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domingo - 04/08/2024 - 05:50h

Meu gato preto da sorte

Liev em momento de relaxamento Foto do autor)

Liev em momento de relaxamento (Foto do autor)

Por Bruno Ernesto

Dizem que há um dualismo no mundo dos animais de estimação. Seria, a bem da verdade, quase um maniqueísmo, uma verdadeira luta entre o bem e o mal.

Para ser bem direto, desde já, caro leitor, devemos considerar o fato de que o maniqueísmo é uma forma simplista de ver o mundo, como se pudesse haver apenas duas categorias antagônicas. Ou é do bem ou é do mal.

Em verdade, não passa de uma forma deficiente de pensar o mundo e daí nasce toda sorte de intolerância, pois nada mais é que, senão, a total aversão à compreensão do que é complexo, do pensamento elaborado, em especial o filosófico e científico.

Diante disso, infelizmente, muitas pessoas caem na vala comum da ignorância; uns por preguiça, outros por aversão, e alguns, por pura conveniência.

Sempre gostei de animais de estimação. Entretanto, quem me conhece sabe da minha paixão por felinos. E desde que me entendo por gente, crio gatos.

Atualmente tenho seis persas: Wladek, Szpilman, Halina, Natalya, Lola e Liev. Cada um com suas peculiaridades. A começar pelos nomes.

Wladek e Szpilman, os gêmeos amarelinhos inseparáveis, vieram do livro “O Pianista”, de autoria do polonês Władysław Szpilman.

Halina, era irmã de Władysław Szpilman. Ela foi morta pelos nazistas no campo de concentração de Treblinka, localizado na Polônia, durante a Segunda Guerra Mundial; infeliz destino de toda a sua família, e de milhões de judeus durante o Holocausto.

Lola, é o diminutivo de Lolita, a famosa personagem do romance de Vladimir Nabokov. Ela é a provocadora.

Natalya, ou Natasha Rostova, é a personagem principal do livro “Guerra e Paz”, de Liev Tosltoi.

Liev, ficou fácil deduzir.

Assim como qualquer gato, cada um tem um comportamento diferente. Não, nenhum é esnobe ou indiferente comigo.

Todos os dias quando saio do quarto de manhã cedo, sou recepcionado por todos. Cada um deles tem o seu ritual de bom dia. Apenas me sento para ficar mais próximos deles.

Wladek gosta de sentar no meu colo, amassar pãozinho ronronando e depois tira um cochilo, enquanto Szpilman fica num vai-e-vem nas minhas pernas pedindo carinho.

Halina fica tocando no meu braço pedindo cafuné e adora me lamber com a sua língua áspera. E embora algumas vezes dê agonia, não a reprimo, pois é um sinal de muita confiança e carinho do gato. Além do mais, ultimamente ela fica me olhando com a ponta da língua pra fora de um jeito engraçado.

Lola, a caçula, ainda é um tanto arredia. Sempre desconfiada e fujona. O segredo para ela relaxar, é sempre escová-la.

Ela elegeu o sofá como o campo neutro para os carinhos. Quando quer carinho, sobre no sofá e mia.

Natalya, a minha persa exótica de pelo curto, é a mais carente. Sua meta diária é andar atrás de mim exigindo carinho. De outra sorte, retribui com vigorosos amassados de pãozinho. É minha massagista particular.

Por fim, Liev, é o meu gato preto da sorte. É o macho alfa da gataria.

De personalidade marcante, revelou-se o mais carinhoso de todos. Já beirou os sete quilogramas.

Tem um murmúrio peculiar e engraçado. Quando quer brincar, de longe escuto e, logo em seguida, vejo aquele vulto preto correndo sem controle. Se descuidar, ele atropela quem estiver pela frente e pula no seu beliche.

Adora um ar condicionado e é o único que tem permissão para, vez ou outra, entrar no quarto enquanto me apronto para sair. Os demais sequer cruzam a porta do quarto, ainda que deixe a porta aberta por alguns instantes. Já se acostumaram.

Embora cuidar deles exija uma rotina diária de limpar os olhos, pentear, escovar, alimentar e dar atenção, não considero trabalho. É uma terapia.

Apesar da injusta fama sobre o comportamento dos gatos, acredite, é bem melhor conviver com eles que com certas pessoas.

Quanto à dualidade e o maniqueísmo que mencionei acima, em se tratando dos animais de estimação mais usuais – cães e gatos – tudo deveria se resumir à predileção, uma vez que a injusta má fama de interesseiros e indiferentes dos gatos, não passa de um mito e crença popular, tal qual com a má fama e mau agouro do gato preto que, infelizmente, ainda existe.

Para mim, todo gato dá sorte, especialmente Liev, meu gato preto da sorte.

Se você tem azar, não terceirize a culpa para os gatos pretos, afinal, ninguém tem culpa de suas escolhas.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 28/07/2024 - 12:04h

Padre Sátyro e a pelada no Patamar da São Vicente

Por Jânio Rêgo

Tela do artista Laércio Eugênio

Tela do artista Laércio Eugênio

Todos os pais sabiam da implicância de Padre Satyro com a “pelada” no Patamar da Capela de São Vicente. Fazia preleção, exortava, queixava-se nas missas aos domingos.

A missa era a sua quase exclusiva obrigação litúrgica como capelão, não fosse uma novena a Santo Antônio que surgira após a famosa Resistência a Lampião. As novenas eram até divertidas, havia o incenso, o ora pro nobis e, às vezes, até quermesses além das procissões curtas e rápidas.

Padre Satyro não era de muito bolodoro católico. Mas no caso do jogo ele pegava no pé, que as bolas afrouxavam os ferrolhos das portas do templo, que atingia o reboco e a pintura das paredes, que pegava mal para a Capela. Era carão duplo em quem fosse também aluno do Diocesano, pois ele não deixava passar: “essa turma da São Vicente…”.

Os adultos, nas missas, ouviam e calavam-se. Quem ousaria privar dezenas de meninos e meninas, filhos, netos e bisnetos, de usar um patamar para o que conviesse nos dias ensolarados e chuvosos de Mossoró grande?

Nem a mais fiel beata encampou algum dia a campanha do padre que chegou a ser obsessiva e até policialesca: um dia ele pediu ao Delegado para dar um jeito naquilo. Clodoaldo usava um chapéu de massa, era careca, homenzarrão, dirigia um jeep em rondas pela cidade, e chegou a tomar algumas bolas na São Vicente, mas desistiu depois de alguns dribles que levou da meninada em pleno Patamar.

O jogo acabou-se por si, duas gerações depois dessa que lembro.

Jânio Rêgo é jornalista

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domingo - 28/07/2024 - 09:52h

O historiador comparatista

Por Marcelo Alves

Livro em coleção especial da Universidade de Brasília (Foto: Reprodução do BCS)

Livro em coleção especial da Universidade de Brasília (Foto: Reprodução do BCS)

Grande nome da história do direito e da política em nosso país, o potiguar Amaro Cavalcanti (1849-1922) é autor, dentre muitos outros títulos, de “Regime Federativo e a República Brasileira” (1900), um clássico das nossas letras jurídicas, escrito na virada do século XIX para o XX. Nele, constatando a ignorância da maior parte do nosso público sobre o sistema político-administrativo federativo e a necessidade de se “firmar, enquanto é tempo, a boa regra e doutrina contra certas ideias preconcebidas e a continuação de práticas abusivas” na nossa jovem República, o autor promete o seu “sincero empenho de concorrer para a satisfação da necessidade apontada”.

E, de fato, ele bem estabelece uma “teoria do regime federativo, tão completa quanto possível nos limites traçados”, servindo-se, para isso, “da melhor lição dos autores, que no estudo da matéria são reputados os mais proficientes e abalizados”.

De logo, entusiasta que sou do direito comparado, sobretudo quando misturado com o conceptualismo jurídico (que visa a sistematizar e esclarecer os conceitos e termos do direito), chamo a atenção para a busca do autor em estabelecer conceitos precisos acerca das expressões/termos Estado unitário, confederação e federação, o que não era de todo comum em sua época.

Amaro Cavalcanti afirma ser o Estado unitário ou simples quando a “organização política de um povo em determinado território é a de um governo geral, único, com autoridade exclusiva sobre o todo”. Já a situação de um Estado simples “ligar-se a um outro ou a vários outros, e, então, sem perder cada um sua personalidade jurídica, estipularem cláusulas, de cuja aceitação mútua resulte uma nova entidade governamental com direitos próprios independentes, não só, vis-à-vis dos governos dos Estados unidos, como também, em relação a quaisquer outros Estados estranhos”, é o que se entende por vínculo federativo, como gênero a englobar as espécies confederação e federação.

Como explica Amaro, “apesar da consonância dos vocábulos e da similitude dos caracteres e dos atos” que se oferecem à primeira vista, o fato é que “confederação e federação, no atual momento significam coisas sabidamente distintas, ou mesmo regimes políticos diferentes, assim considerados no direito público dos povos modernos”.

Segundo ele, “coube à rica terminologia da língua alemã e às condições históricas da vida política desse povo ocasião memorável para o emprego de vocábulos, que fixassem a significação especial do que se devia entender por confederação e federação; designando-se a primeira pela expressão ‘Staatenbund’, e a segunda por ‘Bundesstaat’”.

Reprodução de edição original (BCS)

Reprodução de edição original (BCS)

Amaro tem a confederação de Estados como meio mais precário, muitas vezes temporário, de segurança e defesa comum dos membros confederados, com uma mínima renúncia de poder em prol da confederação pactuada. E afirma: “Quando, porém, os Estados soberanos, que se ligam, querem dar-se uma coesão e homogeneidade, renunciando em favor do poder federal a maior ou melhor parte das suas prerrogativas, a união, ora instituída, é uma federação ou Estado-federal.

Este pressupõe, não, um simples pacto, mas uma constituição federal, com um governo, dotado de todos os poderes, legislativo, executivo e judiciário, cuja ação estende-se, em maior ou menor escala, sobre os próprios negócios e interesses de cada um dos Estados federados”, tanto no que diz respeito aos negócios internos, como às relações externas do país.

É também interessantíssimo o passeio que Amaro Cavalcanti faz pela história, nos mostrando onde estão as origens assim como a evolução do que hoje chamamos de federação.

Ele trata do federalismo na Antiguidade e nos ensina: “organizações políticas, possuindo os caracteres, às vezes, de uma simples aliança ou liga temporária, e outras vezes, as condições de uma verdadeira confederação de Cidades ou Estados, são fatos, pode-se dizer, comuns ou frequentes nas histórias dos diversos povos antigos. Não querendo remontar além do berço da nossa civilização – Grécia, só esta oferece numerosas provas do nosso acerto; e, nomeadamente, a Amphyctionia, composta dos doze povos principais da raça grega, podia talvez ser mesmo invocada, como uma das origens históricas das uniões federativas dos Estados modernos”.

Leia também sobre Amaro Cavalcanti: O jurista federal.

Amaro também descreve fenômenos aglutinativos mais recentes, em forma de confederação ou federação, a exemplo das idas e vindas da história alemã e da Confederação Suíça. Até chegar na Federação Brasileira. Mas não sem antes passar pelo clássico exemplo dos Estados Unidos da América, para quem ele, a meu ver, tendo ali vivido e estudado, dedica o seu mais sincero entusiasmo. É sobre esse retrato entusiasmado da Federação estadunidense que conversaremos na semana que vem.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 28/07/2024 - 09:00h

Moagem

Por Bruno Ernesto

Foto de Carla Janine

Foto de Carla Janine

O açúcar, carboidrato cristalizado, atualmente elevado à categoria de vilão-mor da saúde pública, nem sempre foi tão combatido. Pelo contrário, entre os séculos XV e XVIII, os europeus consideram-no como sendo o ouro branco, ao lado das famosas especiarias da Índia.

