Por Marcos Ferreira
Ficaram de campana por mais de duas horas, entre a meia-noite e as três da madrugada. Daí a pouco, enfim, meio trôpego, o indivíduo deixou o galpão da jogatina. Dentro do carro, um sedã preto com vidros fumê, Jaime portava seu tresoitão com capacidade para efetuar oito disparos. Por sua vez, no banco do motorista, o traficante João Claudione retinha na cintura uma pistola calibre 45. O alvo dos dois àquela noite de persistente garoa não era outro senão o capanga do Rato Branco, o pau-mandado e lambe-botas conhecido nos meios policiais por Paulo César dos Anjos. Este fora o valentão que enfiara o cano da pistola na boca de Jaime.
— É ele! Se prepare! — proferiu Claudione.
— Deixe ele vir mais. Eu já estou pronto.
Sendo um dos últimos a deixar o estabelecimento clandestino de jogos de azar, razoavelmente embriagado e com algum dinheiro das apostas na carteira, Paulo foi rápida e facilmente dominado por Jaime Peçanha e por João Claudione, que lhe puseram as armas nas fuças. É um fato importante a ser relatado que Paulo César tinha apenas dezessete anos quando, num ímpeto, esfaqueou o próprio pai para defender a mãe habitualmente agredida pelo marido alcoolizado e drogado. Paulo ficou conhecido nos fichários da polícia como Paulo César dos Anjos. Jaime e João Claudione colocaram a vítima no porta-malas, taparam a boca dele com uma fita adesiva e se evadiram do local sem a testemunha sequer de um vira-lata. Naquele momento o que era uma simples garoa se transformou em chuva.
— Não me matem, pelo amor de Deus! Eu tenho família. Sou pai de duas meninas ainda pequeninas! — naquela hora, todavia, o Altíssimo preferiu não se intrometer naquele acerto de contas e, assim como Pilatos, também lavou as mãos. Então, apesar das rogativas e das promessas de que nunca mais se envolveria com Rato Branco, Paulo César dos Anjos findou alvejado com mais de quinze tiros à queima-roupa.
A execução aconteceu à beira de uma estrada carroçável, a cerca de quinze quilômetros da área urbana de Mondrongo. Durante aquela madrugada, sob forte chuva, o porta-malas estava forrado com um plástico grosso, de cor preta, para a finalidade de evitar que o carro ficasse sujo de sangue. O último tiro foi deflagrado por Jaime Peçanha contra a testa de Paulo César. Em seguida, embora ensanguentado, puseram o defunto no porta-malas e o levaram até o rio Mondrongo. Em lá chegando, o lançaram numa das laterais da barragem, fazendo com que o corpo boiasse nas águas. O falecido não afundou por estar preso com cordas no saco plástico. O propósito dos executores era dar logo notícias a Rato Branco sobre o triste fim do seu testa de ferro, e as imediações da Ponte Jerônimo Rosado, de intenso tráfego, eram mais que apropriadas para desovar o cadáver do ex-valentão.
Vale ressaltar que, apesar de certa choradeira, João Claudione fatura alto com os seus negócios de venda e compra de armas e drogas. Conta com amigos influentes na Polícia Civil, Rodoviária e até no Judiciário. Não se tornou o humorista de sucesso que almejava, entretanto não lhe falta o vil metal. Ele possui pelo menos dez propriedades em nomes de laranjas, todas mascaradas como pequenos negócios agrícolas.
A participação de João Claudione na execução do inimigo de Jaime ficou por um preço irrisório, apenas um trocado para o contraventor frequentar o bordel Suzano: mil reais. Isto, claro, levando-se em conta a longa amizade dos dois ex-colegas de primário. Por exemplo, Jaime Peçanha é padrinho do filho mais velho de Claudione, morto pela Polícia Militar durante um suposto tiroteio numa boca de fumo. Quanto à execução do cupincha de Mauro Mosca, seja dito que a maior parte dos tiros foi feita por Jaime, que parecia estar tomado de grande fúria e descarregou as oito cápsulas e mais algumas. João Claudione tem a mesma idade que Jaime e seu principal hobby é matar policiais militares traiçoeiramente.
— A partir de agora não vou lhe cobrar mais nada. Seus inimigos se tornaram meus inimigos. Vamos acabar com todos eles, um por um.
— Eu agradeço demais por contar com a sua ajuda.
— Pois é. Rato Branco está com os dias contados.
Ao longo de mais de seis anos, sempre de maneira impune, é possível que Claudione já tenha matado, a sangue frio, algo em torno de oito militares. Até mesmo um tenente à paisana. O homem é um estrategista, típico exemplo de perito. Serviu no Exército com louvor, juntamente com Jaime, e possui grande expertise em armamentos de diversas modalidades, calibres e munições. Notável atirador de elite, é capaz de atingir facilmente um alvo a meio quilômetro de distância. Em seu arsenal, oculto em um municiado bunker debaixo da garagem de uma de suas fazendolas, ele dispõe de armas de grosso calibre de uso do Exército, como refles, bazucas, metralhadoras, fuzis com miras telescópicas de longo alcance, coletes à prova de balas e até granadas de mão.
