38h

O Napoleão das letras

Por Marcelo Alves

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Honoré de Balzac (1799-1850) foi um gigante. Como anota François Taillandier na biografia “Balzac” (L&PM, 2009), “em trinta anos de trabalho duro, assombrado pelas preocupações com dinheiro”, Balzac “publicou A comédia humana, monumento romanesco sem igual”; foram “quase uma centena de romances, novelas e contos”, que deram “vida a dezenas de personagens que se transformaram em mitos”.

Suas obras-primas – “A pele de Onagro” (1931), “Eugènie Grandet” (1833), “O Pai Goriot” (1834), “O Lírio do Vale” (1835), “César Birotteau” (1837), “As Ilusões Perdidas” (1837-1843), “A Mulher de Trinta Anos” (1842), “Modesta Mignon” (1844), “O Coronel Chabert” (1844), “A Prima Bette” (1846), “O Primo Pons” (1847), “Esplendores e Misérias das Cortesãs” (1838-1847) e por aí vai –, compondo a “Comédia”, provam o que dizemos, o biógrafo Tallandier e este que ora vos escreve. Foi o “Napoleão das letras”, nas palavras de Paul Bourget (1852-1935), e isso já diz tudo.

Há muitíssimo para se falar de Balzac. Mas não sou um Paulo Rónai (1907-1992). E vou me ater a comentários sobre o direito na vida e na obra do autor de “A comédia humana”.

De fato, desde 1816, Balzac viveu às voltas com o direito. Estudou essa ciência dentro e fora da Sorbonne. Embora aluno “desinteressado”, obteve o então baccalauréat (1819). Também militou em escritório de advocacia e em tabelionato à época, antes de se dedicar à literatura, conforme anotado por Claire Bouglé-Le Roux em “La littérature française et le droit: anthologie illustrée” (LexisNexis, 2013).

Os pais gostariam que ele seguisse carreira no tabelionato. Ilusões perdidas. Ele não queria viver a labuta enfadonha dos juristas, mesmo ganhando algum dinheiro. Causou desgosto aos genitores e, para nossa felicidade, fez-se escritor.

A experiência prévia no direito não foi perdida para a literatura. Esses anos de formação tiveram grande influência sobre Balzac. Foi durante essa primeira jornada direito adentro que ele começou a entender alguns mistérios da natureza humana. Aliás, em “O notário” (1840), obra de madureza, ele sugere que um jovem profissional do direito, dentre outras coisas, logo vê as rodas e as voltas de cada fortuna, a disputa de herdeiros sobre os despojos de corpos ainda não frios e almas sempre às voltas com o Código Penal. Alguém tem dúvida disso?

Balzac foi um homem da era do Código. Falo do “Code Napoléon” ou “Code civil des Français”, de 1804, um monumento em si mesmo. E o ensinamento do direito, à sua época, focava na exegese da famosa lei civil (vide a Escola da Exegese). Na verdade, embora ele tenha certa vez se referido ao “infame Código Civil de Buonaparte”, Balzac até desenvolveu uma fixação pelos códigos e suas estruturas, daí os seus “Code gourmand”, “Code de la toilette”, “Code conjugal”, “Code de gens honnêtes” etc., ressalta Claire Bouglé-Le Roux.

Para nós, curioso é o “Código dos homens honestos ou A arte de não se deixar enganar pelos larápios”, que possuo em edição da Nova Fronteira, de 2005. Não é um código à maneira como conhecemos, mas, sim, “um livro de autoajuda avant la lettre.

Funciona como uma espécie de introdução temática ou nota de pé de página antecipada (se pudéssemos inverter a cronologia do autor) ao que viria depois, ou seja, aos grandes romances como Eugénie Grandet (seu primeiro sucesso, de 1833), O pai Goriot (talvez a melhor introdução à Comédia humana), Ilusões Perdidas e Esplendores e misérias das cortesãs, além dos demais títulos que viriam a compor este imenso painel de romances do século XIX que é A comédia humana”.