Se você lembra bem das aulas de história, o Brasil, segundo consta, só foi descoberto, e por acaso, na busca de uma nova rota para as Índias, visando as tão cobiçadas especiarias que, até hoje, podemos ver nas prateleiras dos supermercados, convenientemente embaladas em pequenas porções de cravo, canela, noz-moscada, pimenta preta, gengibre, açafrão e tantas outras, e que dão aquele toque de mágica nas comidas.

Faço um destaque, entretanto, a respeito da descoberta ocasional do Brasil, que a historiografia oficial convencionou, quase como um dogma, com todas as vênias possíveis, e ouso discordar dela.

Desde que li, há uns vinte e cinco anos, o livro “Dois Ensaios de História: A intencionalidade do descobrimento do Brasil. O mais antigo marco de posse”, publicado em 1965 pela Imprensa Universitária do Rio Grande do Norte, e que é de autoria do mestre Câmara Cascudo, cruzei essa linha da história oficial, e me inclinei para a sua tese.

Em resumo, ele defende que o local da chegada dos portugueses ao Brasil foi em Touros/RN, e que o monte avistado não era o Monte Pascoal, da Bahia, e, em verdade, tratava-se do Pico do Cabugi, localizado em Lajes, no Sertão central do Rio Grande do Norte, e que a rota da famosa viagem já estava bem traçada. Não foi um mero acaso.

O famoso Marco de Touros ainda pode ser visto no interior do Forte dos Reis Magos, ou, como diziam os holandeses, o Castelo de Keulen, em Natal, digo, Nova Amsterdã. E caso tenha curiosidade de ir conhecê-lo pessoalmente, aproveite e visite o Instituto Câmara Cascudo (@institutocascudo) e conheçam Daliana e Camilla Cascudo, as netas do velho mestre, que preservam todo o seu legado. Certamente será uma experiência incrível.

Embora a exploração do Pau-brasil tenha sido um dos produtos mais emblemáticos da história do Brasil, foi o açúcar a mola propulsora de sua ocupação e desenvolvimento econômico durante os séculos XVI, XVII e XVIII, e que moldou, especialmente, a região Nordeste, e hoje, ainda tem marcante presença em sua economia, notadamente no Rio Grande do Norte, Pernambuco e Bahia.

No caso do Rio Grande do Norte, quem sai de Natal e ruma para os Estados da Paraíba e do Pernambuco, verá canaviais a perder de vista e usinas de beneficiamento margeando a BR-101.

Especificamente no caso do açúcar, historicamente, pode-se estabelecer que após a Guerra dos Cem Anos (1463), travada entre os reinos da Inglaterra e da França, ao final da era Medieval, houve uma verdadeira explosão de procura por esse ouro branco.

Como a história conta, após trinta anos da chegada dos portugueses ao Brasil, e já na iminência de perdê-lo para Espanha, foi assinado o famoso Tratado de Tordesilhas, tendo Portugal dividido o Brasil em Capitanias Hereditárias e seus donatários, tendo, ao fim e ao cabo, prosperado apenas as Capitanias de São Vicente, de Martim Afonso de Souza, e a Capitania do Pernambuco, de Duarte Coelho Pereira, eminentemente produtoras de cana-de-açúcar com utilização de mão de obra escrava, outro traço marcante para a formação do Brasil.

No período colonial brasileiro o açúcar era um produto tão importante economicamente, que os holandeses invadiram e tomaram grande parte da região Nordeste, ocupando-o entre os anos de 1630 a 1654, no chamado Brasil holandês, com a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, cuja história também abordei em outra oportunidade (//blogcarlossantos.com.br/areia-branca-e-os-holandeses/).

Não obstante a exploração em grande escala do açúcar na região Nordeste tenha se dado predominantemente em seu litoral, é inegável que tal cultura também deixou grandes marcas no interior, embora sendo uma região semiárida, que é praticamente desfavorável à tal cultura, tanto com relação ao solo, mas, especialmente, quanto ao clima.

É muito comum nos deparamos com engenhos de cana-de-açúcar no interior do Estado do Rio Grande do Norte e, para mim, a cultura da cana-de-açúcar é elemento familiar central.

Meus avós maternos, são originários do litoral Sul do Rio Grande do Norte, sendo minha avó materna de Tibau do Sul, nas proximidades da famosa e badalada Praia da Pipa, e meu avô de Pedro Velho/Canguaretama, onde se localiza o famoso Engenho Cunhaú, construído em 1604.

No que tange à minha família parterna, ela tem origem no Sítio Serra de São Miguel, atual município de Almino Afonso/RN, e que está localizado na Serra dos Três Cabeços, onde mantém o sítio há quase duzentos anos.

Ao que consta, os primeiros membros se estabeleceram na região por volta no início do século XIX, e, desde então, cultivam cana-de-açúcar para a fabricação de rapadura, alfenim, mel de engenho e, claro, açúcar; e de lá, tenho muitas e inesquecíveis memórias das moagens da cana-de-açúcar.

Nesse período, há convergência de muita gente das cidades próximas e de meus parentes que vão ao engenho, erguido dentro da propriedade, e único que resistiu ao tempo. Embora, quando criança, tenha chegado a ver em funcionamento cinco, nos sítios vizinhos.

Lá eu me empanturrava de caldo de cana, raspa de rapadura e muito mel e, embora a produção não seja em escala industrial, a tradição continua.

A despeito da tradição, ela é tão intensa, que meu pai, enquanto vivo, jamais se desfez ou deixou se desfazerem das terras da família, engendrando esforços para adquirir parte delas e persuadindo meu tio Chiquito, único parente que remanesce habitando o local há quase oitenta anos, a manter a tradição da moagem, que ocorre sempre entre os meses de agosto e setembro de cada ano.

Embora praticamente sem muita esperança de ver a tradição ser mantida em razão de diversos fatores, especialmente por falta de quem a mantenha – o que de fato é muito desafiante -, espero ansiosamente, a próxima moagem e poder sentir aquele cheiro de caldo-de-cana fervente.

E para matar um pouco a saudade e manter a esperança, preservo em Natal, ao pé da churrasqueira, um pé de cana-de-açúcar que meu pai plantou há mais de quinze anos, de uma das mudas que ele trouxe de Viçosa/MG, para renovar o canavial do sítio da família.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 21/07/2024 - 12:02h

A palavra é arte fugidia, uma arma

Por Honório de Medeiros

Foto produzida por Honório de Medeiros, de poema anônimo, escrito em muro sacro

Foto produzida por Honório de Medeiros, de poema anônimo, escrito em muro sacro

“As palavras valem também para isso, dar alguma existência aos nossos delírios”, disse Raduam Nassar em Cantigas d’amigos (Cadernos de Literatura Brasileira, Ariano Suassuna).

Ariano, entrevistado pelo “Cadernos”, em certo momento lembrou: “não sou um escritor de muitos leitores; costumo dizer que sou um autor de poucos livros e poucos leitores -, (…) Mesmo que eu não publique, tem um círculo de leitores que sempre lê o que escrevo”.

Retruca o “Cadernos”: “Este é um circuito antimoderno, o circuito da comunidade interessada”.

Qual uma confraria de amigos, na Idade Média, digo eu, onde foi iniciada essa tradição. Montaigne e Boétié, por exemplo.

Assim é, assim será o caráter dos tempos atuais e futuros, no qual a imagem evanescente e superficial é tudo, e as palavras, mesmo quando amalgamando belos e profundos textos, manjar para poucos.

A palavra é arte, arte fugidia, de domínio difícil e angustiante.

Relendo “O Crime do Padre Amaro” do imenso Eça, lá encontro essa ideia pela voz do seco Padre Notário:

– “Escutem, criaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja uma brincadeira! Irra! Eu não sou um pedreiro-livre! O que eu quero dizer é que é um meio de persuasão, de saber o que será que passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para ali… E quando é para o serviço de Deus, é uma arma. Aí está o que é – a absolvição é uma arma”.

A palavra é uma arma.

Recordo-me que dizia para meus alunos de Filosofia do Direito ser a confissão um inteligente serviço secreto, à serviço da aristocracia, para a manutenção dos interesses da elite dominante, nos tempos medievais.

A palavra: arte ou instrumento. Às vezes ambos ao mesmo tempo.

Não somente a palavra escrita, mas também a falada, mesmo aquela que suscita nossos delírios: arma com a qual nos ferimos.

Natal, em 7 de março de 2015

Honório de Medeiros é ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN, professor e escritor

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domingo - 21/07/2024 - 09:14h

O jurista federal

Por Marcelo Alves

Amaro Cavalcanti, em reprodução da página História e Genealogia

Amaro Cavalcanti, em reprodução da página História e Genealogia

Amaro Cavalcanti (1849-1922) foi provavelmente o maior dos juristas nascidos na província/estado do Rio Grande do Norte. Muito cedo ele ganhou o mundo. Foi estudar, ensinar e exercer o jornalismo e a advocacia nas províncias do Maranhão e do Ceará. Foi mandado aos Estados Unidos da América para aprender ainda mais. Ali, mais precisamente no estado de New York, cursou e diplomou-se em Direito, habilitando-se ao exercício profissional na famosa Federação.

Voltou ao Brasil e não parou mais de prestar serviços ao nosso país. Já residindo no Rio de Janeiro, ainda no Império, foi professor (no Colégio Pedro II), jornalista e advogado. Pelo seu Rio Grande do Norte, já na República, foi vice-Governador, Senador e Deputado Federal.

Prestigiado, foi nosso Ministro Plenipotenciário no Paraguai. No governo de Prudente de Morais, foi Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Como ministro, chegou ao Supremo Tribunal Federal em 1906, aposentando-se em 1914. Foi prefeito do Distrito Federal (então o território do município do Rio de Janeiro). Foi por muitos anos membro/juiz da Corte Permanente de Arbitragem em Haia. E exerceu ainda o sempre prestigiado cargo de Ministro de Estado da Fazenda. Após uma vida tão profícua, faleceu no belo Rio de Janeiro, onde se acha sepultado.

Segundo nota biográfica no site do Supremo Tribunal Federal, Amaro Cavalcanti é o autor, entre outros, dos seguintes títulos: “A Religião” (1874), “A meus discípulos, polêmica religiosa” (1875); “Livro popular: Miscelânea de conhecimentos úteis” (1879); “Educação elementar nos Estados Unidos da América do Norte” (1883), “Ensino Moral e Religioso nas escolas públicas” (1883); “Notícia cronológica da educação popular no Brasil” (1883), “Meios de desenvolver a instrução primária nos municípios” (1884); “The brazilian language and its agglutination” (1884), “O meio circulante no Brasil” (1888); “Finances (du Brésil)” (1890); “Resenha financeira do ex-Império do Brasil em 1889” (1890), “Reforma Monetária” (1891); “Política e finanças” (1892), “Projeto de Constituição de um estado, com várias notas e conceitos políticos” (1890), “O meio circulante nacional” (1893), “Elementos de finanças” (1896), “Tributação Constitucional, polêmica na Imprensa” (1896), “Regime Federativo e a República Brasileira” (1900), “Breve Relatório sobre Direito das Obrigações, arts. 1011-1227” (1901), “Responsabilidade Civil do Estado” (1905), “Revisão das sentenças dos tribunais estaduais pela Suprema Corte dos Estados Unidos” (1910), “O caso do Conselho Municipal perante o Supremo Tribunal Federal” (1911), “Pan-american questions means looking to the mutual development of american republics” (1913) e “A vida econômica e financeira do Brasil” (1915).

