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domingo - 08/09/2024 - 10:28h

Balaio de gatos

Por Honório de Medeiros

Gatos (Foto do autor da crônica)

Gatos (Foto do autor da crônica)

Os três bem juntinhos, enrodilhados uns nos outros. O vigia observando.

Minha sombra se projeta por sobre a trilha, enquanto na margem esquerda, da mata que margeia o lago, escuto o deslocamento do gato Rei, que nunca aparece.

Já contei, lá, certa vez, treze. Dizem que vai a vinte ou mais.

Seu T me disse que tanto gato assim, liderados pelo gato Rei, sempre entre a água, de um lado, e o bosque de pedras do outro, com a estradinha no meio, tem a ver com a história dos três rapazes.

Eu vinha de um samba, contou ele, lá pelas três da manhã e, no mesmo canto vi, em sentido contrário, três rapazes vindo.

Não falavam nada, não vi seus rostos, só andavam. Roupa comum. Passei por eles, dei com a mão, olhei pelo retrovisor, olhei pelo outro, pelo vidro traseiro, e nada.

Tinham sumido. Parei o carro, desci, botei os olhos para tudo quanto era canto, e nada. Me arrepiei todo, me benzi, entrei no carro, o coração saindo pela goela, e disparei.

Você já tinha ouvido essa história, perguntei. Já, mas não  me lembrei, na hora. E o que mais me impressionou, depois, foi que eu não me lembrava do rosto deles.

Era como se eu não tivesse visto. E não vi. Seu T não é homem de mentiras. Não que eu saiba.

Cerro Corá, Estrada dos Flamboyants, 1 de maio de 2024.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
domingo - 08/09/2024 - 09:38h

Ciência ou crença

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa Freepik

Arte ilustrativa Freepik

Já faz algum tempo que Rubem Alves, em “Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras” (Editora Brasiliense, 1981), nos advertiu: “O cientista virou um mito. E todo mito é perigoso, porque ele induz o comportamento e inibe o pensamento. Este é um resultado engraçado (e trágico) da ciência. Se existe uma classe especializada em pensar de maneira correta (os cientistas), os outros indivíduos são liberados da obrigação de pensar e podem simplesmente fazer o que os cientistas mandam. Quando o médico lhe dá uma receita você faz perguntas? Sabe como os medicamentos funcionam? Será que você se pergunta se o médico sabe como os medicamentos funcionam? Ele manda, a gente compra e toma. Não pensamos. Obedecemos”. E isso vale não só para a medicina e os seus profissionais/“cientistas”. “Os economistas tomam decisões e temos de obedecer. Os engenheiros e urbanistas dizem como devem ser nossas cidades, e assim acontece”, ainda anota o grande educador. E o mesmo se dá com o direito e os seus “juristas”, acrescento eu.

Tendo a concordar em parte com Rubem Alves. Não acredito que o cientista – e, sobretudo, o suposto cientista, que apenas arrota um “conhecimento” sustentado por um diploma – seja uma pessoa que necessariamente pensa melhor do que as outras. Costumo, quando recebo uma receita, fazer algumas perguntinhas. É sempre bom saber como um remédio ou uma vacina funcionam.

Todavia, acredito que hoje estamos vivendo um mundo perigosamente ao contrário, onde se dá palpite, passando bem longe do senso comum disciplinado e refinado, sobre quase tudo que deveria ser tratado “cientificamente”.

Quantas vezes não estamos em uma festa barulhenta, com quatro doses de uísque já animando o juízo, e alguém, invariavelmente leigo em direito, vem com essa: “E o Supremo, hein?”. E começa o rosário de afirmações que não guardam base senão nas crenças da própria pessoa ou da sua “bolha”, para usar a expressão consagrada por Peter Sloterdijk (1947-).