Já em “Imaginar la ley: El derecho en la literatura” (Organização de Antoine Garapon e Denis Salas, Editorial Jusbaires, 2015), Gérard Gengembre, no artigo “Balzac, o cómo poner el derecho en ficción”, diz: “A comédia se apoia constantemente nos artigos do Código”. E Napoleão é um tema capital na obra de Balzac: “Napoleão se impõe como o instigador principal dessa sociedade imaginária de dois mil e quinhentos personagens, que imita e interpreta a sociedade real forjada pela Revolução e pelo Império”.

Mas não pensem que o “Napoleão das letras” era um exegeta radical, no sentido de achar que todo o direito estaria no Código. Como diz Claire Bouglé-Le Roux, “o princípio da existência de um direito superior está no coração da introdução [L’avant-propos] da Comédia Humana”. De vero, nas palavras do amigo Théophile Gautier (1811-1872), “Balzac descobriu poemas e dramas no Código”. Quer mais?

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 22/06/2025 - 10:32h

Areia Preta

Por Bruno Ernesto

Foto do autor da crônica, com tela de sua produção no ano de 2005 (Reprodução do BCS)

Foto do autor da crônica, com tela de sua produção no ano de 2005 (Reprodução do BCS)

Trabalhos manuais são terapêuticos demais. Acalma, distrai, socializa e nos mantém ativos, física e mentalmente. Desde a adolescência gosto de pintar. Por isso meu grande interesse por artes visuais. Nada melhor que visitar museus, exposições e ter muita arte em casa.

Além de embelezar e dar vida e personalidade ao nosso sagrado lar, é um bom ponto de partida para muitas conversas.

Embora há uns anos não tenha mais pintado nenhuma tela a óleo, por volta do ano 2005, pintei uma pequena tela de uma onda arrebentando na praia, e é muito especial para mim.

A inspiração para pintá-la foi o fato de passar todos os dias pela praia de Areia Preta, em Natal, quando meu escritório era em Petrópolis.

Para encurtar a distância entre Ponta Negra e Petrópolis, ia pela Via Costeira e iniciava mais um dia de trabalho com a belíssima vista do mar, com o sol despontando naquele mar sem igual.

Bem onde atualmente se denomina a praia de Miami, quando é baixa-mar, ao se passar por lá de manhã bem cedo, o reflexo do sol, faz da película d´água da praia de um grande espelho, destacando as rochas lá existentes. É belíssimo.

Talvez poucas pessoas dêem importância àquela beleza natural. De fato, quando se mora no local, a correia do dia a dia acaba nos deixando meio que anestesiados com relação aos detalhes que a nossa cidade tem.

Lembro que meu pai me falou que foi lá que ele viu o mar pela primeira vez, no início dos anos de 1960.

Estamos nos acostumando – e mal – a deixar de lado as coisas simples, como parar e contemplar.

Afora a Via Costeira, os prédios na orla e os espigões, a praia de Areia Preta continua belíssima, vigiada pelos olhos do Farol de Mãe Luíza.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 15/06/2025 - 07:38h

Viaje, viaje

Por Odemirton Filho

Arte ilustrativa

Arte ilustrativa

A famosa canção Voyage, Voyage, da francesa Desirelees, foi lançada no ano de 1986 e é um clássico internacional. A letra da música nos instiga a viajar, não só fisicamente, mas de forma metafísica, onírica. Na verdade, é uma fuga, uma fuga das convenções, das amarras do mundo, as quais nos fazem ficar aprisionados no nosso pequeno universo.

Ficar “acima dos vulcões antigos”, “das nuvens aos pântanos”. Ou seja, impulsiona-nos a sair da mesmice, a procurar a ampla liberdade do nosso ser. Se viajar fisicamente de um lugar a outro é deveras prazeroso, e nos faz bem, viajar por nossa alma faz repensar valores e atitudes. Quem já não pensou em “chutar o balde” e tomar outro rumo na vida?