Dessas obras, gostaria de destacar aqui “Regime Federativo e a República Brasileira” (1900), cuja edição que utilizo é de 1983, da Editora Universidade de Brasília, como volume 78 da “Coleção Temas Brasileiros”.

Um clássico das nossas letras jurídicas, escrito no estilo da época, a virada do século XIX para o XX, nele afirma Amaro que, embora tivéssemos adotado na República (1989) o sistema político-administrativo federativo, é coisa sabida que ainda “predomina grande ignorância do mesmo para a maior parte do nosso público. Muitos dos principais atos e assuntos das novas instituições têm sido, muitas vezes, resolvidos ou praticados, podia-se dizer, por simples outiva…”. E era necessário “firmar, enquanto é tempo, a boa regra e doutrina contra certas ideias preconcebidas e a continuação de práticas abusivas, cujos efeitos, não se ignora, já têm assaz contribuído, não só, para apreciações desfavoráveis dos governos, mas ainda, para duvidar-se da própria excelência do regime instituído”.

Assim, o livro de Amaro é o resultado do seu “sincero empenho de concorrer para a satisfação da necessidade apontada”. Possui uma Parte Geral, belo exercício de historiografia jurídica e de direito comparado, estabelecendo uma firme teoria geral sobre a temática, e uma Parte Especial, que trata especificamente da Federação brasileira de então.

É sobre a primeira parte – “a teoria do regime federativo, tão completa quanto possível nos limites traçados”, servindo-se, para isso, “da melhor lição dos autores, que no estudo da matéria são reputados os mais proficientes e abalizados” –, até porque atemporal, que faremos alguns comentários. Rogo apenas um tico de paciência.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 21/07/2024 - 08:44h

Inventação

Por Bruno Ernesto

São João batista de La Salle dando aula, de Cesare Mariani (Foto: Bruno Ernesto no Museu do Vaticano)

São João batista de La Salle dando aula, de Cesare Mariani (Foto: Bruno Ernesto no Museu do Vaticano)

Outro dia compartilhei um vídeo bem-humorado no qual um senhor, na casa dos seus cinquenta anos, nominava vários objetos de forma errada, mas que era plenamente compreensível e mais agradável de se escutar, embora erradas.

Vassoura era bassôra; espelho era ispêi; tábua era táuba; fósforo era fósco; raio x era raúlxis; máscara era mascra; celular era cerular; ferrolho era ferrôi; álcool em gel era auquingel; umbigo era imbigo; botijão era bujão.

Quem nunca escutou tais palavras?

Se você puxar pela memória, talvez até você já tenha dito. Se não essas, outras. Será que não?

Sim, concordo que há situações que são engraçadas.

Certa vez, estava num shopping center aguardando minha vez para subir pela escada rolante, quando escutei uma senhora falando ao meu lado para outra:

– Fulana, isso aqui é tal da escada volante. Bora subir!

Obviamente que todos ali olharam para ela deram um sorrisinho de canto de boca.

Quem as viu atentamente, entretanto, pode perceber que se tratava de duas senhoras simples, e que talvez fosse a primeira vez que eles tenham ido ao shopping center. Talvez até numa capital.

Embora pareça engraçado, infelizmente isso reflete a precariedade do ensino no Brasil, e que parece muito distante de uma solução, uma vez que a educação enfrenta diversos obstáculos, tais como alta evasão escolar, escassez de professores, escolas precárias e o desinteresse dos alunos em idade escolar.

Ora, até mesmo para aqueles que têm condições financeiras de custear o ensino, não há garantia de efetividade no aprendizado e continuidade dele ao longo da vida, uma vez que se não houver interesse do aluno, além de um ambiente propício e adequado para despertar e manter o seu interesse pelo aprendizado e leitura, dificilmente haverá, por exemplo, o hábito da leitura após a conclusão do ensino regular, pois a escola é uma peça que compõe toda uma engrenagem.

Claro que a língua falada, de fato, na esmagadora parte de nossos diálogos, não precisa de tanta formalidade. Ao contrário da escrita, que exige formalidade e observância do vernáculo.

Entretanto, até na escrita, deve-se ponderar a formalidade em excesso.

Para se ter uma ideia da problemática que é uso exagerado da formalidade na escrita, até o Judiciário, palco das maiores formalidades que um ser vivente pode ter pleno e amplo acesso, tanto na fala quanto na escrita, nos últimos anos tem encabeçado uma ferrenha batalha contra o uso exagerado da linguagem exageradamente difícil e rebuscada de todos os atores do processo, pois o mais importante são a clareza e a simplicidade do texto.

Há quem pense – com convicção – que passará a impressão de que é uma pessoa altamente qualificada e erudita se utilizar palavras difíceis, rebuscadas, expressões latinas, estrangeirismos, além de certos termos e expressões de tempos imemoriais, que até La Salle – o famoso santo educador  do século XVII – teria dificuldade em compreender. Para mim, não passa de um tudólogo.

Para uns, até pode parecer. Entretanto, para a grande maioria, passará a impressão de que parou no tempo, é medonho, caricato e beira o ridículo, pois não atinge a finalidade da comunicação, que é transmitir a mensagem de forma clara e plenamente compreensível.

O que importa, é fazer-se entender, pois a única certeza que temos é saber o que falamos, e não o que o outro compreendeu.

Para se ter uma exata dimensão desse terrível hábito de algumas pessoas, transcrevo abaixo uma reportagem publicada na revista Veja, de 29 de julho de 1998, página 38, que li aos dezessete anos e jamais esqueci:

“Conspícuo diretor: abroquelado em extrema necessidade, epigrafando direito irremovível na ritualidade e sem quiproquó de pergaminho autorizativo, solicito liberação do título cheque, supedâneo da documentação anexa.

Aristóteles Ferreira, secretário jurídico do município de Jaboatão dos Guararapes (PE), em ofício ao secretário das Finanças.”

Além de engraçado, até hoje me pergunto qual foi a resposta e se o cheque tinha fundos.

Dessa forma, há situações nas quais falar de forma simples é muito mais adequado e eficiente, afinal, hoje em dia, ninguém tem mais paciência para textos enfadonhos; ricos em erudição e pobres em conteúdo, daqueles que até os filólogos torceriam o nariz.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 21/07/2024 - 07:32h

Um prefeito inoxidável

Por Marcos Ferreira

Prefeito de  Mossoró, Allyson Bezerra, registro no Instagram

Prefeito de Mossoró, Allyson Bezerra, registro no Instagram

Imagino que alguém (talvez muita gente) afirmará que virei a casaca, que me vendi, bandeei-me para o lado do governismo municipal, ao topar com esta crônica com traços de cordialidade e brandura. Não tem problema. Não devo satisfações a seu fulano, a beltrano nem a cicrano. Sou dono do meu pensamento e da minha escrita. Hoje, à falta de outra coisa, o tema é este, a política partidária. O protagonista, obviamente, é o prefeito do País de Mossoró, o senhor Allyson Bezerra.

Que chovam canivetes, então, sobre a cabeça deste escriba obscuro. Às vezes é bom darmos um tempo na poeticidade e na prosopopeia do imaginário e pisarmos no campo minado dos homens públicos. Entenda-se Executivo e Legislativo destes confins do mundo. Câmara e Palácio da Resistência, historicamente falando, são um tipo sofisticado de casas de tolerância. Adentro, pois, num assunto cheio de experts nesse métier, de analistas de alto coturno que se debruçam em cima da política e da politicagem; expressam seus consideráveis e abalizados pareceres.

Advirto, por oportuno, que meu nome não está em nenhum polo cultural entre esses que são divulgados à larga. Não possuo prestígio ou afinidade com o “menino pobrezinho”, contra quem, enquanto pessoa, não tenho nada. Até poderíamos tomar um café qualquer dia neste meu refúgio da Euclides Deocleciano. Digo ainda que não tenho filha, filho ou esposa na folha de pagamento da Prefeitura ocupando cargo comissionado. Ou seja, não estou com o rabo preso. Isso significa (está bem claro!) que não manifesto queixas à toa, nenhum malquerer contra o palaciano.

Falemos, sem bajulice, acerca do senhor Bezerra, verdadeiro prodígio do Olimpo da popularidade e das urnas mossoroenses. Trata-se de um prefeito, digamos, inoxidável do ponto de vista semântico, uma espécie de Odorico Paraguaçu redivivo e remoçado que caiu nas graças do povo desta província desde que se lançou a deputado estadual (com êxito) e de lá para cá o homem só faz sucesso.

Existem as mancadas e os tropeços de caráter administrativo. Parte da imprensa vive a pisar nos calos de Bezerra; fala-se em malversação do erário, mas isso é fichinha e sai na urina, como se diz. O que conta é o curral de votos em que se converteu a Estação das Artes Elizeu Ventania. Contratações de artistas com cachês astronômicos no recente Mossoró Cidade Junina foi uma tacada de mestre. O povo ainda está em êxtase, gozou, usufruiu da rara oportunidade de ver de perto “ídolos” de projeção nacional e até internacional. Allyson Bezerra arrebentou no São João.

Também é correto que se diga que Bezerra não se limita às festanças e ao foguetório. Não. O imberbe gestor não vive apenas com a bunda na cadeira, trancado em seu gabinete. É preciso que sejamos justos com esse sobrevivente; um jovem de origem humilde que veio de um sítio ou comunidade de nome Chafariz e assumiu o topo da política da terra de Santa Luzia. Desbancou uma concorrente tarimbada, reverteu provocações e o desdém da histórica oligarquia dos Rosados.

Ouso estipular que Bezerra é o político com maior quilometragem neste chão. Está em toda parte, faz corpo a corpo com os seus eleitores, com o povo de um modo geral. Transformou Mossoró num canteiro de obras, conforme se alardeia e se divulga nas propagandas exibidas na televisão. A capital da cultura do faz de conta segue exportando matéria-prima para os estúdios de Hollywood.

O senhor Bezerra vai longe. Não possui predador, nenhum oponente do seu tope na corrida das próximas eleições municipais. A oposição está em polvorosa; bate cabeça. As pesquisas vão confirmando, ratificando o vínculo de amor e paixão do povo com o senhor Bezerra. Todos os adversários (há exceções) se uniram e se formou uma aliança de última hora para disputar a Prefeitura, no entanto os prognósticos dos possíveis votos que se obterá dessa aliança apontam números quase invisíveis a olho nu. Os caciques e estrategistas oligárquicos já jogaram a toalha.

Com o seu chapeuzinho de couro e um sorriso de populista nato, Bezerra põe seus opositores no bolso. Quando o povo quer, e o “menino” é queridíssimo pela grande massa, não tem remédio. Eis, repito, um prefeito inoxidável. Será reeleito com esmagadora vantagem. Só não enxerga isso quem se recusa a enxergar. E nem precisará, ao contrário do candidato Donald Trump, de um tiro na orelha.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 14/07/2024 - 12:28h

O som da história

Por Marcelo Alves

Reprodução YouTube

Reprodução YouTube

Eu tenho certeza de que já falei aqui sobre algumas séries/documentários de TV que foram fundamentais para a minha formação: “Civilização” (“Civilisation”, 1969), “A escalada do homem” (“The Ascent of Man”, 1973), “A era da incerteza” (“The Age of Uncertainty”, 1977) e “Cosmos” (“Cosmos: a Personal Voyage”, 1980). Produzidas pela BBC e pela PBS (apenas no caso de “Cosmos”), essas séries nos apresentam, sob a visão de Kenneth Clark (1903-1983), Jacob Bronowski (1908-1974), John Kenneth Galbraith (1908-2006) e Carl Sagan (1934-1996), a história da humanidade através das artes, das ciências, da economia/sociologia e do universo/cosmos, respectivamente.

