• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 25/07/2021 - 06:44h

Um simples vaga-lume

vaga-lumePor Marcos Ferreira

Nestas últimas noites, depois que apago a luz do quarto e estendo sobre a cama este meu fardo de carne e ossos, observo no escuro do quintal, através das grades da janela e dos ramos da samambaia, a dança nervosa dos vaga-lumes em meio à solidão orvalhada do silêncio.

Vão de um lado a outro, de baixo para cima, de cima para baixo com suas levezas e faiscações, suscitando inveja nos besouros e grilos deste arrabalde, indiferentes ao exibicionismo aéreo dos morcegos que arranham o quadro-negro do céu.

São erradios e pequeninos sóis da madrugada. Ora o vento os expulsa, apaga-lhes o brilho de néon, noutro momento os anima e os acende. Vão pontilhando as horas mortas de minha insônia com suas lanterninhas de azul fosfóreo, semelhando insólitos planetas na periférica Via Láctea deste quintal. Vêm quando já não ouço o fragor do serviço doméstico, o tilintar dos pratos e talheres, a babel cotidiana dos meus vizinhos e familiares.

Um deles penetra na atmosfera do quarto, movimenta-se pra lá e pra cá, abalroa num obstáculo e noutro, mas logo descobre o caminho de volta e se mistura à constelação móvel daqueles de sua espécie. Seguem desafiando o rigor das trevas qual diminutos lampiões que a brisa perversamente apagasse e acendesse.

Sempre eloquentes e muito anchos, nenhum galo ponteia pela vizinhança o seu canto gregoriano. E nesta hora azul do silêncio — recordando um certo bruxo de antanho —, eis que me indago intimamente, ouvindo entre as paredes de meu crânio o perpétuo rumor destes pensamentos baldios:

— Por que não nasci eu um simples vaga-lume?…

Mas não obtenho resposta. Talvez porque os pirilampos, assim como as flores, também não falam. Apenas luzem pela noite em fora, enquanto todos pesamos sobre nossos leitos, enquanto a luxúria dos gatos passeia por cima dos telhados e muros, enquanto a saparia emudece nos bueiros e as mariposas se deslumbram perante a luz artificial dos sonolentos postes de minha rua.

Então aqui os invejo e os contemplo na tosca paisagem da janela, ambicionando para esta prosa de brilho emprestado um pouco de sua autenticidade e beleza. Vieram fecundar retalhos de lusco-fusco no meu pensamento, acendendo e apagando os olhinhos azuis da Poesia. De algum modo eles compreendem que representam para mim o que ainda existe de ameno e poético nestes meus enlevos de juventude e caducidade.

O mais é tudo abandono e silêncio. Nenhum fio de luar se derrama pela fresta da telha, sequer um verso torto ou estrofe sem nexo se articula nos escaninhos do meu juízo. Apenas refaço mentalmente a inevitável pergunta de um minuto atrás:

— Por que não nasci eu um simples vaga-lume?…

Marcos Ferreira é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Amorim diz:

    Eu vi!
    Emociona!
    Parabéns.
    Um abraçaço!

  2. Luiza Maria Freire de Medeiros diz:

    Oh, que bela harmonia de palavras e sentimentos 🥰
    Poeta, você me faz sentir bem! Que os vagalumes sempre ilumine seu quintal e te inspire sempre🙌
    Ah… eu sei a resposta😍
    😘

    • Marcos Ferreira diz:

      Amiga Luiza Maria,
      Bom dia.
      Fiquei curioso por saber sua resposta.
      Grato pela leitura. Um ótimo domingo para você.
      Forte abraço,
      Marcos Ferreira.

  3. Francisco Fabiano de Sousa diz:

    Parabéns! Quem dera eu, ser um vaga-lume!

    • Marcos Ferreira diz:

      Caro Fabiano Sousa,
      Bom dia…
      Acho que precisamos de mais vaga-lumes nestes termos de treva social e política que enfrentamos.
      Forte abraço,
      Marcos Ferreira.

    • Francisco Fabiano de Sousa diz:

      Amigo Marcos! Você sempre atento e precisa no entendimento das mensagens! Abraço!

  4. Jessé de Andrade Alexandria diz:

    Nesses tempos de estio poético em nossas vidas, essas cintilações nos fazem acordar para um mundo de beleza que teima em estar vivo. E que exubera. Novalis, no seu aclamado “Pólen”, disse que “o homem genuinamente moral é poeta”. Estamos de acordo. Lembramo-nos também do Kundera de “Os testamentos traídos” (e aqui admitamos que isso é verdade), segundo o qual a obra de Kafka é superior a de Orwell porque, mesmo em meio ao totalitarismo, a poesia e o humor daquele florescem diante do horror. Cintilam, diria. Ontem, a estátua de um facínora ardeu em chamas, mas outro dia as chamas atingiram um museu. Ontem à noite (e agora, nesta manhã de um sol incandescente), vaga-lumes iluminaram uma crônica. A chama que arde convoca todos à reflexão. Por que os objetos ardem? Por que cintilam? O poeta vê um mundo que cintila, em relação ao qual muitos cegaram. É ele um homem genuinamente moral. E dele dimanam também cintilações. O poeta é tudo (ou quase tudo): até um simples vaga-lume.