“Voando nas alturas”, é certo, conseguimos alçar outros lugares, outro modo de encarar a vida. Infelizmente, porém, poucos conseguem fazer esses voos. Vivemos presos ao dia a dia, a rotina que nos impede de sermos verdadeiramente livres, leves e soltos.

A busca de nossos objetivos, decerto, deve nos guiar, procurando aquilo que nos faz bem; bem ao corpo e, sobretudo a alma, diga-se.

Viajar “acima das capitais” e “das ideias fatais”. Ideias fatais que estreitam o pensar. Aliás, no mundo contemporâneo vivemos a era do extremismo, de ideias prontas e acabadas, do maniqueísmo entre direita e esquerda. Não há espaço para o plural, para o bom debate. O radicalismo preside as discussões, a falta de bom senso salta aos olhos, perdeu espaço.

“Viaje pelo espaço extraordinário do amor”. O amor que se apresenta em todas as suas formas, seja entre pais, filhos, netos ou o amor daquela pessoa que divide os nossos dias, construindo um futuro. É nesse espaço extraordinário que devemos viver.

Livrar o nosso ser daquilo que nos impede de viver verdadeiramente, sem se importar com o que as pessoas pensam sobre nós. Cada um deve viver, “viajar”, da forma que lhe aprouver, desde que não cause mal a ninguém, principalmente àqueles que queremos bem.

Pois é, viaje, viaje.

“Viaje mais longe do que a noite e o dia”. Permita-se visitar o horizonte.

Odemirton Filho é colaborador do Blog do Carlos Santos

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domingo - 15/06/2025 - 05:34h

Fogo Morto

Por  Bruno Ernesto

Fazenda Canaçu em Florânia-RN Foto: Bruno Ernesto)

Fazenda Canaçu em Florânia-RN (Foto: Bruno Ernesto)

Quem anda pelo Sertão nordestino, inevitavelmente avistará belos casarões antigos que refletem a arquitetura portuguesa dos séculos XVII, XVIII e XIX, que influenciou toda a colonização na região, com fortes traços barrocos.

Sua arquitetura é plenamente adaptada ao clima quente e seco, com uso de paredes espessas, ladrilhos, telhados amplos, altos e bem inclinados, meia-parede dividindo os cômodos internos, janelões, frontões e construídas basicamente com materiais locais, devidamente caiadas.

Eram, sobretudo, casas simples. Todavia, funcionais para o dia a dia, e que refletiam a economia local, baseada na agricultura e pecuária.

Muitas dessas construções são testemunhas de um tempo que se foi e que agora servem apenas de boas lembranças e de registro histórico.

Embora pouquíssimas dessas construções históricas estejam bem preservadas, o que vemos e esperamos num futuro próximo é desolador.

Se você observar bem, nos centros urbanos, esses casarões, quando não abandonados à própria sorte, somem do dia para noite sem deixar rastro.

No Sertão adentro, a morte desses casarões pode até ser mais lenta. Entretanto, em breve, findarão.

Infelizmente o que vemos nos últimos tempos é que uma combinação de fatores sociais, econômicos e de estilo de vida, praticamente selaram o fim desse estilo arquitetônico.

O intuito e urgência hoje é preservar esses tipos de construções. Se não por inciativa dos seus proprietários, com iniciativa estatal e vigorosos e perenes incentivos governamentais, inclusive de isenção de tributos e linhas de crédito específicas e acessíveis para quem se disponha a tanto.

Inclusive, é uma modalidade de turismo já sedimentada em outras regiões, e que serve como modelo econômico alternativo para regiões sem outros atrativos turísticos, podendo ser criadas verdadeiras rotas históricas, unindo preservação com desenvolvimento econômico sustentável na região.