Assisti-as, lá pelo fim dos anos 1980 e começo dos 90, em companhia do meu pai. Era o tempo de TV aberta e do videocassete. Alteradas as tecnologias e as companhias, não canso de reassisti-las.

Essas séries/documentários têm uma característica em comum. A seus modos expandidas, elas foram transformadas em maravilhosos livros. E isso é bastante curioso, uma vez que, em regra, os livros é que são transformados/adaptados, quase sempre resumidos, para filmes ou séries de TV. Li-os e reli-os – falo dos livros decorrentes das séries nominadas – também inúmeras vezes. E aqui, sendo hoje um homem mais do texto do que da tela, disso canso menos ainda.

O fato é que outro dia, garimpando raridades no sebo Cata Livros (sito na Av. Prudente de Morais, nº 2907, Natal/RN), despretensiosamente caiu em minhas mãos, por apenas 20 reais, mais um livro da preciosa espécie dos acima citados, cujo título é “A música do homem” (“The Music of Man”, no original), cujo autor/protagonista é o grande violinista e maestro Yehudi Menuhin (1916-1999). A série/documentário para a TV, de 1979, foi produzida pela Canadian Broadcasting Corporation/CBC.

A edição do livro que possuo, em bom português, é da Martins Fontes e da Editora Fundo Educativo Brasileiro, de 1981. É uma daquelas edições de formato grande, cheia de desenhos e fotografias. Seguramente, porque adaptado da TV, é um livro prazerosamente visual. E está em razoável estado de conservação, asseguro.

No livro, em nota ao leitor, é dito que “A música do homem é a ampliação de uma série de televisão, constituída de oito programas, produzida pela Canadian Broadcasting Corporation. Seu objetivo é levar-nos a melhor conhecer e apreciar o milagre da música e sua influência sobre toda a humanidade, através dos tempos”. Deixa-se ainda claro que “o livro não pretende esgotar a história da música”. Ou muito menos pretende tratar de todo o conhecimento acumulado sobre aquilo de denominamos “música”, termo que, para além de referir-se à arte por todos nós conhecida, designa também a sua ciência. E aqui lembremos do quadrivium ensinado nas escolas gregas: a aritmética, a geometria, a astronomia e… a música.

A série/livro “A música do homem” cuida da “evolução da criação musical desde suas origens até hoje” sobretudo “a partir de uma perspectiva histórica e social”, cronologicamente linear, clara e bem definida. É a história de Bach, de Elvis e de tantos outros mitos do passado e do nosso tempo, de suas respectivas obras, do som, do canto, da harmonia e dos instrumentos musicais, é verdade. Mas é também – e sobretudo – uma infinita trilha sonora da história de todos nós.

Estou adorando “A música do homem”. No momento, infelizmente me encaminhando para o final do livro, leio o som da virada do século XIX para o XX, com os seus Debussy, Richard Strauss, Gustav Mahler. Mas já andei até xeretando o YouTube para assistir à respectiva série de TV. E ela está lá, pelo menos os seus três primeiros capítulos. Viajarei nela, também asseguro.

Na verdade, estou gostando tanto da coisa que, outro dia, pretensiosamente, busquei no deveras organizado Seburubu (sito na Av. Deodoro da Fonseca, nº 307, Natal/RN) algo da mesma estirpe: um passeio na história por intermédio de uma arte ou ciência.

O proprietário me disse que sabia de uma “história da humanidade através da matemática”. Prometeu encontrá-la para mim. Só não sei se a matemática pura é tão divertida quanto a música. Mas isso aqui faz pouca diferença. O que importa é conhecer os muitos tons da nossa história.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 14/07/2024 - 10:32h

Última areia

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa da Freepik

Arte ilustrativa da Freepik

Todos nós sabemos que um dia a mais é um dia a menos. Muitos, porém, contam com mais prestígio e tolerância da parte do tempo. Isto, obviamente, para os indivíduos que são bem-aventurados, aqueles que usufruem do privilégio de uma existência longeva e, em inúmeros casos, com boa qualidade de vida. De um modo ou de outro, todavia, estamos morrendo desde a nossa mais tenra idade.

Não proponho agora que devamos mergulhar na tristeza, no baixo astral. De jeito algum. Apenas estou conversando com os meus botões. Penso na última areia que ainda me resta na ampulheta da vida. Ah, mas quem morre de véspera é peru! Alguém pode recorrer a esse adágio. Devo admitir que está certo. É preciso tocar o barco, não encalhar nas pedras do pessimismo e desânimo.

Temos que continuar perseguindo os nossos sonhos, fazendo os nossos planos e pelejando para concretizar nossos projetos. Não adianta cruzar os braços porque a qualquer dia ou hora vamos vestir um paletó de madeira. É isso. A Moça da Foice não negocia, não parcela nada.

O que penso, sendo franco, é que não há ninguém com mais ou menos predileção sob os olhos ou supostas ações do que se convencionou chamar de Divina Providência. Ledo engano. É cada um por si. Deus não se mete nas desgraças ou bonanças dos seus “filhos”. Principalmente depois do que fizemos com o Nazareno. Dizem que Cristo veio ao mundo para tirar ou salvar o Homem do pecado, no entanto não salvou nem tirou o pecado da Terra. A situação parece ainda pior.

Não pensem que sou um depressivo em crise, uma criatura blasfematória, um sujeito de pouca fé. Não é bem assim. Nem oito nem oitenta, como também se diz. Tenho a minha parcela (naturalmente pequena) de credulidade. Não descreio, não duvido da existência de um ser supremo. Com que autoridade? Nenhuma! Não aceito que sejamos mero fruto do acaso. Mas, diante de tantos e tantos, de infinitos, incontáveis horrores que acontecem sob as barbas do Criador, presumo que o Todo-Poderoso não tenha interesse em meter o bedelho nas desgraças que, em sua maioria, nós próprios originamos. Recuso-me, pois, a achar que saímos do útero do acaso.

Criancinhas sem pecado algum são assassinadas em todos os lugares do planeta. Cadê os anjos da guarda? Um ônibus desce uma ribanceira, noventa por cento dos passageiros morrem, e alguém assegura que foi Deus que livrou, que salvou os dez por cento. No meio dos mortos, não raro, crianças de colo, mulheres gestantes, pessoas bondosas. Entre os que escaparam, é justo que se diga, às vezes está um matador de aluguel, um traficante, um terrorista, uma escória qualquer.

Não engulo esse fatalismo e seletividade perversos. Imagino que Jeová não tem nada a ver com isso. As tragédias seguem acontecendo em escala planetária e inocentes pagam o pato por causa da, por exemplo, estupidez e genocídios de superpotências bélicas. Cadê o nosso Senhor e o seu exército de santos? É mais que evidente que estão no Éden, no Paraíso, no sossegado patamar celestial.

A propósito, desde que o mundo é mundo, o Inferno e o Céu recebem inquilinos às pampas. Então penso na vastidão desses dois endereços: um supostamente nas alturas e o outro nas profundezas, no fogo eterno. Se não estou enganado, convenhamos, é isso que o best-seller das Sagradas Escrituras afirma.

Estamos morrendo, repito. Acontece, felizmente, que não temos a menor ideia de quando o último sopro de vida nos deixará. Até lá, enquanto o seu lobo não vem, sejamos mais fraternos. Aproveitemos a vida que temos com leveza, sem o pesadelo da finitude. Viver nem sempre é estar vivo. Pensem nos lugares onde bombas caem sobre as casas do povo, dos civis em meio às guerras que “demônios” (políticos e militares) promovem confortavelmente, a salvo das ogivas e da fuzilaria.

Quanto a Deus, que tantos nomes possui, não façamos julgamentos exclusivistas. Acho mesmo que Ele não protege uma minoria de “abençoados” e deixa bilhões de “filhos” entregues ao calvário neste mundo sem jeito.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 14/07/2024 - 08:22h

Ao seu destino

Por Bruno Ernesto

Cartões-postais em foto ilustrativa do próprio autor

Cartões-postais em foto ilustrativa do próprio autor

No texto publicado no dia 24 de março de 2024 (veja AQUI), abordei o meu costume de enviar cartões-postais e a situação pela qual passei nas minhas últimas postagens, quando não tive mais notícias deles.

Dei como perdidos e guardei na memória a história.

Como registrei anteriormente, apesar de toda tecnologia de comunicação que dispomos hoje, realmente, eles mantêm o seu encanto da escrita epistolar. E arrisco a dizer: jamais deixará de existir.

Quem já enviou um cartão-postal sabe muito bem o quão interessante e desafiador é resumir uma mensagem naquele pequeno pedaço de papel Couchê.

Não podemos – pelo menos não é comum – escrever textos longos, até porque dispomos de pouco espaço para tanto, de modo que é preciso exercitar o poder de síntese e da concisão, sem, contudo, deixar de transmitir ao destinatário todo aquele sentimento ou impressão que será compartilhada nesse ínterim com todos que o manusearem, até que, enfim, chegue ao seu destino.

Outra característica desse meio de comunicação e registro, quiçá possamos considerá-lo uma espécie de rede social primordial, é que eles transmitem majoritariamente mensagens de boas notícias. Aliás, nunca vi ou ouvi falar da existência de um cartão-postal portador de más notícias.

Desesperançoso e com os afazeres e correria do dia a dia, simplesmente não lembrei mais dos cartões-postais que havia enviado quando de minha visita ao Vaticano em novembro passado. Até que dia 15 de maio passado, silenciosamente, chegaram.

Quando finalmente pude pôr as minhas mãos novamente nesses cartões-postais, fui conferir as hipóteses que havia levantado e, como esperado, não os enderecei de forma errada e, obviamente, não foram extraviados.

Os reli calmamente e rememorei toda aquela viagem e os sentimentos que me levaram a compor aquelas mensagens. Uma para cada destinatário. Cada uma escrita com sinceridade e afeição.

Quanto à demora, penso que fizeram tal qual os gatos fazem, quando somem em suas escapadas e depois, do nada, reaparecem em casa.

Como não temos como perguntar por onde andaram, nos resta observar se estão intactos.

Apesar de terem viajado milhares de quilômetros, passado por não sei quantas mãos ou máquinas, os cartões-postais parecem que foram bem cuidados.

Será que há um tratamento diferenciado para eles? Penso que sim, ainda que involuntariamente, pois o serviço postal, de um modo geral, é muito pragmático com relação a certos hábitos dos seus usuários, e sabe que a tradição o mantém vivo.

Exceto um ou outro leve amassado nas bordas, estão do mesmo jeito de quando os postei há alguns meses. Inclusive os sentimentos. E fico a imaginar quem os leu durante esse longo percurso. Será que também desejou receber um?

Nenhum foi portador de más notícias, claro. Só desejos, carinho, admiração e gratidão.

Além disso, fugindo mais uma vez à normalidade, dessa vez pude presenciar a leitura e reação de cada um dos seus destinatários e, de fato, foi tudo diferente.

Aquela impressão de que não os veria novamente foi apenas uma suposição, pois todos chegaram ao seu destino.

