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domingo - 25/08/2019 - 05:22h

Manhã de domingo

Por Inácio Augusto de Almeida

Maurílio passara em frente ao Grêmio Mossoró, mas não entrara. Sabia que lá dentro só estavam os carteadores. A turma do bilhar nunca comparecia pela manhã. E como o Grêmio aos domingos só funcionava até o meio-dia, o médico resolveu ir papear no barzinho  do Carlos, como sempre fazia quando não ia a Tibau, a exemplo da metade da população de Mossoró.

Nas manchetes dos jornais espalhados pela calçada de forma ordenada, leu que Jânio Quadros prometia varrer a corrupção do país. Riu, discretamente, intimamente, riu. A dúvida era se ria do Jânio ou de si mesmo. Mas tinha certeza de que alguém estava pensando que alguém era ingênuo.Enquanto atravessava a rua observou que, no átrio da igreja, algumas pessoas papeavam.

– Maurílio, Maurílio!

Era Conversinha com aquele seu jeitinho insinuante e agradável. Sentiu que não escaparia de algumas cervejas.

– Viu as manchetes, Conversinha?

– A do O INDEPENDENTE eu li.

– E você acredita que ele consiga?

– Há, há, há.

– Tá rindo de quê?

– Da sua pergunta, há,há,há.

– Você é mesmo um gozador.

– Eu? Ou você que tá querendo zombetear…

– Vai uma cerveja?

– Claro, claro.

A garapeira do velho Guará estava fechada. Ele nunca a abria aos domingos. Quem gostava disto era o Pelado, pois assim podia ir dar o seu mergulho nas águas quentes de Tibau. Durante toda a semana, Pelado era o incansável servidor de caldo de cana e pão semolina. Mas aos domingos, ninguém o afastava da praia.

-Veio tomar cerveja, Maurílio, ou tá querendo caldo de cana? Você não pára de olhar para a garapeira.

-Sabe, Conversinha, eu às vezes ainda me surpreendo com a solidariedade que existe entre os pobres. Você sabe que o Pelado, o Pelado do Guará.

Fez uma pausa. Engoliu um pouco de cerveja, como se quisesse recompor-se.

-Vai, continua. Eu sei quem é o Pelado. Todos em Mossoró conhecem-no.

Com este conhecem-no do Conversinha, numa conversa de beira de balcão regada a cerveja numa manhã de domingo, Maurílio trocou o ar sério, quase sorumbático, por um meio riso.

– Pois bem. O Pelado, um homem pobre, inculto, é capaz de atos fraternos, de atos fraternos, de atos solidários, coisa que muita gente que vive papando hóstias, pessoas ditas cultas, não são capazes de fazer.

– Maurílio, limpar hostiários não significa estar com Deus. E este tipos a que você se referiu como ditos cultos, na realidade são cultos. Muito cultos. Só que sensibilidade, amor ao próximo, bondade, não são coisas que se aprende lendo. Franz Kafka, Niccoló Machiavel, Michel de Montaigne ou Bernardo de Almeida, todos eles colocaram em suas obras a importância da solidariedade, da fraternidade, do amor. Mas isto não depende de quem escreve. Estes sentimentos são inerentes aos puros, aos de bom coração. Não, não se adquire estes valores através da cultura. Eles brotam de dentro, do fundo do coração.

Maurílio olhava para Conversinha de maneira respeitosa. Sabia das traquinagens que o jornalista fazia, dos “traços” que dava em alguns poderosos e vaidosos. Mas sabia também da bondade existente na alma daquele homem de menos de metro e meio de altura.

– Você tem razão, Conversinha. Enquanto o Pelado arrisca o emprego, a sobrevivência, para dar dois pães a quem só tem ficha pra um, por saber que ali está a primeira e talvez a única refeição de pobres meninos de rua, tipos ricos e cultos negam uma moeda a pedintes famintos.

– Maurílio, o domingo tá bonito, a cerveja tá bem gelada e já vai para quase dois mil anos que Cristo foi pregado numa cruz. A injustiça social vem desde que começou o mundo. Eu já estou é para fundar o PIS.

– PIS, Conversinha?

– Sim, Maurílio. O Partido da Injustiça Social. Uma coisa que já existe há tanto tempo, que todo mundo diz combater e que continua existindo, só pode ser uma coisa muito forte. Forte e boa para quem a quem pratica. E já tenho as palavras  de ordem. Veja: pela exploração do homem pelo homem. Pela desigualdade social. Por aumento nas taxas de juros. Pela criança fora da escola. Por uma anistia ampla e irrestrita a todos os deslizes do colarinho branco.

– Deslizes, Conversinha?

– Deslizes, sim, Maurílio. Pobre é que comete crime. A turma do colarinho branco fica só no deslize. Deixe-me continuar, ou você não quer saber o restante do programa do nosso partido?

Esforçando-se para controlar o riso, Maurílio conseguiu dizer:

– Nosso, não. O seu partido.

– Meu ou nosso, vamos em frente. Por igrejas alternativas mais fortes e em maior quantidade. Pela manutenção dos privilégios e criação de novas castas. Pela acentuação da divisão de classes. E como ponto inegociável do nosso programa: a defesa do direito adquirido! Neste não admitimos que ninguém toque. Ninguém!

Maurílio ria a não mais poder. Chegava mesmo a curvar o corpo. Os seus olhos ficaram cheios de lágrimas, talvez de tanto rir ou, quem sabe, de constatar que tudo aquilo que o Conversinha falava acontecia realmente todos os dias e ninguém se tocava.

Olhou para Conversinha com uma enorme simpatia. Taí a razão de gostar daquele jornalista falante. E quando pensava em dizer alguma coisa, sentiu uma mão pousar no seu ombro.

– Na cervejinha, hein, Doutor.  Vai ver o Conversinha já lhe fez dar umas boas risadas.

– Ainda não, Lopes. Hoje ele está mais para o trágico do que para o cômico.

Inácio Augusto de Almeida é jornalista

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Odemirton Filho diz:

    Bela crônica. O autor poderia nos brindar, de vez em quando,
    com suas letras.
    Abraço.

  2. João Claudio diz:

    ✌ Bravo, Inácio. Bravo, Paladino da Justiça.

  3. Q1Naide Maria Rosado de Souza diz:

    Parabéns, sr.Inácio. Beleza de Conto. Fiquei muito feliz por sua participação no concurso da Coleção Mossoroense que completa 70 anos. Sempre uma homenagem a meu querido tio Vingt-un Rosado que, dos 21, foi o que se apaixonou pelas letras e pelejou por difundi-las!

  4. Daniel Mendes diz:

    Excelente crônica. Parabéns meu amigo Inácio

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