Além de não haver muito interesse na preservação desse patrimônio histórico, ante o seu alto custo, o estilo de vida moderno tem imposto, além de uma nova cultura social e econômica, outros estilos arquitetônicos mais voltados ao modismo vazio que, sequer, respeitam as condições climáticas, além de não guardar nenhum apego à história local.

O que se vê hoje são construções padronizadas e totalmente vazias de personalidade. Não se espera mais nem que o jardim cresça naturalmente. As plantas já vêm crescidas e ali se planta.

Uma característica fácil de se constatar nessas construções contemporâneas, é que não há nenhum vínculo de memória afetiva nelas, não há qualquer vínculo de memória e história entre a construção e seus habitantes.

Basta ver que quem decora não são os moradores. Terceiriza-se até a despersonalização da casa. Não há uma fotografia, uma mobília ou recordação.

Assim, tal qual Fogo Morto, derradeiro livro de José Lins do Rego, que encerrou o seu “ciclo da cana-de-açúcar”, ao narrar o declínio do Engenho Santa Fé, essa chama não tardará a se apagar dos nossos Sertões.

Bruno Ernesto é é advogado, professor e escritor

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domingo - 08/06/2025 - 04:18h

Sebo Vermelho

Por Bruno Ernesto

Interior do Sebo Vermelho Foto: Bruno Ernesto)

Interior do Sebo Vermelho Foto: Bruno Ernesto)

Na última visita que fiz ao amigo Abimael Silva, no dia 20 de dezembro de 2024, matei a saudade daquele templo da cultura, leitura e resistência, encravado ali na outrora tão prestigiada Avenida Rio Branco, no centro velho de Natal.

Conheci Abimael em 2000, quando estagiava no Edifício 21 de Março, na rua Vigário Bartolomeu, no bairro da Cidade Alta, nos fundos da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação.

Reputo que essa temporada na cidade alta foi determinante para a minha formação cultural.

Ali conheci e fiz amizade com muitos escritores, professores, artistas, intelectuais e outras personalidades que são referência para a cultura de Natal e do nosso estado.

Entre um intervalo e outro, na chegada ou na saída, sempre ia ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Instituto Câmara Cascudo, Igreja do Galo, Pinacoteca, Capitania das Artes, Beco da Lama e, claro, batia o ponto no Sebo Vermelho.

Conheci uma turma interessantíssima numa cigarreira chamada Caixa de Fósforo, que era tocada pelos irmãos Medeiros e Valdir, ambos com bigodes vistosos e milimetricamente cuidados, localizada na rua Princesa Isabel, que era o ponto de encontro.

Andava a Ribeira inteira. Conheço cada canto da Cidade Alta e da Ribeira.

Após tantos anos, praticamente apenas o Sebo Vermelho resiste naquela avenida que vai expirando a cada dia, embora ainda traga viva na memória a visão e os sons de um tempo tão pulsante daqueles anos oitenta da minha querida cidade Natal.

O encontro foi maravilhoso e produtivo. Saí de lá com uma parceria literária para publicar pelo selo Sebo Vermelho, a convite de Abimael, que manifestou sua vontade de vir à Mossoró com brevidade.

Aproveitei a ocasião e tentei convencê-lo a me vender uma belíssima escultura que é de autoria Dimas, um amigo dele de Acari – já falecido – e que está posta bem no meio do salão.

Não o convenci, ainda. Mas, de outra sorte, ele me mostrou preciosos exemplares de livros com assuntos que muito me interessam, especialmente sobre a história do Rio Grande do Norte.

Aliás, graças à sua dedicação e persistência, muitos títulos preciosíssimos foram publicados e outros tantos republicados, difundindo e preservando nossa história local, notadamente da cultura sertaneja, de modo que podemos considerá-lo um patrimônio imaterial por sua inegável importância cultural e histórica.

