Por François Silvestre
O sol começou a desvendar Januária, que parece enfraquecer sua guarda de silêncios. Nessa tarde, o poente ficou mais aceso, menos opaco, como diria dona Zélia, diretora do grupo escolar.
Tudo começa num velório. Ou melhor, não é tudo que começa, pois antigo foi, começa a desesconder-se um silêncio de Januária. Morreu o pastor da principal igreja evangélica do lugar. Pastor Luciano, coronel da reserva do Exército.
A viúva, dona Marcelina, espera ansiosa. Os habitantes também. Será que e ele vem? Veio. Parou um carro com placa de longe. Desce um rapaz de barba rala, calça de linho, camisa de jeans. “É Artuzinho”, quase não consegue falar dona Marcelina. Abraçam-se. Ela chorando muito. Agarrava o filho, beijava-o. Ele, sisudo. Beijou-a na testa. Nem olhou para o caixão do morto. A quase totalidade dos presentes não entendia nada.
Era uma família tão unida. Pai e filho viviam juntos. Onde um, tava o outro. Caça, pescaria, igreja, qualquer lugar. Nem todos estavam surpresos. Antonieta e Zé de Titico sabiam de tudo. E este silêncio, pelo menos este, abandonou o esconderijo de Januária.
Artur viajou com os pais para Recife, onde iria submeter-se ao vestibular de medicina. Passou. Ainda veio a Januária no primeiro ano de faculdade. Depois, sumiu.
Volta no tempo, Ditadura militar, “governo Médici”. Uma sala escura e fétida, no Cais de Santa Rita, servia para “interrogatórios” do Doi-Codi, Policia Federal e policia civil do Dops. Naquela manhã, morria sob tortura um estudante alagoano, de nome Jarbas, e sua mulher, Lucinda, também torturada, acabara de dar à luz. Pouco tempo após o parto, ela também morre.
Na Faculdade de Medicina, uma solenidade para leitura de nomes revelados pela comissão da Verdade. Presos, torturados, torturadores. Artur ouve um nome. Coronel Luciano Carneiro Leão. Na relação dos torturadores. Não era nome comum. Família tradicional do Recife. Artur lembrava do seu pai dizendo isso. Comentou com amigos. E mostrou seus documentos.
Alvoroço. Ex-presos, parentes dos desaparecidos, colegas, foram à pesquisa. A data de nascimento de Artur coincidia com o dia da morte de Jarbas e Lucinda. “Seu pai é o torturador Luciano”. O mundo abaixo na cabeça de Artur. Cujo nome foi homenagem ao ditador antecessor de Médici. Artur da Costa e Silva.
Voltando a Januária, naquela semana, não foi difícil conseguir a confissão dos pais. Ameaçou exame de DNA. Prometeu silêncio caso confessassem. A mãe, incapacitada de engravidar, esperara muitos anos um filho adotivo para criar. Aconteceu.
Criado com muito esmero pelo assassino dos seus pais. O “pai” assassino, torturador, a “mãe” cúmplice do hediondo e incomparável crime. Na sala do velório, o sol despedia-se pelas frestas da vasta janela da “sagrada” igreja onde tanto falara em Cristo o coronel pastor Luciano. Artur mudou-se para Maceió, conheceu sua família, viu fotos, encontrou parentes e descobriu semelhanças. Depois, o próximo silêncio.
François Silvestre é escritor
Leia também: Esconderijo de silêncios.
Li por mais de uma vez o sei artigo em tela, refleti sobre o comportamento humano e cheguei e conclusão que se eu fosse Arthuzinho, teria agido da mesma forma do Dr Arthuzinho.
Parabéns conterrâneo portalegrense pelo magnífico artigo, tá supimpa!