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domingo - 03/07/2022 - 03:48h

A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 7

Servindo a dois senhores

Por Marcos Ferreira

O palpite de Jaime Peçanha e de Laura Gondim acerca da não dispensa de Reginaldo Marinho, repórter de política da Tribuna Mondronguense, se confirmou. Reginaldo não foi demitido. Entretanto, no dia em que esteve na sala de Alberto Cardoso, diretor administrativo daquele órgão, Reginaldo ouviu do sujeito uma proposta indecente, uma chantagem para que, daquele momento em diante, o repórter se tornasse os olhos e os ouvidos de Alberto junto a Jaime. Sim, ele queria que Reginaldo espionasse a produção literária do escritor e tudo o quanto ele estivesse elaborando sobre o prefeito Wallace Batista. Em especial no tocante a um dossiê contra o chefe do Executivo, coisa que o próprio Peçanha já dissera possuir a alguns interlocutores.dossiê -2

— Peço-lhe que me desculpe, mas eu não posso.

— Claro que pode, Reginaldo. Além de precisar desse emprego, nós somos cunhados. Você tem que jogar no meu time. Não no dele.

— Procure outro para fazer esse servicinho sujo. Não sou dedo-duro, Alberto. Você sabe que Jaime é casado com uma prima minha, a Laura. Agora desempregado, ele se encontra em dificuldades. Disse que vai bater à porta dos outros veículos de imprensa escrita, porém, do jeito que as coisas estão, é provável que não consiga nenhum trabalho fixo na concorrência. Nem sequer como revisor de textos.

— Eu não sabia que vocês eram tão chegados.

— Não se trata de amizade. Realmente não somos muito próximos. Mas o Jaime é um bom tipo, bom esposo, inteligente, trabalhador.

Alberto Cardoso moveu-se para um lado e outro na sua cadeira giratória. Passou a mão no rosto sempre rigorosamente barbeado e largou esse contra-argumento que expôs o seu vínculo com o chefe do Executivo municipal:

— Acho que o prefeito discorda dessas qualidades.

— Quer dizer, Alberto, que o seu intuito em espionar Jaime tem a ver com o prefeitinho? Eu acredito que esta centenária Tribuna seja oposição a ele. Pelo que vejo, contudo, parece que você está de conchavo com aquele sonso. Isso explica a demissão de Jaime e a chantagem que você pretende me impor.

— Pense na minha irmã e nos seus filhos.

— Pense você também na sua irmã e sobrinhos.

— Eu gostaria de entender essa sua lealdade a ele. Você, pelo que sei, não deve nada a Jaime. Ou deve? Fique do meu lado! Eis a atitude correta. Não posso escolher outra pessoa. Porque você tem trânsito livre na casa de sua prima. Quero saber o que ele anda tramando (isto é, escrevendo) para atingir o prefeito. Pronto, vou lhe confessar: tenho amizade com Wallace Batista, e ouvi, assim como o prefeito, falarem por aí que Jaime possui um suposto dossiê virulento. Decerto são aleivosias, mas algo assim em época de reeleição pode arranhar a imagem de um candidato.

Sentado em uma cadeira igualmente giratória diante da mesa de Alberto Cardoso, o repórter de política não se deixou cooptar. Descruzou a perna, puxou um cigarro do bolso da camisa e apenas o prendeu na orelha direita, como se o simples contato com o Hollywood o satisfizesse, e sustentou a sua opinião:

— Acho que você tem outras maneiras de saber o que deseja sem ser por meu intermédio. Por que não contrata alguém do meio literário? O que não falta em Mondrongo é intelectual, principalmente da fauna dos escribas, querendo puxar o tapete de um desafeto das letras. Jaime, o que não é segredo, possui muitos pares que o veem atravessado, doidos para enfiar-lhe uma faca pelas costas.

Alberto Cardoso teve um raro ímpeto de aborrecimento e bateu com a palma da mão sobre o birô, causando estranheza a Reginaldo. A seguir, recompondo o semblante, que se avermelhara de súbito, falou com suavidade:

— Assim você não me deixa saída, cunhado.

— Se resolver me demitir, você é quem sabe.

Com o rosto voltando a ficar rubro pela contrariedade, o diretor administrativo respirou fundo, ajeitou-se na cadeira e daí a mais alguns segundos reassumiu o seu calmo e natural tom de voz, que ele havia elevado por um instante ao bater com a mão espalmada sobre o birô de madeira com tampo de vidro temperado:

— Não vou demiti-lo, Reginaldo. Mas apenas porque você é meu cunhado e não quero que, indiretamente, minha irmã e os meus sobrinhos paguem por sua estupidez. Do contrário, saiba que eu o jogaria no olho da rua sem ao menos pestanejar. A partir de hoje, porém, você está fora da editoria de política. Vai cobrir eventos esportivos, desde briga de galos até jogo de bilha. César Calisto, que já o substituiu nas suas férias e algumas vezes em que você esteve doente, assumirá seu lugar.

Agora, retirando o cigarro da orelha sem motivo aparente, foi a vez de Reginaldo bater na mesa e se colocar de pé, a cara afogueada de aborrecimento e falando de modo exaltado. Reginaldo sustentou que Alberto ficasse à vontade para demiti-lo, pois não aceitaria aquela humilhação, até porque o salário dele na editoria de política era bem melhor do que o de César Calisto, na área de esportes. Alberto pediu que ele sentasse, todavia Reginaldo continuou de pé e com a voz elevada:

— O que o dono do jornal achará disso?