Conversamos por mais de hora, enquanto Abimael fazia uma retrospectiva de sua missão como sebista e editor.

Embora a cultura do sebo venha perdendo espaço nos últimos anos, tal qual o próprio hábito da leitura, o Sebo Vermelho mantém um público fiel e jamais perdeu a sua essência e, sem dúvida, já tem o seu nome escrito na história.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 01/06/2025 - 10:10h

Tive medo

Por Honório de Medeiros

Foto em Natal, do autor da crônica

Foto em Natal, do autor da crônica

Nessa rua, da qual somente se percebe um vislumbre, durante o dia raros sãos os pedestres e mais ainda aqueles carros ansiosos, a passarem velozes, em sua busca frenética e atormentada.

Suas poucas casas, inclusive as comerciais, têm grades. Os vizinhos, poucos – ainda os há – não se conhecem, me disse o vigilante que a percorre durante a noite portando um apito, e, na cintura, um cassetete de madeira, para amedrontar os incautos.

Nunca vi crianças correrem em suas calçadas, gritando uma com as outras, brincando despreocupadas, vigiadas por pais amorosos a conversarem serenos, como ocorria na minha meninice.

Entretanto, outro dia vi uma criança grande dormindo no chão. Quis confortá-lo, mas tive medo.

Natal, algum dia de 2024.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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domingo - 01/06/2025 - 09:56h

Vida e arte em Nuremberg

Por Marcelo Alves

Foto com alguns dos principais criminosos nazistas (Reprodução da Web)

Foto com alguns dos principais criminosos nazistas (Reprodução da Web)

Por estes dias, enviei um artigo para a revista da Academia de Letras Jurídicas do Rio Grande do Norte – ALEJURN analisando, de uma forma mais extensa do que é possível num espaço de jornal, o filme “Julgamento em Nuremberg” (“Judgment at Nuremberg”), de 1961.

Um clássico dos “filmes de tribunal”, do ponto de vista cinematográfico, “Julgamento em Nuremberg” é simplesmente uma película fantástica. Sob a direção de Stanley Kramer, é protagonizado por gente do top de Spencer Tracy, Burt Lancaster, Marlene Dietrich, Judy Garland, Montgomery Clift, Richard Widmark, Maximilian Schell, Werner Klemperer e William Shatner, entre outros. Em 1962, ele foi indicado a onze estatuetas do Oscar, entre elas as de melhor filme, melhor direção, melhor roteiro adaptado, melhor fotografia, melhor direção de arte, melhor ator (duas vezes) e por aí vai.

Levou dois prêmios, melhor ator (Maximilian Schell) e melhor roteiro adaptado (para Abby Mann), aos quais se somaram alguns globos de ouro. Ao mesmo tempo “film d’acteurs” e “film à thése”, “Julgamento em Nuremberg” dramatiza um acontecimento verídico – na verdade, uma parte dele, e mesmo assim com muita liberdade, já que estamos falando de ficção –, o “julgamento dos juízes” pós-2ª Guerra Mundial, em que, embora não fossem eles as maiores autoridades do sistema de justiça nazista (estas estavam já falecidas), nove membros do Ministério da Justiça do Reich e sete membros de tribunais do povo e de tribunais especiais foram acusados de abusar dos seus poderes de promotores e juízes para cometer crimes de guerra e crimes contra a humanidade, fomentando e autorizando a perseguição racial e horrendas práticas de eugenia, entre outras coisas, levando à prisão e à morte inúmeros inocentes.

O julgamento durou de 5 de março a 4 de dezembro de 1947. Dez dos acusados foram condenados, quatro absolvidos e dois acabaram não julgados.

E foi com a repercussão do envio do artigo que mais uma vez observei algo curioso na relação arte e vida, ficção e fato. Embora o “julgamento dos juízes” não tenha sido nem de longe o mais importante dos julgamentos então acontecidos na cidade de Nuremberg, ele é hoje, pela força de Hollywood, um dos mais badalados. A versão supera os fatos; a arte, muitas vezes, a vida.