HOJE MAIS DO QUE NUNCA, como lembra Aécio Cândido em “Conhecimento, conhecimentos – como sabemos o que sabemos” (Edições UERN, 2021), “as pessoas organizam sua percepção e a comunicação desta segundo algumas matrizes de raciocínio, formadas pelo conjunto daquilo em que elas acreditam e têm como assertivas verdadeiras. As pessoas possuem crenças religiosas, políticas e morais; elas estão impregnadas de alguns medos ilógicos e de muitas certezas duvidosas. Ao comunicar um ponto de vista, elas expressam essas convicções. Na interlocução, em razão da empatia criada e por outras razões, nem sempre se analisa criticamente o que é dito”.

Com a Internet, o que era um papo de bêbado chato, tornou-se um problema cósmico. Não se estuda o assunto; não se lê acerca dele, sequer. E “viver sem ler é perigoso. Te obriga a crer no que te dizem”, já alertava a Mafalda do cartunista Quino (1932-2020).

Repetem-se as asneiras de bolhas cheias de “idiotas da aldeia”, como dizia Umberto Eco (1932-2016), dando e recebendo mais do mesmo, insuflando crenças e preconceitos que passam longe da verdade. As leis da imitação, de Gabriel Tarde (1843-1904), no que têm de mais negativo, jamais encontraram terreno tão fértil como no esgoto iletrado do Twitter, WhatsApp, Telegram e assemelhados.

Não acredito que o especialista seja infalível. Longe disso. Mas acho que devemos ser mais conscientes nesse ponto. Devemos ser mais “filosóficos” nos sentidos leigo e técnico desse termo. Saber se o raciocínio que estamos recebendo/tendo é mesmo minimamente científico ou não passa de uma crença.

José Souto Maior Borges, em “Ciência feliz” (Editora Noeses, 2021), afirma que “nenhum sistema científico – refiro-me às ciências especializadas, ditas naturais e culturais – pode ser construído sem o sustentáculo da Filosofia”. E complementa Inês Lacerda Araújo em “Introdução à Filosofia da Ciência” (Editora UFPR, 1998): “A ciência, o conhecimento científico, seus métodos, suas explicações e, ainda, os resultados da pesquisa aplicada, marcam nossa época. A filosofia, como referencial necessário do pensamento crítico, tem na ciência um tema fundamental. Cabe ao filósofo pensar sobre que tipo de conhecimento é o conhecimento científico, seu alcance e validade”.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 08/09/2024 - 08:28h

Não se preocupem, amigos

Por Bruno Ernesto

Torta de café Foto do autor)

Torta de café (Foto do autor)

Dia desses, entre um compromisso e outro, desviei do caminho por quarenta minutos e parei para tomar um copo de água com gás, uma rodela de limão – apenas uma –, gelo – bastante –, e três cafés expressos com torra média. Sim, três. Um atrás do outro. Como um dependente químico que precisa manter-se entorpecido.

Por hábito, sempre que possível, prefiro sentar no mesmo local. Isso é péssimo pois, não raro, flagro alguém desavisado nele. Enfim, tenho que procurar outro o mais próximo possível do ar condicionado.

Nesse dia, por sorte, a minha mesa preferida estava desocupada e pude aproveitar para debelar um pouco o calor descomunal que fazia, e ali fiquei bebericando minha água bem gelada e tomar meus cafés enquanto lia algumas notícias e dava uma olhada nas redes sociais.

Como é comum – infelizmente -, por vezes, você se depara com alguém conversando com o volume muito acima do adequado para o ambiente, de modo que acaba por escutar todo tipo de conversa. Engraçadas, tristes, fofocas, assuntos profissionais, aleatórios e desabafos.

Nesse contexto, duas mulheres conversaram efusivamente na mesa em frente, quando uma delas pegou o telefone e efetuou uma ligação e passou a conversar no viva-voz.

Muito embora tentasse não ouvir a conversa, a propagação do som teimou em ser obediente às leis da física e todos os presentes tiveram o desprazer de ter que escutar toda aquela conversa.