Assim, já estou esperando a próxima viagem para enviar novos cartões-postais que, espero, apenas cheguem. Pouco, importando se tempestivamente.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 14/07/2024 - 07:32h

Meus dias de domingo

Por Odemirton Filho

Dorian morreu aos 71 anos de idade (Foto: Arquivo do extinto Gazeta do Oeste)

Dorian Jorge Freire – jornalista e cronista (Foto: Arquivo do extinto Gazeta do Oeste)

Há tempos eu procurava entre os poucos livros da minha “biblioteca”, o livro Os Dias de Domingo, de autoria do Jornalista Dorian Jorge Freire. Em vão. Entretanto, um dos meus cunhados, Raphael Valério, fez-me a gentileza de adquirir um exemplar, num desses sebos virtuais. Para um apaixonado por crônicas, não ter no acervo o mestre Dorian é erro crasso, imperdoável.

Aliás, abro um parêntese em relação às crônicas. Alguns dizem que existem três ciclos históricos. O primeiro, de 1852 a 1897, tendo como fundadores: Francisco Otaviano, José de Alencar e Machado de Assis. O segundo, de 1897 a 1922, com: Olavo Bilac, João do Rio, Lima Barreto e Orestes Barbosa. O terceiro, de 1922 a 1945: Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Antônio de Alcântara Machado, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles. E o último ciclo, de 1945 até a década de 1970, com Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Sérgio Porto, Antônio Maria e José Carlos Oliveira.

Pois bem, voltemos a Dorian, que, para mim, está entre os cronistas do último ciclo. Sim, eu li o livro há muitos anos, agora, reli. Conforme já disseram, “temos que abrir o livro, aí eles despertam. Ler e reler. Reler melhor do que ler”. E Dorian continua insuperável na arte de escrever torneando frases, resgatando lembranças de tempos idos.

Numa de suas crônicas sobre Mossoró, revolvendo fatos pretéritos, ele escreveu:

“Mas a cidade mudou. Que mudou. Mudou. Por mais que eu procure nos becos e vielas, nas ruas da merda, no beco do pau não cessa, extensão do beco de Jeremias cego, não encontro sinhá Maria o boi bebeu. E nas caladas da noite de minha praça da Redenção, nunca mais voltei a ouvir o cantochão de Zé Alinhado”.

E continua a navegar no mar de lembranças:

“E o Bar Brahma? E Casablanca? Cadê todo o meretrício que ganhou de Américo de Oliveira Costa o nome de Art Nouveau, embora os seus exercícios fossem velhos como o mundo? Art Nouveau, Alto Nu Vou, Alto Louvor, rasga, lá em cima. Tudo desaparecera. Sumira. Mergulhara terra adentro, na sepultura aberta pela modernidade”.

O Alto do Louvor não foi do meu tempo de rapaz. Na minha época de estripulias estava decaído. Todavia, alguns leitores mais experientes do que eu, devem lembrar.

Já os meus dias de domingo, à época da minha infância e juventude, foram vividos na rua Tiradentes, no centro de Mossoró. De lá, sobejam lembranças. Quais? A vitrola do meu vizinho, Cesário, de dona Odete, a tocar músicas de Nelson Gonçalves e Lupicínio Rodrigues; o almoço em família (carne de sol com arroz de leite ou galinha); os primos que se esbaldavam na pequena piscina; depois do banho, saboreávamos o bolo de leite preparado por minha estimada Socorro.

Ah, e o pé de seriguelas do quintal da minha casa. Talvez, ele tenha sido o mais querido, o mais alegre, o mais terno amigo de minha infância, diria Rubem Braga.

À tarde, eram os vesperais no Cine Pax. Boquinha da noite, juntamente com meus pais, íamos à sorveteria do Juarez; à pizzaria de Patrício, o português; sem esquecer das Missas na Catedral de Santa Luzia. Ao término da Celebração Eucarística, a turma jovem ficava na praça, flertando, para usar uma expressão de antigamente. Nas cidades interioranas, sobretudo nas menores, a praça da Igreja Matriz sempre foi um local de encontro. E todos eram conhecidos, sabíamos quem era filho de fulano ou beltrano.

Por derradeiro, permita-me transcrever um fragmento do prefácio do livro de Dorian, escrito por Nilo Pereira:

“Lendo (ou melhor relendo) as crônicas de Dorian Jorge Freire, sinto que estou diante de um fenômeno diversificado: há o cronista propriamente dito, o homem de luta e de convicção, o observador inteligente da vida, o filósofo, o cristão, o escritor, sempre voltado para as agonias do nosso tempo”.

Eu assino embaixo. E dou fé.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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domingo - 07/07/2024 - 12:42h

A barca e a balança

Por Bruno Ernesto

Barca funerária egípcia no Museu do Vaticano (Foto: Bruno Ernesto)

Barca funerária egípcia no Museu do Vaticano (Foto: Bruno Ernesto)

Uma das coisas mais relaxantes para mim é assistir a documentários, especialmente sobre história e artes.

O interesse temático para mim aparece em ciclos: tem tempo para Segunda Grande Guerra, outro para história do Brasil, cangaço, processos de fabricação, aviação, exploração espacial, grandes pintores e as grandes civilizações, especialmente a do Antigo Egito.

Há tantos documentários sobre o Antigo Egito, com tantos assuntos e abordagens interessantes que, quanto mais se assiste, mais desperta o desejo e o interesse em se aprofundar sobre cada um deles.

Evidentemente que um dos temas mais destacados é a estreita relação daquela civilização com a morte e o morrer, especialmente seus mitos e deuses.

Dentre os mitos relacionados à tal temática, o mais interessante era o ritual da pesagem da alma do morto na balança de Maat, a deusa da verdade, justiça e da retidão.

Em tal ritual, Osíris era o responsável pela pesagem da alma do falecido, consistindo o mesmo na pesagem do coração do morto em relação a uma pluma de avestruz: se o morto tivesse o coração mais leve que a pluma, tinha direito ao paraíso.

Fazendo um paralelo, seria o mesmo que São Pedro faz com todo aquele que chega às portas do paraíso: se o morto foi uma boa pessoa no mundo terreno, a alma seguirá para o céu.

Outro mito egípcio bastante interessante era o dos barcos solares, que também consistia num ritual que o morto precisava se submeter para, tal qual o da balança de Maat, alcançar a imortalidade.

Nele, os egípcios acreditavam que, todas as noites, quando o sol se punha, o deus Rá, que era o deus Sol, travava uma luta por doze horas, passando por doze estações simbólicas de lutas com os deuses para, ao amanhecer, alcançar a vida eterna.

A verdade é que toda essa simbologia egípcia, que conta mais de quatro mil anos de história, retrata a luta diária de todos nós, na medida em que, ao fim ao cabo, conduzimos nossas atitudes pensando desfrutar a paz e descanso justos.

Pelo menos, a maioria de nós assim espera e a minoria assim faz por onde.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 07/07/2024 - 11:32h

O gosto

Por Marcelo Alves

Museu dos Esgotos de Paris (Foto: Advisor Travel)

Museu dos Esgotos de Paris (Foto: Advisor Travel)

O “gosto” é algo complicado. “Tem gosto pra tudo”, afirma o ditado popular; “(…), cada um tem o seu”, encerra um dito ainda mais enfático e escrachado. Essa sabença geral é confirmada pelos especialistas em estética. Virgil C. Aldrich, no seu “Filosofia da arte” (Zahar Editores, 1976), lembra que, “ao falar sobre obras de arte [e, aqui, eu incluo realizações da literatura, da música, das artes plásticas, da arquitetura e por aí vai], as pessoas frequentemente dizem que gostam mais de uma do que de outra ou, então, que simplesmente não podem suportá-las”.

E Jean Lacoste chega mesmo a ter, como um dos tópicos do seu livro “A filosofia da arte” (Jorge Zahar Editor, 1986), “o gosto como problema”. Acho que é por aí mesmo – e quem sou eu para contestar o povo e os doutos?

De toda sorte, sempre me pareceu que podemos enxergar certos consensos sobre algumas coisas. O convencionalismo é uma grande arma para enfrentarmos a inconsistência do gosto e apontarmos o que é “belo”. Um desses consensos é a cidade de Paris, no caso sua arquitetura/ambiência, de modo geral glamorosa. Eu acho Paris bela. Você provavelmente também acha. E algo entre meio mundo e mundo e meio concorda conosco.

Paris, ouso dizer, é belíssima. A Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, a Avenida dos Campos Elísios, a Ópera, os Inválidos, o Museu do Louvre, o rio Sena, a Catedral de Notre Dame, o Jardim de Luxemburgo, os grandes bulevares, as ruelas do Marais, de Saint-Germain-des-Près e do Quartier Latin, a boemia de Montmartre e a Sacré-Cœur, os muitíssimos cafés da cidade… etc. etc. etc.

Até a cor de Paris encanta: de dia, nos seus prédios, um tom bege que a tudo predomina; à noite, uma Cidade Luz, iluminada e iluminista. Paris é excitante como sentenciou Hemingway: “Se, na juventude, você teve a sorte de viver na cidade de Paris, ela o acompanhará sempre até ao fim da sua vida, vá você para onde for, porque Paris é uma festa móvel”. E Paris é, e talvez sobretudo, romântica.

Foi por causa da reconhecida beleza romântica de Paris que ficamos preocupados com o causo de um primo muitíssimo querido. Há alguns anos ele foi para Paris em lua de mel. Viagem dos sonhos de qualquer casal. Passear de mãos dadas à beira do Sena, tomar um vinho nacional, namorar à luz de velas e de Paris, isso é muitíssimo mais do que muito para qualquer par de amantes. Imaginem para os recém-casados.

Mas a mulher do meu primo não gostou de Paris, “definitivamente”, nos disse. Detestou talvez seja um qualificativo forte. Mas foi algo próximo daí. Separaram-se pouco tempo depois. Ficamos sem entender. E aqui me refiro ao “desgosto” de Paris.

Entretanto, outro dia, para além das complexas lições dadas pela filosofia sobre o problema do “gosto”, encontrei uma explicação até plausível – assim pelo menos eu quero crer – para os padecimentos parisienses do meu querido primo.

Há algumas semanas, quando voltamos da França em viagem familiar, meu pai perguntou ao nosso pequeno João o que ele tinha mais gostado de Paris. Eu estava na hora e esperava que João dissesse a Torre Eiffel (vi a empolgação dele embaixo daquele colosso de ferro onde estivemos duas vezes) ou a Euro Disney (por motivos óbvios). Mas ele disse os “esgotos”. Isso mesmo: os esgotos de Paris, embora aqui devamos ler o “Museu dos Esgotos de Paris” (Musée des Égouts de Paris), que visitamos, por promessa minha e exigência dele, numa malcheirosa, mas divertidíssima, tarde ao derredor do Sena.

É isso. Eles – o outrora casal de primos – apenas não foram na Paris certa. Pelo menos é isso que eu agora gosto de crer. E gosto… Bom, cada um tem o seu.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 07/07/2024 - 10:40h

O sonho acabou

Por Jânio Vidal

Foto do autor da crônica

Foto do autor da crônica

A turma do chapéu acabou, respondi pra Valéria, parodiando John Lennon , que declarou “o sonho acabou”, encerrando qualquer possibilidade da banda The Beatles voltar a gravar com os ´fab four´juntos. Foi ela quem batizou o grupo, quando meia dúzia de três ou quatro amigos nos reuníamos aos sábados – eu, Alex Medeiros e Ricardo Rosado mais frequentes – no restaurante Cuxá.