De fato, os “julgamentos de Nuremberg”, decorrentes dos horrores acontecidos na 2ª Guerra Mundial, começaram em 20 de novembro de 1945 e terminaram em 13 de abril de 1949. O principal julgamento, o primeiro deles, teve fim em 1º de outubro de 1946 e concentrou-se na suposta cúpula do regime nazista. Vinte e quatro líderes foram indiciados/denunciados, vinte e um réus acabaram sendo ali julgados, gente como Hermman Goering, Ruldof Hess, Joaquim von Ribbentrop, Alfred Rosenberg, Albert Speer e Franz von Papen, que dispensam apresentações, e até militares como Erich Raeder, Wilhelm Keitel, Alfred Jodl e Karl Dönitz.

A ideia, deveras louvável em termos civilizatórios, era de que, com esses julgamentos, os nazistas seriam severamente punidos, mas de uma maneira digna, o que serviria de exemplo para a posteridade. Como lembra Paul Roland (em “The Nuremberg Trials: the Nazis and their Crimes against Humanity”, Arcturus Publishing, 2010), “os julgamentos não fizeram do mundo um lugar mais seguro, nem eles erradicaram a injustiça, a perseguição religiosa e racial, a escravidão, a tortura e o genocídio. Entretanto, os julgamentos de Nuremberg estabeleceram um precedente no sentido da punição dos responsáveis por crimes que a comunidade internacional considera intoleráveis – onde e por quem quer que eles tenham sido cometidos. Depois de Nuremberg, nenhum chefe de Estado pode alegar estar acima do direito e indivíduos não podem mais evadir-se de suas responsabilidades escondendo-se atrás da impessoalidade da administração à qual serviram. A limpeza étnica, a guerra selvagem e os responsáveis por esses males/crimes são agora puníveis sob o direito internacional. Nós agora temos claros códigos de conduta onde uma vez havia incerteza e ambiguidade. Militares não podem mais alegar que foram forçados a cometer crimes sob coação, nem podem se fiar na [antes tão comum] tese de que foram simplesmente obrigados a cumprir ordens superiores”.

Embora tenha sido apenas no primeiro julgamento que as quatro grandes potências aliadas (EUA, Reino Unido, França e União Soviética) estiveram oficialmente representadas com seus respectivos julgadores, subsequentemente, a partir de 9 de dezembro de 1946, foram levados a cabo, pelos americanos, mais doze julgamentos de criminosos de guerra nazistas de suposta menor relevância. E o nosso real e dramatizado “julgamento dos juízes” foi, anote-se, apenas um deles.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 01/06/2025 - 09:28h

Guardar

Por Odemirton Filho

Arte ilustrativa

Arte ilustrativa

De vez em quando eu leio, ou melhor, releio o poema Guardar (veja AQUI e em vídeo mais abaixo), de Antonio Cícero, e fico impressionado com a sensibilidade dos versos e a leveza das palavras.

O que é guardar na visão do poeta?

Guardar é observar, olhar, cuidar. Quando guardamos alguma coisa em um cofre perde-se a coisa à vista. Em seu poema, ele fala sobre o ato de preservar o que é importante, de encontrar sentido na permanência da coisa.

E nós? O que verdadeiramente guardamos? Guardamos os momentos a dois? Desfrutamos do amor, nem que seja por um instante? Guardamos a companhia das pessoas que nos fazem bem? Fazemos a vida valer a pena?

Pense. Pensemos.

Toda vez que eu leio sobre alguém que tira a sua própria vida, sobretudo se for jovem, bate-me uma profunda tristeza. Fico a remoer o quão àquela pessoa sofreu, mergulhada nos problemas d`alma. E Antonio Cícero, autor do poema que ora se desnuda, tirou a sua própria vida. Porém, quem somos nós para julgar essas pessoas?