Aparentemente, o esposo da dita interlocutora estava tendo um sério problema na obra que tocava, pois tentava convencê-la de várias escolhas de materiais que ela insistia em dizer que, mesmo após instalados, não tinha gostado.

Entre muitos vocativos carinhosos, fofos e melosos, para – aparentemente – convencer o marido de que não estava satisfeita, contabilizei o desacordo em relação à cor do piso, o tamanho de uma pia e a cor de uma porta.

Pude escutar o desespero do pobre homem naquela estridente ligação no viva-voz, que tentava justificar a escolha, dizendo que já estava tudo finalizado e que foi feito da forma que havia sido por ela escolhida, e que ela própria havia jurado ter adorado o projeto arquitetônico, apresentado cinco meses antes na tela com resolução 4K, pela renomada arquiteta.

Tudo em vão. A mulher levantou a mão, pediu mais uma fatia de torta, e, com a voz trêmula, disse:

– Amor, não gostei. Estou cansada dessa obra, amor. Tem como refazer?

Como precisei ir embora, não pude escutar o fim daquela boa conversa. Muito embora, pelo pouco que pude involuntariamente escutar, me lembrei do que o filósofo moralista francês Jean Rostand disse:

– “Não se preocupem, amigos. Não se preocupem. Não se preocupem. Não acontecerá nada do que vocês têm medo. Acontecerá coisa muito pior.”

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 08/09/2024 - 06:22h

O Porto Franco

Por Odemirton Filho

Embarque de sal ensacado no Porto Franco, em 1940 (Reprodução do Baú de Macau)

Embarque de sal ensacado no Porto Franco, em 1940 (Reprodução do Baú de Macau)

Sempre tive a curiosidade de conhecer a história do Porto Franco. Encontrei algumas notas em relação à sua criação e localização, e de como foi vital para a economia da nossa região. Fiz a minha pesquisa lendo alguns historiadores locais, sobretudo Geraldo Maia e Francisco Fausto de Souza. Às vezes, em minhas diligências lá na cidade de Grossos, indago a algumas pessoas sobre o Porto Franco, contudo, não consigo informações detalhadas, a maioria até desconhece. Felizmente, nesses tempos de internet, temos o conhecimento ao alcance de nossas mãos.

Segundo consta, coube ao comerciante suíço Ulrich Graff à concessão por parte da então Província do Rio Grande do Norte, em 1875, para a construção de uma linha de ferro, ligando Mossoró a Petrolina. À época, o transporte de mercadorias era feito por meio de tropas de burros. Todavia, por falta de recursos financeiros, o comerciante não conseguiu concretizar o empreendimento.

Cabe uma nota sobre o comerciante suíço: foi por meio do vigário Antônio Joaquim, com sua influência, que se generalizou pela província, a vinda para Mossoró do capitalista João Ulrich Graff, chefe da firma J. U. Graff & Cia, com casas em outros lugares. Data daí, do estabelecimento dessa poderosa firma importadora e exportadora, a grande comercial de Mossoró, que dantes fazia suas provisões de Aracati. Visionário, o comerciante tentou dar impulso as suas atividades e ao comércio local, pois uma linha de ferro certamente daria celeridade ao fluxo de mercadorias importadas e exportadas.

Entretanto, somente em agosto de 1912, com a Companhia Estrada de Ferro de Mossoró S.A, pelo trabalho da firma Sabóia de Albuquerque & Cia, iniciou-se a construção da linha férrea. Em 19 de março de 1915 foi inaugurado o primeiro trecho, ligando o Porto Franco (atualmente a cidade de Grossos), em Areia Branca, e Mossoró.