Usávamos chapéu com regularidade, e eu dizia pra ela que sob o chapéu celebrávamos a amizade, assim como é, ou deveria ser, a formalidade que diz que sob a capa preta do magistrado, a cegueira da justiça; sob as fardas militares, o respeito à constituição;  e, sob a batina dos padres, apenas a fé.

Passamos a ir para outros restaurantes e a última cena que lembro, quando o grupo deixou de ser pequeno, foi numa tarde de sábado, no Between, Largo do Atheneu, quando o amigo Ximbica trouxe de Miami, onde morava, 12 legítimos Panamás. Entre taças de vinho e copos de cerveja fez a distribuição dos chapéus aos presentes, antigos e novos, juntos e misturados até à próxima discussão.

Se antes os garçons faziam reverência à turma do chapéu, às vezes ficando em pé ao lado para ouvir a conversa, passaram a ficar escabreados quando tinham que juntar duas ou três mesas e as conversas descambavam para discussões, aqui acolá aos gritos. Assim não tem dono de bar que aguente, disse um deles certa vez.

A turma do chapéu deixou de se reunir a partir da pandemia do coronavírus, mas desde a pré, durante e pós eleições de 2018, a conversinha não era mais a mesma, com novas pautas e narrativas em conflito: gênero, ideologia, cotas, raças, religião, política e… sim, isso mesmo que vocês estão imaginando. Nunca agimos como mosqueteiros, mas a antítese seria devastadora.

Na pandemia ainda fizemos alguns encontros virtuais, usando aplicativos que na telinha faziam a aproximação de lugares distintos e distantes como Natal, Miami, Europa, França e Bahia. Todos de chapéu.

Não foram apenas três meses de epidemia, como pensávamos no início. Os meses passaram, um ano, dois anos, mais de 700 mil brasileiros mortos pela Covid 19 e sequelas que atingem milhões. Não poderia ser diferente com a turma do chapéu.

Nesses tempos estranhos de um pós que está apenas começando, não somos mais os mesmos. Até a Kombi mudou e a IA é muito diferente do que foram os nossos pais.

Nos últimos dias vimos ser interrompida a carreira de um candidato ao generalato, com provas de que participou da tentativa de um golpe, e que ficou em silêncio numa CPI vestindo farda completa, com todos os galões, broches, pins e alfinetes que pode ostentar. Vimos também um ministro da Suprema Corte fazer inflamado discurso eleitoral e ideológico num encontro de estudantes. No congresso também existem formalidades, mas eles estão vestindo de tudo, há muito tempo. Ah, a batina dos padres. Estão querendo casar.

Jânio Vidal é professor e jornalista

*Texto e foto originalmente publicados pelo autor no dia 14 de julho de 2023, em seu endereço no Instagram.

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Categoria(s): Crônica
domingo - 07/07/2024 - 06:34h

Coisa de cinema

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa

Arte ilustrativa

Mossoró é o meu universo Marvel, a minha Macondo assolada (há exceções!) por políticos parasitas. É, mal comparando, a minha Hollywood cabocla. Nosso bangue-bangue, a propósito, é o mais duro e sangrento do velho oeste potiguar. Além disso, fato notório, a terra de Santa Luzia é a mais violenta do Brasil e figura no ranking das mais violentas do planeta na décima primeira colocação. Não é, de maneira alguma, um lugar para amadores. Aqui o ramo de casas funerárias e centros de velório, como eu já disse várias vezes, segue esbanjando saúde financeira.

Temos bandidos para todos os gostos, encapuzados quanto engravatados. Se me faço entender, os piores e mais astutos estão amoitados na Prefeitura e na Câmara; vivem cheios de mordomias, ocupam gabinetes refrigerados. Os mocinhos cuidaram de fugir. Sabem que os marginais eleitos pelo povo não perdoam.

Cidade valente é esta. De povo heroico, como se apregoa. Tal lenda teve origem no distante 13 de junho de 1927, quando arrepiaram carreira daqui o temido Virgulino Ferreira (o Lampião) e a sua corja de facínoras. Segundo historiadores, capturaram o cangaceiro Jararaca, que sofrera um balaço. Também disseram que Jararaca, inerme e às vascas da morte, foi agredido na cadeia e enterrado vivo no Cemitério São Sebastião. Anos depois, ironicamente, ele se tornou santo milagreiro.

Daí para cá nunca mais se falou nem se escreveu outra coisa nesta prosaica terra libertária. A fatuidade da resistência e a apoteose lampiônica, sob as quais ainda vivemos, e cujos holofotes pairam menos sobre os defensores que sobre os invasores, abafou, desprezou várias expressões de arte. Tornaram-se invisíveis aos olhos dos nossos governantes, salvo exceções, coisas como literatura, música, artesanato, pintura. Exceto se tais manifestações artísticas requentam o tema cangaço. Como ocorre, sem demérito algum, com o espetáculo “Chuva de Bala no País de Mossoró”.

Com pouco mais de duzentas e sessenta mil almas (possuía cerca de vinte mil quando do ataque do perigoso Lampião), tenho com este meu berço esplêndido um vínculo de amor e desgosto. Isso, no entanto, não me diminui nem me empobrece. Acho até que me fortaleço com as experiências por que passei, desagradáveis quanto boas. Aqui nasceu e frutificou o meu sacerdócio com a literatura.

Devo a esta capital do oeste potiguar toda a minha produção, seja no verso, seja na prosa. Devo-lhe os poucos livros publicados, os que tenho na gaveta e outros que ainda hei de produzir, caso sobreviva a uma bala “perdida’. Devo-lhe as personagens e enredos, as ambições, as inspirações e as pequenas glórias.

É prudente, enfim, que se escreva sobre aquilo que se conhece. Exceto no caso de vasta pesquisa. Enquanto ficcionista, o que me julgo ser, não posso produzir apenas fantasias, textos puramente imaginários. Triste do ficcionista que só consegue escrever ficção, capacidade esta que me parece cada vez menos acreditável. O talento imaginoso não pode prescindir da sua cota de veracidade.

Temos que ser vistos além da pirotecnia, dos foguetórios, da pantomima. Mossoró é coisa de cinema! Ficará muito bem na fita ao ser retratada pela sétima arte. O que não falta neste cafundó do judas é diversidade humana, tipos singulares e profusão de causos. O mundo precisa conhecer este município.

Aqui, além do que acho apropriado chamar de novo cangaço, da violência que assalta à mão armada e não raro descamba para um latrocínio, existem (volto a dizer) os bandidos engravatados. Contra esses pouco ou quase nada se pode fazer. Pois a blindagem, os compadrios e os conchavos vão livrando a cara dos excrementíssimos, como naquela expressão do influenciador digital Felipe Neto contra o senhor Arthur Lira (PP-AL), atual presidente da Câmara dos Deputados.

É isso. A história pretérita e contemporânea deste meu querido fim de mundo merece ser retratada pela sétima arte. Lugar de muita gente boa e de outras figuras dignas de destaque. Afinal de contas Mossoró é um país.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 30/06/2024 - 10:26h

Aquela senhora

Por Bruno Ernesto

Foto do autor da crônica

Foto do autor da crônica

Recentemente voltei à ilha da Sardenha, na Itália, para rever meu amigo Armando Paolo e matar um pouco a saudade daquela ilha paradisíaca localizada no mar Mediterrâneo e ao Sul da Córsega, com uma história de mais de cento e cinquenta mil anos de atividade humana, sendo a ilha toda um um sítio arqueológico a céu aberto.

Lá podemos ver estradas e construções romanas, torres mouras e o mais interessante, os gigantescos nuraghes, que são torres circulares de pedras sobrepostas, erguidas há mais de cinco mil anos.

Essas construções são muito parecidas com uma gigantesca chaminé, algumas chegando a ter trinta metros de altura e com muitas derivações com torres menores, como se fossem uma pequena cidade medieval ou uma pequena vila fortificada, e que vistas de cima, parecem uma grande colmeia. São imensas, e até hoje são um verdadeiro mistério como foram construídas, pois para quem põe os olhos nelas e pode explorá-las, numa caminhada um tanto difícil, facilmente constata que seria muito complicado de erguê-las com a tecnologia que apenas hoje dispomos, imagine há cinco mil anos.

É tão impressionante e misterioso, que até o famoso escritor e teórico de civilizações antigas, o suíço Erich von Däniken, registrou no seu célebre livro, “Eram os Deuses Astronautas?”, o grande mistério da civilização nurágica o que, de fato, é muito intrigante, pois quando tive a primeira oportunidade de entrar num desses nuraghes, simplesmente não acreditei que pudesse ter sido erguido por mãos humanas há mais de cinco mil anos. E toda vez que vejo um deles fico impressionado.

Dessa vez fomos ao Su Nuraxi, que é um sítio arqueológico nurágico localizado em Barumini, e que foi descoberto pelo arqueólogo Giovanni Lilliu na década de 1950, e que foi eleito patrimônio mundial da UNESCO no ano1997.

Realmente, de todos nuraghes que vi e entrei, esse era, de longe, o mais impressionante e bem preservado. Simplesmente gigantesco.

Por ser um sítio arqueológico muito conhecido, a prefeitura local criou um centro turístico muito bem organizado, contando, inclusive, com guias profissionais que percorrem todo o sítio arqueológico com os visitantes, explicando detalhadamente todos os locais que acessamos, inclusive a gigantesca torre principal, cujo acesso é uma verdadeira aventura, e quem tem medo de altura ou claustrofobia, certamente terá dificuldade.

Uma coisa que me chamou bastante atenção quando nos dirigíamos para o portão de acesso ao sítio arqueológico, foi que no nosso grupo de visitantes formado naquele horário, havia uma família de pessoas de meia idade que pareciam há muito tempo não se verem e estavam ali a passeio; talvez visitando parentes na cidade ou região.

Dentre eles, uma senhora muito bem agasalha – fazia uns oito graus -, com uma roupa de lã preta, usando uma bengala e que andava com uma certa dificuldade, e a considerar que na ilha da Sardenha há a característica de grande longevidade dos moradores, inclusive com um grande número de pessoas centenárias, aquela senhora aparentava noventa anos de idade, ou mais.

Quando a guia convidou a todos para seguí-la, o grupo, formado por umas dez ou doze pessoas, iniciou a caminhada em direção ao sítio arqueológico que ficava à uns duzentos, metros do portão de entrada, momento em que percebi que duas das mulheres que acompanhavam aquela senhora conversavam um tanto apreensivas com ela, dizendo que era perigoso para ela e que ela não conseguiria entrar no nuraghe, pois precisava subir uma grande e estreita escada para acessar o interior da torre e do complexo de câmeras principal.

Ao tempo que passava por elas, pude ver que aquela senhora tentava convencê-las de que tinha plena capacidade física para acompanhá-las, e vez ou outra apontava para o gigantesco nuraghe e mostrava a sua bengala para as mulheres, que calmamente diziam que era melhor ela aguardar sentada num banquinho que fica à beira da estrada de acesso ao complexo arqueológico, em baixo de uma oliveira que balançava com aquelas rajadas de vento congelante.

Quando vi que ela não tinha mais argumentos, calou-se e, pude perceber, nitidamente, sua impotência e resignação, e com um semblante de tristeza, umas daquelas mulheres que a acompanhava a levou gentilmente para o banco, onde sentou com uma certa dificuldade e ficou nos olhando impotente.

De fato, não havia a mínima possibilidade daquela senhora nos acompanhar. A verdade é que até eu tive uma certa dificuldade para subir as escadas e andar por entre as câmaras do complexo das torres principais.