Assim, guardar a nossa vida é iluminá-la, e por ela ser iluminado, procurando sentido para os nossos afazeres, fazendo o cotidiano ficar interessante, vivo, pulsante, apesar das dificuldades que todos nós carregamos sobre os ombros.

Quando escrevemos, escolhemos cada palavra como se fosse uma flecha que quer atingir o alvo, o coração e o sentimento das pessoas que nos leem.

Por isso, como diz Cícero, quando publicamos um texto ou declamamos um poema, queremos vigiá-lo, guardá-lo, com enorme carinho e devoção.

Como diz o poeta:

“Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro, do que pássaros sem voo”.

Não é lindo o voo de um pássaro?

*Antônio Cícero – (1945-1924) foi poeta, crítico literário, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
domingo - 01/06/2025 - 09:02h

Medo de viajar

Por Bruno Ernesto

Caixa d´água no campus da Ufersa em Mossoró Foto: Bruno Ernesto)

Caixa d´água no campus da Ufersa em Mossoró Foto: Bruno Ernesto)

Eram os Deuses astronautas?

Todos nós, indistintamente – sim -, ao menos uma vez na vida, já se perguntou se, de fato, estamos sós no universo.

Muito além de uma questão filosófica, ou mesmo de cosmovisão, no fundo, tem quem não acredite, mas não duvida.

A bem da verdade, certamente você pode ter alguma simpatia por astrologia. Talvez seja a gênese da dúvida.

Embora a pergunta aparentemente conduza a uma resposta científica, talvez a dúvida seja o seu maior segredo.

Quando surgem boatos de avistamentos de fenômenos e objetos inexplicáveis, parece que essa dúvida reacende como um rastilho de pólvora.

Com o avança da inteligência artificial na manipulação e criação de imagens, ficou praticamente impossível frear qualquer tipo argumento sobre a veracidade ou não desses fenômenos.

Melhor, portanto, seria deixar que a imaginação siga o seu curso natural, especialmente na ficção científica, quer seja na literatura ou no cinema. Estamos todos cansados da realidade. Aliás, para quê tanta realidade?

Desde que me entendo por gente, avisto uma caixa d´água localizada no campus da Ufersa, erguida praticamente em frente ao antigo clube Scream, local onde os professores da antiga Esam frequentavam todos os finais de semana e, com os amigos e familiares, tinham num momento de lazer na Mossoró das décadas de 1980 e 1990.

Contava os dias da semana para poder ir tomar banho de piscina, mas também aguardava esse dia para poder olhar novamente aquela enorme caixa d ´água, num formato de disco voador, posta numa única coluna de concreto e a pintura caiada já toda desbotada, dando-lhe um aspecto ainda mais sinistro quando saíamos no final do dia, e mais pavoroso ainda, à noite.

No auge dos meus oito ou dez anos, aquela imagem não me apavorava. Pelo contrário, ficava impressionado, ainda mais quando vivíamos a febre do filme ET, de Steven Spielberg.

Naquele tempo, aquela caixa d´água de formato incomum, ficava praticamente solta ali, no meio do nada, e meio que surgia como que sobrevoando todo aquele matagal da Ufersa, como se em busca de abduzir quem ali passasse.

Nesses quarenta anos, a pintura está exatamente como na minha infância.do mesmo jeito e, embora hoje a minha mente tenha um pouco mais de lógica – apenas para parte do dia -, sempre quando passo por ela tenho aquela mesma impressão de outrora. Especialmente à noite.

Zé Ramalho, não está de um todo errado ao dizer que muita gente vai “Rebuscando a consciência com medo de viajar. Até o meio da cabeça do cometa. Girando na carrapeta no jogo de improvisar. Entrecortando, eu sigo dentro a linha reta Eu tenho a palavra certa pra doutor não reclamar. Não reclamar!”

A bem da verdade, melhor não duvidar.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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