    • Marcos Ferreira diz:

      Prezado Jessé Alexandria,
      Torno a dizer, sem rasgação de seda: você escreve bem e bonito. Suas impressões sobre minha crônica “Um simples vaga-lume”, para minha honra, são um facho de luz, uma lanterna de pirilampos cheia de sensibilidade e poeticidade. Muito bom tê-lo entre meus leitores neste espaço dominical.
      Forte abraço e até domingo.
      Marcos Ferreira.

  5. ROZILENE FERREIRA DA COSTA diz:

    Bom dia para todos …

    Bom dia e parabéns para vocês senhores escritores, donos da palavra. Hoje é um dia também especial, dedicado às pessoas que usam a linguagem e faz dela um instrumento para nos libertar, nos salvar e alimentar de experiências riquíssimas. Este texto, meu nobre Marcos, é uma prova contundente desse meu pensamento. Que crônica linda! Obrigada por nos presentear com sua vasta sabedoria.

    Um abraço à minha querida Natália.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querida amiga Rozilene Ferreira da Costa,
      Bom dia…
      Obrigado por suas impressões tão sensíveis e inteligentes sobre minha crônica, e pelo cumprimento pela passagem do dia do escritor. Uma honra, repito, tê-la como leitora.
      Forte abraço e até domingo.
      Marcos Ferreira.

  6. Cristiane dos Reis Braga diz:

    Talvez seja a segunda vez que os vagalumes do seu quintal me encantam, tornam os meus dias bem mais azuis com a pureza da sua poesia.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querida amiga Cristiane dos Reis,
      Bom dia…
      Que bom que esses vaga-lumes, mais uma vez, lhe proporcionaram esse encantamento. Que essa hora azul do silêncio possa continuar encantando mais pessoas.
      Forte abraço e até domingo.
      Marcos Ferreira.

  7. Rizeuda da Silva diz:

    Boa tarde, Marcos!
    Parabéns, menino! Quisera eu ser o poeta, que brinca no “azul do silêncio”, como quem produz luz através das palavras que encantam e iluminam o dia. Seja o que quiser, viajando no universo imaginativo, nas asas firmes da poesia. Brilhe e sonhe! Alumbrada com sua mágica escrita. Abraço aqui das bandas do Norte, nobre poeta!
    👏👏👏👏👏

    • Marcos Ferreira diz:

      Querida amiga Rizelda da Silva,
      Bom dia…
      Agradeço muito por sua leitura e participação neste espaço, mas, não menos que você, estou encantado com a sua competência, com a sua capacidade de expressar tão bem e lindamente suas percepções. Dá gosto ler tudo que você escreve. Até num “simples” comentário acerca de uma crônica de pirilampos você brilha e dá show. Que bom, que honra ter você como leitora.
      Forte abraço e até domingo.
      Marcos Ferreira.

  8. Alcimar Jales diz:

    Boa tarde meu amigo, Marcos Ferreira.
    Q os vagalume continue te iluminando em vesos e prosas. Mais presidente, em crônicas.
    Um bom domingo!!!!

    • Marcos Ferreira diz:

      Caro amigo Alcimar Jales,
      Bom dia…
      Obrigado, mais uma vez, por sua leitura e presença neste espaço de opinião, informação e cultura. Uma ótima semana para você e um forte abraço.
      Marcos Ferreira.

  9. Marcos diz:

    Vaga-lumes faz parte de minha infância, triste das crianças e jovens que nunca se quer viram, os que sabem o que é só sabem por leitura, felizes daqueles passam a saber por uma crônica bonita e tocante como essa. Parabéns meu amigo !

    • Marcos Ferreira diz:

      Meu caro Marcos Rebouças,
      Bom dia…
      Alegra-me saber da sua afinidade com o universo e magia dos vaga-lumes. Nós, eternos meninos curiosos e buliçosos, conhecemos bem esse encantamento luminescente. Grato pela leitura e até domingo.
      Marcos Ferreira.

  10. Francisco Amaral CAMPINA diz:

    Me fez voltar aos anos 70, em Campina Grande PB, um infância com muitos vagalumes em um campo de futebol que chamávamos de (Campo da graminha) com cantos das rãs e muitos vagalumes. Mais uma vez, Parabéns companheiro.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querido Francisco Amaral Campina,
      Bom dia…
      Uma alegria, sempre, contar com sua leitura e participação neste espaço. Alegra-me, também, conhecer sua identidade com os vaga-lumes, tema de minha crônica. Nós, meninos das “antigas”, tivemos a felicidade de nos ocuparmos com essas pequenas maravilhas da natureza. Um grande abraço e uma ótima semana para você.
      Marcos Ferreira.