— Disso o quê, Reginaldo?!… Seja claro.

— Falo do seu conchavo com o prefeito.

— Você por acaso está me chantageando?

— Só estou lhe fazendo provar do seu remedinho. Pois pretende me tirar da editoria de política só porque não aceitei tomar parte nessa sua perseguição apoiada pelo prefeito contra Jaime. Quero saber o que o mandachuva Jerônimo Albuquerque Azevedo fará quando souber que você está de conluio com o prefeitinho exibicionista, que passou o primeiro mandato inteiro sem descer do palanque. Será preciso que eu desenhe para você que a Tribuna Mondronguense é oposição a esse indivíduo? Pode me colocar onde quiser, Alberto, contudo Jerônimo Albuquerque Azevedo ficará sabendo que o diretor administrativo dele está servindo a dois senhores.

Alberto Cardoso voltou a corar as faces. Desta vez, entretanto, de apreensão, ou de constrangimento. Reginaldo continuava falando grosso. Mais uma vez, cochichando, o diretor administrativo pediu que ele se sentasse:

— Calma, homem. Fale baixo, por favor.

Enfim, para a tranquilidade de Alberto Cardoso, o repórter de política resolveu se sentar e tornou a prender o cigarro na orelha direita.

— Vamos esquecer isso — falou Alberto.

— Acredito que é o melhor para nós dois.

— Exatamente. Deixemos as coisas como estão. É melhor. Prossiga na editoria de política e o César Calisto se manterá na de esportes. Tudo igual. Por ser meu cunhado, imaginei que não fosse se opor tanto a colaborar comigo nesse trabalhinho. Acho que a ligação de vocês é bem mais forte do que eu supunha. Estou realmente surpreso que tenha se mostrado tão fiel, tão solidário a ele. Logo você, Reginaldo, um cara que é acostumado a bater em gregos e troianos no universo político de Mondrongo e também do estado de Santa Luzia. Mas faça de conta, enfim, que não tivemos essa conversa. A única coisa que lhe peço é que nada do que falamos saia desta sala. Muito menos chegue aos ouvidos de Jaime Peçanha. Posso contar com a sua discrição?

— Não vou comentar nada com ninguém.

— Ótimo! Você não é mesmo dedo-duro.

— Não sou, não. Você me avaliou mal.

Por volta das sete da noite, após cumprir suas obrigações na Tribuna ainda como editor de política, Reginaldo foi direto para a casa de Laura Gondim. Lá chegando tomou um banho demorado e foram conversar na cama, já seminus. Então Reginaldo contou a Jaime e a Laura tudo o quanto ele ouvira do cunhado. Depois partilharem um cigarrinho, como de outras vezes, e fizeram sexo a três.

Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Prólogo;

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Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo  3;

Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 4;

Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 5

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Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Airton Cilon diz:

    Acompanhemos, cenas dos próximos capítulos! Abraços poeta e escritor Marcos Ferreira…

  2. Marcos Antonio Campos diz:

    No condomínio de ácaros e fungos do capítulo seis, algumas preciosidades dessa Biblioteca de Babel vieram à tona, mas deveriam ter ido a leilão. Não há como negar o interesse em alguns desses tomos: Cesário Verde e Miguel de Cervantes que não só Mondrongo, mas toda Santa Luzia deve ou precisa conhecer.
    No capítulo sete vê-se que a corrupção está instalada em todos os lugares e não apenas na Caixa Econômica Federal. Durante meu período laboral presenciei algumas dessa falcatruas e sempre me disseram que eu não tinha o perfil para o serviço público e trabalhava contra os interesses da empresa. Leia-se aos que se julgam donos das corporações.
    Parabéns amigo, sua leitura continua envolvente e espero o próximo domingo com ansiedade.

  3. Bernadete Lino / Caruaru - PE diz:

    Os jogos de poder são sempre encontrados nos relacionamentos humanos: alguém joga uma chantagem e o outro tem uma carta na manga e reverte o jogo. Difícil é encontrar relação limpa e sem segredo. Parece que todos tem algo a esconder e algo com que se defender quando atacado. Tomar partido é uma coisa difícil mas um lado sempre pesa mais. Reginaldo soube se sair bem da situação. É assim na vida! Pessoas tecem o tempo todo e jogam pra todo lado; vão como as ondas do mar. Ora avançam, ora recuam. Não existe receita pronta pra resolver o dilema. Melhor tocar em frente e não encucar com os acontecimentos. E confidenciar pouco. Tudo poderá ser usado contra você!

  4. Raimundo Gilmar da Silva Ferreira (Gilmar) diz:

    A cada capítulo o escritor nos conta a história da História de uma cidade construída sobre os conchavos da “política”.

  5. Simone Martins de Souza Quinane diz:

    Caro Marcos,
    Em toda repartição há os conchavos, os arrumadinhos e as perseguições aos que não se enquadram no que defendem e pregam a minoria dominante. Que bom que Reginaldo soube de desvencilhar, com sucesso, da teia em que iriam sufocá-lo!
    A vida é um emaranhado de possibilidades, nas quais somos levados, a todo momento, a escolher quais se enquadram em nosso modo de ver a vida!
    Vejamos o que nos aguarda o próximo capítulo!

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