De acordo com o historiador Geraldo Maia, “quando a locomotiva “Alberto Maranhão” chegou à Estação, foi recebida com aplauso.  Na plataforma do carro-chefe da composição, viajavam: João Tomé de Sabóia, Cel. Vicente Sabóia de Albuquerque, Farmacêutico Jerônimo Rosado, Camilo Filgueira, Rodolfo Fernandes, Cel. Bento Praxedes, Vicente Carlos de Sabóia Filho, além do mais velho habitante da cidade, o Sr. Quintiniano Fraga, que ostentava o pavilhão nacional. Aquele 19 de março foi realmente uma data muito importante para Mossoró”.

O periódico O Comércio de Mossoró registrou: “Toda a população correu à estação: eram homens, mulheres, meninos, de todas as classes e de todas as idades. O trem entrou grave e solene, devagar para não atropelar o povo que se apinhava ao longo da estação, saudando-o, vibrando”.

Não sei ao certo, mas lembro que ainda criança, talvez, lá pelo final dos anos setenta, início dos anos oitenta, eu fui no trem até a cidade de Sousa, na Paraíba. Há fatos de nossas vidas que marcam, ficam guardadas na memória, e eu tenho um fio de lembrança daquele dia.

No tocante ao comércio com a cidade de Areia Branca, o historiador Francisco Fausto de Souza, no seu livro sobre a história de Mossoró, descreveu: “as comunicações terrestres, ora são feitas por intermédio de Porto Franco, ponto inicial da estrada de ferro Mossoró, ou estradas carroçáveis entre os municípios de Açu e Mossoró”. Produtos como o sal, algodão, mandioca, cana-de-açúcar, entre outros, iam e vinham do Porto Franco.

Permita-me ressaltar um fato histórico:

“Durante a República Velha no estado do Rio Grande do Norte, as matérias-primas como o sal e o algodão foram os produtos de maior peso e valor monetário na pauta das exportações, acompanhado pelo açúcar e pela cera de carnaúba. Nesse período, as disputas econômicas entre o Rio Grande do Norte e o Ceará culminaram em disputas territoriais. Como no estado havia muitas terras com potencial salineiro, e mediante a proibição de Pernambuco na fabricação de carne seca em 1788, enfrentamos uma grande perda na economia norte rio-grandense. Entretanto, o Ceará que poderia continuar fabricando esse produto de “Aracati para o norte”, precisava da matéria-prima do sal e reivindicou as terras de Grossos (RN) ricas em salinas. Assim, iniciou-se à época a delimitação entre os estados do Rio Grande do Norte e o Ceará, desembocando numa refinada discussão jurídica acerca dos limites e fronteiras territoriais entre o RN e o CE. Em 1901 algo sobre a questão de limites foi publicado pelos jornais potiguares, quando A República fez pela primeira vez menção ao conflito”. (extraído do livro 130 anos do TJRN: do papel à Justiça 4.0).

Por fim, sobre o Porto Franco, eu li que a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e a Prefeitura Municipal de Grossos firmaram uma parceria, num projeto que resgata a história do Porto; o objetivo seria a confecção de uma cartilha, a fim de ser trabalhada com os alunos da rede municipal de ensino. Espero que a parceria tenha rendido frutos, pois conhecer o passado é fundamental para se entender o presente.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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domingo - 08/09/2024 - 04:30h

Políticos santificados

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa do pch.vector – br.freepik.com

Arte ilustrativa do pch.vector – br.freepik.com

Estou com os quatro pneus arreados diante do horário político e das breves propagandas veiculadas ao longo da programação da TV. São muitos indivíduos bons disputando assento no Executivo e no Legislativo mossoroenses. Não tem como não se sensibilizar diante desses tão bem-intencionados candidatos. É cada um melhor que o outro. Considero uma pena que poucos sejam eleitos quando abrirem as urnas. Um desperdício de gente que só almeja o progresso de Mossoró.