— De hoje em diante, Jaime, você vai andar com colete à prova de balas. Arrume uma jaqueta jeans bem folgada e use o colete por baixo. Esse pessoal vai lhe caçar a pau e pedra, e eu não posso lhe proteger em tempo integral. O seu revolver, dependendo da investida deles, não vai lhe ser de muita serventia, a depender, repito, do fogo contrário. Portanto, meu chapa, eu lhe digo que se cuide. Como reza o ditado, “seguro morreu de velho”.
— Eu estou pronto para o que der e vier, Claudione.
— Não está não, Jaime. Às vezes a gente pensa que está, mas não está pronto para porra nenhuma. Ninguém, ao menos que eu saiba, se acha pronto para morrer. Exceto, talvez, de causas naturais. O melhor a fazer é você tomar todas as precauções que puder.
— Claro! Eu vou me cuidar o máximo possível.
— Suponho, Jaime, que a esta hora Rato Branco, o Mauro Mosca, esteja botando fogo pelas ventas. Mas ele sequer vai prestar queixa contra você na polícia, pois tenho plena certeza de que o plano dele é fazer com que você pague na mesma moeda.
— Certamente. Vou aceitar a sugestão do colete.
— Tenho coletes de primeira qualidade, artigos usados até pelas Forças Especiais. É claro, como nós sabemos, que esses produtos não protegem ninguém cem por cento, mas dá tempo de o sujeito esboçar uma reação, lhe dá um tempinho para reagir e, quem sabe, sacar a sua arma. O problema é somente se o disparo atingir a sua cabeça. Aí, compadre, não tem choro nem vela. É tiro e queda, caixão e vela preta. Apesar de você possuir um bom revólver, acho que eu deveria ter facilitado para você adquirir uma parabélum, pistola automática de grande calibre e fabricada na Alemanha. Tenho três joias dessas no meu arsenal. São belíssimas e possuem grande impacto.
— Essa tal parabélum é muito grande, Claudione?
— Um pouco. Mas de grosso calibre e automática.
— Nossa! Isso deve custar uma grana alta, hein?
— Olha, só para você eu fecharia pelos oito mil.
— Sei. Mas está fora das minhas possibilidades.
— Seu trinta e oito também é bom. Não vai falhar.
— Pois é, eu vou ficar com ele. Gostei demais.
— Se ligue, então. Rato Branco vai para cima de você.
— Não ele propriamente, mas os seus capangas.
— Vou pegar o seu colete. É artigo dos melhores.
— Obrigado, Claudione! Nem sei como lhe agradecer.
— Besteira! É um presente meu para você. Fique tranquilo. Cuide logo de providenciar uma jaqueta. Também lhe previno que vai esquentar um pouco. Falo do contato do colete juntamente com o da jaqueta.
— Tudo bem. Estou acostumado com esse calor de Mondrongo. Depois de tudo que fizemos hoje, meu amigo, e debaixo dessa chuva abençoada, acho que eu vou dormir muito bem e com uma grande paz de espírito.
— Então, amigo, boa noite. Durma com os anjos.
— Você também. Que Deus sempre lhe proteja.
ACOMPANHE
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Marcos Ferreira é escritor
A morte de Paulo Cesar dos Anjos por Jaime Peçanha e João Claudione foi narrada com tal perfeição e riqueza de detalhes que poderia me imaginar dentro da cena como observador.
Ficarei atenta aos próximos capítulos, pra ser mais exata, a reação do Rato Branco.
Parabéns, nobre escritor!
Li com atenção e consegui ver as cenas do ” filme” projetado na sala do Cine Teatro Pedro Amorim, cujo o projetista era Tiquinho, pesava uns 150kg, irmão de Arrengueiro, que nunca brigou com ninguém e eram filhos de Manoel Brilhante dono de uma barraca que vendia o melhor pastel da galáxia e cigarro a retalho!
Lógico, zinebra aos ” papudinhos”!
Quanta saudades!
Um abraçaço extensivo a Natália.
Parabéns ao escritor. Consegue surpreender o leitor em todos os capítulos.
Esquentou…
Boa tarde, nobre amigo escritor,
Que escrita prazerosa, com detalhes que surpreende e instiga o leitor em querer saber mais e mais… Abraços poéticos, menino!
Chocada! Esse Jaime é rancoroso e frio! Não se comoveu em nenhum momento; estava tomado pelo ódio e pela ira! Quem diria! Surpresa! Agora o caldo vai ferver! Estou aguardando, curiosa, o que teremos pela frente! Parabéns, escritor!!!