Antes de subirmos a torre principal, a guia nos levou para uma caminhada por entre o complexo, que consistia em pequenas ruínas das torres menores, e após uns trinta ou quarenta minutos de explicações e caminhadas, nos dirigimos à torre principal, que devia ter quase trinta metros de altura, e lá de cima, ao longe, pude ver aquela senhora sentada sozinha no banco, olhando para nós.

Achei tão triste aquela cena, que a filmei. E durante todo o restante do passeio fiquei imaginando o que se passou na vida daquela senhora. Há quanto tempo aquelas mulheres que a acompanhavam não a viam. Será que eram as suas filhas? Talvez sobrinhas? Netas?

Após o passeio no interior da torre principal, rumamos para a saída do complexo e novamente fiquei fitando aquela senhora que continuava ali sentada e só se levantou quando aquelas mulheres se aproximaram novamente dela.

Como estavam a uma certa distância de onde estava parado vendo aquela cena, apenas pude ver que conversaram efusivamente, erguendo os braços e gesticulando, enquanto apontam para o nuraghe sorrindo. Não pudemos escutar o diálogo delas.

Após alguns instantes, deixamos o local e, desde então, a imagem daquela senhora sentada sozinha naquele banco ficou na minha mente, e fiquei a me perguntar: quem seria aquela senhora?

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 23/06/2024 - 16:12h

Os livros franceses

Alliance Française em Paris (Foto: reprodução)

Alliance Française em Paris (Foto: reprodução)

Por Marcelo Alves

Todo livro tem uma história por detrás da sua concepção e parto. Acredito que as histórias de “Essais français: droit et philosophie en édition bilingue français/portugais” (“Ensaios franceses: direito e filosofia em edição bilíngue francês/português”) e “Littératures françaises: récits sur les livres et les écrivains en édition bilingue français/portugais” (“Literaturas francesas: crônicas sobre livros e escritores em edição bilíngue francês/português”), livros siameses, que agora jubilosamente entrego aos leitores, merecem ser contadas.

Alguns acontecimentos foram decisivos para as suas existências.

Espiritualmente, “Essais français” e “Littératures françaises” são o fruto tardio da minha estada, em 2006, na capital da França. Então, com “Paris é uma festa” na cabeça, eu para lá parti. No Brasil, havia deixado coisas inacabadas, que perturbavam a minha paz. A ideia era passar alguns meses longe delas. Tomei quarto num pequeno hotel na Rue Madame, em Saint-Germain-des-Prés. E matriculei-me na Alliance Française de Paris, nas abas do bairro de Montparnasse, pertinho de onde eu estava morando. Foi uma das mais acertadas decisões que já tomei.

A Aliança de Paris, mais do que uma escola, é um espaço cultural fantástico. Aqueles meses sabáticos e alegres foram uma catarse. Se aprendesse uma palavra, estava ótimo. Escrevi quase nada, é vero. Mas bebi muito. Café, vinho e outras coisas mais, embora não quisesse fazer parte de geração perdida alguma. Coisas inusitadas aconteceram. E há uma frase mais que famosa de Hemingway: “Se, na juventude, você teve a sorte de viver na cidade de Paris, ela o acompanhará sempre até ao fim da sua vida, vá você para onde for, porque Paris é uma festa móvel”.

Essais français” e “Littératures françaises” são ainda efeitos colaterais – positivos, bien sûr – da pandemia do Covid-19. Uma limonada que busquei fazer de um trágico limão. Naqueles meses de isolamento, estive refazendo o curso da Aliança Francesa, vinculado à sua sede de Natal/RN (cujo presidente do conselho de administração, Eduardo Gurgel Cunha, assina o prefácio de “Essais français”).

Comecei a escrever em francês para a Aliança, como era demandado no final do curso, e em português, sobre a mesma temática, para as minhas colaborações na Tribuna do Norte e no Diário de Pernambuco (vocês identificarão algumas nos livros). Constatando a existência de um bom material bilíngue, decidi traduzir todas as minhas crônicas, sobre as “coisas” da França, do português para o francês. Deu uma trabalheira dos diabos. Mas, aparentemente, deu certo. Assim me disseram. Eu acreditei. E decidi fazer a coisa avançar e crescer em forma de livros.

É por esse momento que surge o meu contato com a Aliança Francesa do Recife, por intermédio de amigos Procuradores da República, também amantes da língua de Molière, com quem trabalho na capital de Pernambuco. Fui muitíssimo bem atendido, tanto por Maria de Lourdes de Azevedo Barbosa (presidente do conselho de administração e autora do prefácio de “Littératures françaises) e Stéphane Garin (diretor executivo). Associei-me à Aliança do Recife. Eles me colocaram em contato com Heloísa Arcoverde de Morais, que “assina” a revisão da tradução. Com esse apoio, o material estava, digamos, quase “pronto”.

Os conteúdos de “Essais français” e “Littératures françaises” representam minha curiosidade transdisciplinar sobre o direito, a política, a filosofia, a arte e a literatura da França e da francofonia. Coisa de francófilo atrevido. E as traduções? Maior atrevimento ainda.

Mas sobre o conteúdo e, especialmente, sobre a forma/tradução dos livros, eu tratarei na semana que vem.

Deixem-me agora convidar todos vocês para os lançamentos: em Natal/RN, no dia 24 de junho de 2024, às 18 horas, na Aliança Francesa, sita na Rua Potengi, nº 459, bairro de Petrópolis; em Recife, no dia 25 de julho de 2024, às 19 horas, na respectiva Aliança Francesa, sita na Rua Amaro Bezerra, nº 466, bairro do Derby.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 23/06/2024 - 07:22h

Animal exótico

Por Marcos Ferreira

O autor em fotografia de José Arimatéia

O autor em fotografia de José Arimatéia

Seria bom que eu estivesse de barba feita e usando uma loção mais forte ou marcante. Contudo a foto saiu desse jeito. Foi, digamos, um raro ensejo de bem-estar em meio aos ruídos e vaivém de tanta gente desconhecida.

Aqui estou inserido na “vida em rebanho”, como diria meu amigo multifacetado (pensador, filósofo contemporâneo) Antonio Alvino da Silva Filho. A foto foi batida por outro amigo, o designer e artista gráfico José Arimatéia. Pois bem. Eis a fuça deste escriba num momento de relax com seus “semelhantes”. Essa sem-cerimônia ocorreu na área externa do Partage Shopping, onde nossa marca Verboletras expõe uma variedade dos seus produtos por ocasião do evento denominado Feira Bangalô, que acontece às segundas e terças e só dura até o próximo dia 25 de junho.

Talvez alguém diga que tal assunto é irrelevante para este espaço dominical, passarela onde desfilam cronistas e articulistas do melhor naipe. Julgarão ainda menos apropriada a imagem que escolhi para ilustrar meu texto. Ou seja, uma espécie de autopromoção; de exibicionismo, dirá um leitor mais duro.

Bom, meus caríssimos, a propaganda está feita. Tanto dos produtos Verboletras quanto do autor destas linhas. Todavia a questão não é bem essa. O que me impele a assim proceder é o estado de espírito em que me encontro ao longo desses dias. Acho isso digno de nota. Ou melhor, de uma crônica. Porque não é do meu feitio e pendor expor-me de tal modo, sair da toca, permitir-me uma interação com caracteres sociais que nunca vi mais gordos. Sim, este animal exótico mostrou a cara.

Conselhos não me faltaram. De outra feita Elias Epaminondas, por exemplo, andou por aqui, tomamos um cafezinho e ele tocou nesse ponto durante o bate-papo. Referiu-se à importância de (vez por outra) eu buscar justamente conhecer alguns lugares de Mossoró. Citou, a propósito, as cafeterias da urbe.

“Há pelo menos umas duas ou três de que você vai gostar”, afiançou Epaminondas. É isso aí. Elias considera salutar que eu lute contra a minha natureza arredia, algo que de tempos em tempos adquire maior intensidade. Meu psiquiatra e amigo Dr. Dirceu Lopes joga no time de Elias. Dr. Dirceu não se ancora apenas nos psicofármacos. Recomenda-me, entre outras coisas, que eu ingresse em uma academia de musculação. Considero esse ponto uma prova de fogo. Pois sei que sofreria horrores com as doses cavalares de dejetos sonoros que rolam nesses lugares.

A verdade é que se trata de algo que venho empurrando com a barriga. Mas estou inclinado a enfrentar o desafio. Protetores auriculares ou fones de ouvido (com músicas do meu agrado) podem mitigar o desconforto.

Portanto, com o estímulo de amigos e tornando minhas fraquezas em forças, este animal exótico tem figurado como um tipo caricato de mascote da Verboletras na Feira Bangalô, no Partage Shopping, neste mês de junho. Então, como não bastasse, ainda se deixou fotografar pelo amigo José Arimatéia. Além disso, quiçá para o desagrado de alguns leitores, transferi esta fotografia para cá.

Perdoai-me quem me perdoar possa.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 16/06/2024 - 12:04h

Louco e pecador

Por Marcos Araújo

Ilustração da Web

Ilustração da Web

Semana que passou, Paulo Doido (veja AQUI) se foi para a eternidade. Fazia parte de um tipo social em extinção: o “doido” de rua; aquele que passa o dia em movimento, interagindo com os transeuntes. Sempre tive pendor especial em gostar desses tipos. Na minha infância, tinha “Ciço Doido”, vítima de perturbação dos moleques, objeto perene de minha defesa quando estava por perto. Mossoró, no passado, teve Zé Alinhado, que de tão célebre virou nome de rua…

Por assimilação com as esquisitices para um comportamento social padrão, assim como Ariano Suassuna, sempre gostei dos doidos. Meus amigos de infância, adolescência e idade adulta não passariam, decerto, por uma avaliação diagnóstica negativa de um psiquiatra residente. Nem eu, muito menos…

Na Antiguidade grega, a loucura tinha um caráter mitológico que se misturava à normalidade. O louco era uma espécie de ponte com o oculto. Para Platão, a loucura tinha como causa o desequilíbrio entre as três mentes (a racional, a emotiva e a instintiva). Na Idade Média, a partir da visão dos textos de grandes pensadores religiosos como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, o comportamento anormal era tido como um pecado.

Para eles, o que separava o homem do animal era o dom da razão. Se o homem a perdesse, logo se reduzia a um animal. Graças ao médico francês Philippe Pinel, desde 1783 a loucura deixou de ser uma questão social para ser uma questão médica.

Sempre vi muita graça nos personagens loucos e/ou nos autores literários desequilibrados. Não são simples frases pronunciadas, são imorredouros epitáfios filosóficos. Quem já não replicou “ser ou não ser, eis a questão” (Hamlet, o personagem louco de Shakespeare)?

Lembrando o ingenioso hidalgo Don Quijote de La Mancha, a “loucura é ter muita razão e pouca verdade”. Vivo em busca dos sonhos, longe, muito longe da sabedoria atual e do realismo mágico e do sucesso pregado pelos autores neurolinguistas (uma “praga” literária que se conta aos milhares no mundo todo!). Auguro valores e sentimentos que me afastam do bem-sucedimento capitalista de quem quer acumular.

Paulo era um tipo popular muito querido em Mossoró (Foto: Reprodução)

Paulo era um tipo popular muito querido em Mossoró (Foto: Reprodução)

Sou estroina e pródigo por excelência. Invoco em minha defesa Machado de Assis, e o personagem Dr. Simão Bacamarte de “O Alienista”: “Em si mesma, a loucura é já uma rebelião. O juízo é a ordem, é a constituição, a justiça e as leis.”