Fico aqui pensando com os meus botões de simples eleitor, de mero votante, no quanto seria excepcionalmente proveitoso para esta cidade se nós pudéssemos ter cinco prefeituras, ao contrário de apenas uma. O concorrente Allyson Bezerra, menino prodígio que já está com a sua reeleição sacramentada, de repente poderia dividir o fardo de governar este próspero País de Mossoró sozinho.

Imaginem o quanto o senhor candidato a prefeito Genivan Vale, elemento íntegro e de ficha limpa, poderia contribuir para o avanço desta urbe em todos os sentidos. O mesmo toca para o atual presidente da nossa augusta Câmara de Vereadores. Pois é. Lawrence Amorim é outro político que honraria a terra de Santa Luzia. Há também, não menos competentes e sérios, essa senhora que se anuncia como irmã Ceição (decerto uma mulher honesta e com laços mais estreitos com o Todo-Poderoso e com Jesus Cristo), além do jovem estudante de advocacia Victor Hugo.

E quanto aos que se lançaram na disputa por uma vaga na Câmara? Aí é que a situação fica mais apertada. Pois não há um sequer que não esteja interessado unicamente em bem servir a esta comuna e aos seus munícipes.

Penso eu que se poderia encontrar uma forma de colocar mais cadeiras na Câmara, quiçá uns tamboretes, de maneira que nenhum desses aspirantes a vereador e a vereadora ficasse sem mandato no Legislativo mossoroense. A honestidade e abnegação, o compromisso com necessidades do povo, o interesse em solucionar os problemas que atingem a sociedade estão escritos na cara desses candidatos que nós vemos de instante em instante na televisão. Imaginem mais uma vez, por favor, cada bairro de Mossoró sendo cuidado, contando com as benfeitorias, o trabalho obstinado, o zelo e a prestação de serviço de um político exclusivo. Seríamos uma cidade modelo.

A essa altura do campeonato, infelizmente, não há mais nada que possa ser feito para nos ajustarmos a essa ideia que lampeja tão só na minha cuca. Mas fica a proposta para que, num futuro não tão distantes, esses políticos santificados desenvolvam meios para que disponhamos de cinco prefeituras e uma câmara de vereadores com, no mínimo, uns cem edis, homens e mulheres comprometidos com o futuro e o engrandecimento desta nossa brava cidade onde Lampião perdeu as botas.

Na TV, portanto, olhando a cara e o discurso dos candidatos, sinto no fundo do meu coração que estou perante um desfile de anjos. Uma coisa assim que realmente me deixa todo arrepiado e com os olhos rasos d’água.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 01/09/2024 - 11:30h

Ciência e imagem

Por Marcelo Alves

Arte ilustrativa do Ciência Hoje

Arte ilustrativa do Ciência Hoje

Já confessei outras vezes a minha paixão por alguns livros que são o resultado da adaptação, para o papel, de séries/documentários de TV: “Civilização” (“Civilisation”, 1969), “A escalada do homem” (“The Ascent of Man”, 1973), “A era da incerteza” (“The Age of Uncertainty”, 1977), “A música do homem” (“The Music of Man”, 1979) e “Cosmos” (“Cosmos: a Personal Voyage”, 1980). Esses livros, sob a batuta de especialistas nas respectivas áreas do conhecimento – Kenneth Clark (1903-1983), Jacob Bronowski (1908-1974), John Kenneth Galbraith (1908-2006), Yehudi Menuhin (1916-1999) e Carl Sagan (1934-1996) –, nos contam a história da humanidade através das artes, das ciências, da economia/sociologia, da música e do universo/cosmos. Eu os li algumas vezes, sem falar que vivo xeretando-os ou mesmo reassistindo a capítulos das respectivas séries.

Outro dia, meditando sobre essa minha paixão, acho que descobri as suas causas/motivos.

Primeiramente, relaciono essa paixão com o que esses livros realmente são: exemplos de “divulgação científica”, aqui entendida em sentido amplo para englobar todas as artes. E de altíssimo nível, tanto quanto ao conteúdo como – e sobretudo – ao estilo/qualidade literária.

