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domingo - 18/09/2022 - 08:20h

A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 14

Nas águas do rio Mondrongo

Por Marcos Ferreira

Como urubus à espera de uma carniça boiando nas águas do infecto rio Mondrongo, dezenas de curiosos contemplavam aquele corpo que já se aproximava de uma das margens. Uma equipe do Corpo de Bombeiros foi acionada e dois dos homens se lançaram nas verdes águas, nadaram até o defunto e conduziram o cadáver à parede da barragem. Colocaram-no sobre a pedra lodosa, enquanto outros bombeiros, juntamente com a Polícia Militar, trataram de interditar as duas extremidades da barragem.Lixo, detritos, curva de rio, monturo,

Ainda era cedo, por volta das sete horas, todavia o número de curiosos era demasiado. Entre aqueles que se encontravam no local, estava o escritor Jaime Peçanha, com uma mochila nas costas e usando um boné amarelo. Ele assistia a toda aquela operação de resgate de camarote, totalmente sereno, escorado numa varanda da ponte.

Quando finalmente trouxeram o corpo para o carro do Instituto Médico Legal (IML), constataram que o homem estava crivado de balas, havia até uma perfuração de um projétil no cento da testa. Ao examinarem os bolsos do sujeito, encontraram a carteira de cédulas da vítima com todos os pertences, até mesmo uma razoável soma de dinheiro. Ou seja, o crime não fora de latrocínio, mas de vingança, acerto de contas. Eis agora o nome do cidadão: Paulo César dos Anjos, justo o que enfiara o cano da pistola na boca de Jaime Peçanha na noite em que este fora espancado.

A especulação tomava conta dos circunstantes. Quem teria cometido aquele crime? Quem seria a vítima? Tratava-se, porventura, de um pescador que se afogara buscando o alimento para a família? Não. De maneira alguma. Aquele tipo ainda jovem, crivado de chumbo, era outro bem diverso de um simples pescador. Tinha antecedentes criminais e já cumprira pena por porte ilegal de armas e drogas. Nos últimos quinze meses se tornara testa de ferro do hoje empresário Rato Branco, a quem servia, sobretudo, pressionando clientes endividados em companhia dos outros capangas. Agora, como o time se via em maus lençóis, sofrera uma importante baixa.

Dali a uns quinze minutos, quando os homens do rabecão jogaram o sinistro presunto no caixão de zinco e foram embora com as sirenes ligadas, a multidão se dispersou e cada qual seguiu o seu rumo. Exceto Jaime, que ainda demorou mais tempo contemplando as águas sujas do fétido rio Mondrongo, que decerto cheiravam tão mal quanto o cadáver do indivíduo assassinado com vários balaços. Os curiosos foram embora satisfeitos por apenas testemunharem mais uma tragédia na terra das chuvas de bala no País de Mondrongo. “Neste mundo de olho por olho e dente por dente, colhemos o que plantamos. E, pelo visto, esse aí já vai tarde”, proferiu Peçanha com um ar de satisfação, deixando escapar a sombra de um sorrisinho.

— Quero ver o pavor deles — disse Jaime.

Após testemunhar o sinistro nas águas do rio Mondrongo, Jaime Peçanha seguiu direto para o Centro, exatamente com destino à Rua Jerônimo Rosado, imediações do Sebo Bate-Bucha, bem diante da loja de automóveis de Rato Branco. Ali ele permaneceu por trás do carrinho de batata frita, degustando lentamente a iguaria. Daí a pouco avistou quando os outros dois capangas de Mauro Mosca surgiram atordoados na concessionária e foram ter com Rato Branco acerca da trágica morte de Paulo César.

No escritório envidraçado, portanto, com a mão na cabeça, comunicaram o desfecho do fiel comparsa. Por sua vez, embora com os miolos fervendo, Jaime se manteve absolutamente calmo, comia o seu pacotinho de bata frita com a placidez de um monge tibetano. “Você tem aí mais um pouquinho de sal?”, perguntou ao vendedor. “Sim, aqui está. Fique à vontade”, respondeu o prestativo ambulante naquele momento.

Ali no cós, por baixo da camisa, esta com as barras totalmente para fora da calça, Jaime portava o revólver cheio de munição pronto para oito disparos. Teve ainda o ímpeto de ir à concessionário e realizar um banho de sangue, não lhe importando se sairia vivo ou morto. No seu pensamento, claro, ele acertaria primeiramente Rato Branco, realizando uma intensa troca de tiros com os demais pistoleiros.

Porém os indivíduos entraram às pressas no carro e saíram cantando pneus com Rato Branco no banco da frente. Do outro lado da rua, plácido como um monge tibetano, permitam-me repetir, Jaime degustava a sua batatinha. “Você tem aí uma água mineral geladinha?”, indagou. “Tenho”, respondeu o rapaz.

— A água refresca, mas hoje estou com sede de outra coisa. Uma bebida um pouco mais forte. Quem sabe até um bom vinho tinto?

— “A vingança é um prato que se come frio.” Um bandido já se foi. Restam apenas três. Rato Branco será o último na minha lista.

— O senhor perguntou alguma coisa?

— Não. A batatinha está uma delícia.

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Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Amorim diz:

    Parabéns por mais um capítulo!
    De fácil leitura, dada a fluidez no uso do nosso vernáculo.
    Um abraçaço querido Amigo.

  2. Bernadete Lino/ Caruaru-PE diz:

    A curiosidade aumenta: Jaime Peçanha começou a vingança? Vamos em frente! O revólver pronto para oito disparos… quantas balas estavam cravadas no presunto? Estou fazendo as contas: se gastou balas para só sobrarem oito, temos uma peneira de tantos furos! Quando o objetivo é só matar, não se gasta tanta munição! É ódio, mesmo! Jaime começa a me surpreender… parabéns, Marcos Ferreira! Você, realmente, consegue nos prender no enredo!

  3. Raí Lopes diz:

    Que bom que não fica claro que Jaime seja o autor dos disparos, embora, claro, a sua satisfação seja imensa com o ocorrido… O viés agora é “vendetta”… E com batata frita.

  4. Marcos Antonio Campos diz:

    Olá amigo, boa tarde!

    Demasiado humano, como diria Nietzsche! Não acredito na culpabilidade de Jaime, principalmente depois que ele visitou a loja de Rato Branco. “Elementar, meu Caro” Jaime! Vc tem parceiros que, ainda não conhece. Se bem que o assassino sempre volta ao local do crime, mas o risinho na varanda da ponte e doce sabor da vingança estampada no prazer da batatinha, dizem o contrário. Oremos pela vítima e e aguardemos o próximo capítulo.

  5. Raimundo Gilmar da Silva Ferreira (Gilmar) diz:

    Enredo cercado de suspense. Jaime está feliz, mas não é possível afirmar que ele seja o autor dos tiros, pois o seu revólver ainda tem muitas balas.
    Interessante comparar a putrefação do cadáver com a situação lamentável do rio.
    Nesse sentido, além do drama com as pessoas o autor coloca um olhar ecológico nesse capítulo do seu livro.
    Parabéns ao mestre das letras.

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