Michel de Foucault, na História da Loucura, diz que a sociedade possui “instituições de controle” (família, igreja, justiça etc.), que impõe a todos como agir, falar, vestir, enfim, como ser “normal”. Estar ajustado a esse padrão é ser normal, ajuizado, fora dele, é loucura. Fujo desta normose social. Sou confessadamente um ser fora do contexto social do equilíbrio, uma paráfrase viva do verso de Ferreira Gullar: “Uma parte de mim pesa e pondera. Outra delira.”

Em “Crime e Castigo”, Dostoievsky coloca na autoexaminação da consciência a detecção de sua própria valia: “A consciência é uma voz interior que nos adverte que alguém pode estar olhando.” Sinceramente, o que o pensar social não me importa muito. Sylvia Plath, autora inglesa depressiva e louca para os padrões comportamentais britânicos, em sua autobiografia “A Redoma de Vidro”, proclama: “Eu sou eu e a minha circunstância, e se não a salvo, não a salvo a ninguém.”

Não ligo muito para as considerações alheias sobre mim. Eu sei quem eu sou. Carlos Drummond de Andrade sustentava que as nossas alucinações são alegorias de nossa realidade. A loucura é diagnosticada pelos sãos, que não se submetem a diagnóstico. Somos lúcidos na medida em que perdemos a riqueza da imaginação. Por isso, quero ser um sonhador eterno.

Voltemos a Santo Agostinho. A coisa com ele só piora. Para ele, a loucura é uma forma de pecado. Na obra A Cidade de Deus, Santo Agostinho diz que o pecado é uma forma de loucura espiritual que afasta o ser humano de Deus: “Pois que é a culpa, senão loucura? Ora, todo pecado é uma loucura: ou porque, cometido, se não teme o castigo, ou porque, temendo-o, não se resiste a cometer.” (Livro XIV, Capítulo 13).

Ora, se ser um “louco” já é um epíteto difícil, que dirá se reconhecer louco e pecador. Ninguém em sã consciência assim se diz. Shakespeare, numa fala de Hamlet, retrata bem a nossa covardia na autoexaminação: “a consciência faz covardes de todos nós.” O escritor irlandês Oscar Wilde, em “O Retrato de Dorian Gray”, confessa: “Há pecados de que se pode falar. Mas há outros, tão vergonhosos, que a boca os repele, os olhos os recusam a ver e o ventre, até os nega, afirmando que não são.”

Pois bem. Numa constatação consciente, descumpro todas as convenções sociais, fujo do estereótipo do controle da “máquina” realista, e dentro da minha liberdade de alma, proclamo com sinceridade a minha loucura e o meu pecado. Tomando de empréstimo novamente Dostoevsky, em “Crime e Castigo”: “Todas as pessoas são pecadoras e eu, mais do que ninguém.”  

Lima Barreto, um dos mais geniais escritores brasileiros, perseguido e ignorado por ser negro e louco, no autobiográfico “O Cemitério dos Vivos” (1881-1922) escreveu que: “Perto do louco, quem os observa bem, cuidadosamente, e une cada observação a outra, as associa num quadro geral.”

Alguém lendo este texto poderia pensar como a personagem Alice, do livro de Lewis Carrol (na verdade, o autor é Charles Lutwidge Dodgson, que em 1865, sob o pseudônimo de Lewis Carroll, publica a obra mais célebre do gênero literário nonsense, “Alice no País das Maravilhas”), que seria melhor não ter nenhum contato comigo. Relembrando o diálogo de Alice com o gato:

– “Mas eu não quero me encontrar com gente louca”, observou Alice.

–  “Você não pode evitar isso”, replicou o gato.

– “Todos nós aqui somos loucos. Eu sou louco, você é louca”.

– “Como você sabe que eu sou louca?” indagou Alice.

– “Deve ser”, disse o gato, “Ou não estaria aqui”.

Viver neste mundo atual não comporta sanidade.

Simão Bacamarte tem razão: temos todos um pouco de loucura! Feliz é quem, em sã consciência, se assume…

Marcos Araújo é advogado e professor da Uern

Leia tambémLinhas póstumas – por Marcos Ferreira

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domingo - 16/06/2024 - 11:22h

Quindão

Por Bruno Ernesto

Foto do autor da crônica

Foto do autor da crônica

Nunca fui um apreciador de doces e bolos, sendo minha lista de preferência bem restrita.

Para quem me conhece, sabe que prefiro comida salgada e, graças à genética, por não ter tendência à hipertensão, posso manter o paladar satisfeito, apesar dos carões e protestos de quem me vê. Para amenizar as críticas, tenho adotado flor de sal.

Quando eu era criança, minha mãe fazia um bolo de cenoura com cobertura de chocolate que era uma iguaria sem precedentes, e que, apesar de ser um bolo simples e muito conhecido, nunca comi um melhor do que o dela.

Por sinal, faz um bom tempo que não vejo um exemplar dele lá na casa dela, além do que, talvez ela fique até surpresa com o valor que cobram por uma fatia de um bolo de cenoura.

Dia desses, parei para tomar um café e avistei um exemplar de um bolo de cenoura na vitrine ao preço de R$14,00, a fatia.

A plaquinha do preço sequer indicava se a cenoura era orgânica, se a manteiga era da Normandia, de qual região da França era a farinha, se o leite era de uma vaca holandesa premiada, se o açúcar era demerara de um lote exclusivíssimo da extinta Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, ou mesmo se a não generosa cobertura de chocolate era da famosa marca suíça Lindt. Quanto aos ovos, imagino que seja da fábula de Esopo.

Comi uma fatia, mas não chegou nem aos pés do bolo de cenoura que minha mãe faz com ingredientes locais.

Já provei inúmeros doces e bolos mundo afora, mas os que mais gosto são as receitas simples, sem muita firula.

Claro. Evidente. Concordo. As novas receitas e sabores são mais que bem-vindos.

Desde que se possa comer sem culpa, nem se precise utilizar a célebre frase de Tim Maia, que ao ser indagado acerca da sua dieta, soltou a pérola, de que em duas semanas de dieta, tinha perdido 14 dias.

E torno a registrar: não quero morrer sadio.

Se serve de alento –  para mim – tive uma grata surpresa ao retornar a uma padaria próximo à minha casa em Natal e ver que a tradicional padaria inovou o tradicional doce português, já naturalizado brasileiro, quindim.

Quando fui pegar uma baguete na prateleira, de relance, e de soslaio, vi aquele amarelão reluzente, do tamanho de um prato, com uma plaquinha dizendo: açúcar refinado, gema, leite integral, côco ralado e manteiga. Quindão.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

 

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domingo - 16/06/2024 - 10:38h

A pós-leitura

Por Marcelo Alves

Georges Simenon (Foto: reprodução da Crime Reads)

Georges Simenon (Foto: reprodução da Crime Reads)

É costume meu, antes de viajar para o exterior, ler um livro cuja história/estória esteja ambientada na cidade/país para onde eu vou. E, em casos mais extremos, os próprios livros foram os móveis que me levaram a viajar ou mesmo passar uma temporada no ambiente lido. “Amor a Roma” (1982), do nosso Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990), foi um deles; “Paris é uma festa” (“A Moveable Feast”, 1964), de Ernest Hemingway (1899-1961), outro.

Os respectivos títulos já informam sobre quais urbes estamos tratando. É delicioso, asseguro.

Em caso de estadas mais longas, a exemplo de quando fiz meu doutorado em Londres, os livros, seus autores e suas personagens foram os meus companheiros. Já recordei, em outras ocasiões, a epifania que tive nos jardins de Russell Square, onde fica a Biblioteca do Instituto de Estudos Jurídicos Avançados da Universidade de Londres, numa tarde de verão: a cena do livro que lia, da minha amiga Agatha Christie (1890-1976), se passava ali, onde eu estava. E, daí em diante, eu passei a misturar tudo: Londres, literatura e direito.

Sempre que podia, ia ler a Rainha do Crime ou as aventuras do detetive Sherlock Holmes nos locais onde as cenas se passavam. Recordo-me de haver lido “Testemunha de Acusação”, a peça de Christie, nos dias em que visitamos, como programação da minha universidade, a Old Bailey, sede das cortes criminais de Londres, onde a trama se passa. Foi tudo de bom. E quando esse tipo de leitura “presencial” era impossível, como em “Morte na Mesopotâmia” ou “Morte no Nilo”, eu me enfurnava no Museu Britânico, para ler os livros ali, junto aos despojos daquelas civilizações. Divertidíssimo. Sempre digo que, à época, a literatura me salvou. Tornou a vida menos difícil, certamente.

Mas, desta feita, na última Páscoa, quando estivemos em Londres e Paris, não houve tempo para essas “leituras”. Nem antes e muito menos, com o pequeno João demandando nossa atenção, nos dias corridos por lá. Turista besta sofre…

Decidi, então, inverter a ordem dos fatores e fazer uma “pós-leitura”. Isto é: ler, já de volta ao querido Brasil, um romance ambientado nas metrópoles onde estivemos. E a minha primeira escolha, começando por Paris, foi um Maigret, do meu amigo Georges Simenon (1903-1989), especificamente “Maigret e o homem do banco”, numa edição da Nova Fronteira/L&PM de 2004.

GOSTOSAMENTE, descobri que vários sítios onde havíamos estado ou passado eram referidos no livro como parte do seu “cenário” parisiense. Começando, claro, pelo complexo do Palais de Justice, notadamente o número 36 do Quai des Orfèvres, onde está o quartel-general da Polícia Judiciária do inspetor Maigret, “la mansion”, como chama a personagem-título. No miolo de Paris, na Île de la Cité, sempre que posso passo pelo Palais de Justice para sacar umas fotos “legais”. Boa parte da trama do livro se dá na zona dos grandes bulevares na Rive Droite. O crime acontece em um beco do Boulevard Saint-Martin. O morto frequentava um cinema no Boulevard de Bonne-Nouvelle.

Personagens almoçam em um restaurante do Boulevard de Sébastopol. Coincidentemente, nesta viagem, perambulei bastante pelo burburinho dos grandes bulevares, sobretudo pelos Boulevards Haussmann e Montmartre, quando a mãe de João decidia dar suas xeretadas nos grands magasins do pedaço – leia-se Printemps e Galeries Lafayette –, me deixando tomando conta do pequeno. Não tenho do que reclamar. No mais, já para as bandas da Rive Gauche, uma das personagens trabalha “numa grande livraria do Boulevard Saint-Michel”. Será que era numa das livrarias que ainda “sobrevivem” por lá? Será que é a mesma onde tinha eu acabado de comprar, de vera, uma penca de livres d’occasion? E fui lendo o romance sonhando acordado…

Gostei tanto da minha experiência de pós-leitura que já passei para um segundo Simenon: “Maigret e o negociante de vinhos”, numa publicação L&PM de 2009. Aqui se investiga o assassinato de “uma figura importante, um atacadista de vinhos”, quando ele saía de sua visita à amante em uma luxuosa casa de recursos nas imediações do Parc Monceau, área aristocrática de Paris. O rico homem dos vinhos morava em plena Place des Voges. Oficialmente, tinha uma belíssima e misteriosa esposa. Tudo très chic, bien sûr.

Bom, eu já tomei muito vinho na vida, sobretudo quando jovem. Mas eles eram de qualidade mediana ou mesmo duvidosa. Quanto aos ambientes que já frequentei, melhor não entrar em detalhes. Certamente não frequento, nem nunca frequentei, com ou sem taças na mão, as altas rodas de Paris. Mas não custa nada sonhar acordado. Mesmo que em literatura.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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