  11. Airton Cilon diz:

    Belo texto meu poeta escritor. A propósito, feliz dia do escritor!

    • Marcos Ferreira diz:

      Caro poeta Airton Cilon,
      Bom dia…
      Obrigado pela leitura e comentário. Em tempo, amigo, feliz dia do escritor pra você também.
      Forte abraço,
      Marcos Ferreira.

  12. Rocha Neto diz:

    Grande Marcos, brilhantemente usando a luz de sua invejável inteligência, você me remete a infância vivida em parte no meu torrão berço Portalegre; nas minhas peraltices de menino criado com as noites iluminadas pelo fogo das lamparinas abastecidas com o querosene da marca Jacaré, Portalergre com suas ruas e becos escuros pois não possuía luz eléctrica à epoca, Deus vez por outra nos dava uma nuvem de presente e esta era palpável pois a mesma era composta pelos insetos denominados popularmente de vaga-lumes, acho que o único no mundo a possuir a luciferina, substância capaz de produzir raios de luz em seu abdômen, e o melhor de tudo é que os mesmos tornavam-se brinquedos para muitos companheiros meus que com pano em mãos fazíamos a captura dos vaga-lumes para colocar aprisionados em uma garrafa de vidro branco para nos encantarmos com a sua luz esverdeada e vez por outra até passarmos em nossas camisas para ver as listras de luz que estampavam o tecido por alguns segundos.
    Quantas vaga-lumes humanos nesse nosso mundo de meu Deus existe caro amigo ? Não sei e você também não!
    Mesmo assim fico feliz em comentar tão bela e rica crônica com detalhes, escrita por um grande e inteligente vagalume homem que tem luciferina no cérebro iluminado pela luz da inteligência que Deus te deu e que atende pelo nome de Marcos Ferreira, e que todos os domingos nos ilumina com riquíssimas crônicas oriunda daqueles que possui a maestria do saber escrever. Inté a próxima.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querido amigo Rocha Neto,
      Bom dia…
      Que presente você me deu com esse seu lindo comentário. Um comentário que por si só já é uma pequena e bela crônica memorialística. Você tem pensamentos bonitos, meu caro, e, consequentemente, escreve com beleza. Digo, portanto, que você precisa participar deste espaço não apenas como comentarista, mas, também, como cronista. Você tem muito o que contar e sabe fazer isso com admirável qualidade. Grato, mais uma vez, por sua leitura e tocante depoimento.
      Forte abraço e até domingo.
      Marcos Ferreira.

  13. Valdemar Siqueira Filho diz:

    Maravilhoso texto. Penso que a harmonia entre a luz e o escuro nos separam da natureza, sempre buscamos um contra o outro. Abração.

    • Marcos Ferreira diz:

      Prezado Valdemar,
      Bom dia…
      Faço minhas suas palavras. Temos, sim, essa eterna e inescapável relação com a luz e as sombras, com o claro e o escuro. Desde os primórdios, desde as cavernas, desde o útero da vida. Grato pela leitura e comentário. Forte abraço e até domingo.
      Marcos Ferreira.

  14. Marcos Aurélio de Aquino diz:

    Meu caro, muito obrigado pela leveza e profundidade das suas palavras. Muito me acalme e faz refletir sobre a beleza da simplicidade.

    • Marcos Ferreira diz:

      Prezado Marcos Aurélio de Aquino,
      Bom dia…
      Eu que agradeço, sempre, por sua leitura e opinião. Que bom que minha crônica lhe proporcionou essa reflexão e sensação leve, como você disse. Um grande abraço e uma ótima semana para você.
      Marcos Ferreira.

  15. VANDA MARIA JACINTO diz:

    Bom dia, Marcos!
    Que doçura de texto!
    Gosto de acreditar que, quando passeamos pelo nosso mais íntimo jardim, a beleza nele contida, aflora em nossa mente…
    Você não nasceu vagalume, mas, um ser iluminado, capaz de captar e traduzir tamanha beleza, nas entrelinhas da tua escrita!
    Parabéns, Poeta!

    • Marcos Ferreira diz:

      Querida Vanda Jacinto,
      Bom dia…
      Pela leveza dos vaga-lumes, suavidade e luminescência do seu voo dentro da noite escura, entre outros aspectos prosaicos, arrisco dizer que essa crônica lembra a sua escrita cheia de brandura e delicadeza. Isto, obviamente, a mim proporciona um certo orgulho. Um grande abraço e até domingo.
      Marcos Ferreira.

  16. Simone Martins diz:

    Querido Marcos,
    Seus textos irradiam luz, beleza, pura poesia que faz aflorar em nós uma gama de sentimentos!
    Parabéns!

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2024. Todos os Direitos Reservados.