Sou um curioso (a maioria de nós o é, nem que seja sobre fofocas quanto à vida alheia…). Para além da minha suposta especialização (o direito), no que toca às ciências, sempre me interesso em saber mais um pouco, para interdisciplinarmente poder interagir ou para, pelo menos, quando for o caso, saber raciocinar dentro do respectivo sistema.

Acredito que a aprendizagem de qualquer ciência, nos seus diversos níveis de conhecimento, é uma questão de desenvolvimento do senso comum aplicado à respectiva área. O etnólogo e arqueólogo Augustus Pitt Rivers (1827-1900) já dizia que a ciência era “senso comum organizado”. E, mais recentemente, o economista formado em direito Gunnar Myrdal (1898-1987) sentenciou: “a ciência nada mais é que o senso comum refinado e disciplinado”. Esse potencial mínimo de refinamento do senso comum, nos seus variados níveis (desde o raciocínio do agricultor sobre a meteorologia do sertão às elucubrações dos físicos teóricos), é comum a todos nós.

Possuo inclusive um livro – “Scientifica Historica: how the world’s great science books chart the history of knowledge” (Ivy Press, 2019) – cujo autor, Brian Clegg, nos leva exatamente “a uma jornada bibliográfica através do tempo/história e examina como a literatura científica redirecionou seu foco da elite acadêmica para uma audiência generalizada ansiosa para se educar. Essa transformação demonstra como os livros têm sido um condutor para a promoção do nosso conhecimento do universo e de nós mesmos”.

Mas também acredito que há uma razão mais simples para a minha paixão pelos livros acima citados. Trivial mesmo. Para explicá-la, talvez bastasse uma releitura do ditado “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Lembremos que os livros aqui referidos têm algo de inusitado em comum. Se, em regra, livros é que são transformados/adaptados, embora quase sempre resumidos, em filmes ou séries de TV, os livros acima citados são o resultado expandido de um percurso inverso, da tela para a página.

Penso que isso faz serem eles livros muito visuais. E posso até dizer que eles são perfeitamente visuais no sentido de agradar aos olhos, ao nosso importantíssimo sentido da visão.

Sempre fui – e ainda sou hoje – mais um homem da página do que da tela. Mas não custa nada misturarmos as coisas, letras, imagens e até sons. Estou ficando mais velho – estamos todos, não? –, e intercalar a leitura de alguns parágrafos com uma bela fotografia vai muito bem. Para não termos, como disse o Pessoa, “um supremíssimo cansaço / Íssimo, íssimo, íssimo / Cansaço…”.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 01/09/2024 - 10:52h

Futebol de cego

Por Bruno Ernesto

Ilustração da Wikimedia

Ilustração da Wikimedia

Não sou – nem de longe – a pessoa mais indicada para comentar futebol, embora reconheça seja ele o esporte mais sociável do mundo.

Dizem que quando uma partida de futebol não terminar em polêmica, confusão ou intriga, as conversas sobre ele concluirão o trabalho.

Lembro muito bem, entretanto, de um episódio envolvendo os jogadores Romário e Edmundo, que no início dos anos dois mil, protagonizaram uma das maiores rusgas dentro e fora do campo; tudo em razão da braçadeira de capitão do time e dos privilégios que Romário tinha no time.

Ao final daquela partida, Edmundo, questionado sobre a sua atuação em campo, disse que o príncipe – Romário-, com as bênçãos do rei – Eurico Miranda, finado cartola-, podia tudo no time, até atrapalhar o desempenho.

O príncipe, digo, Romário, ainda em campo, ao saber da declaração de Edmundo, não se fez de rogado e disparou:

– Bem, então o time agora está completo. Temos o rei, o príncipe e o bobo da corte.

Além de bem colocada, a declaração de Romário demonstra que, na vida, é preciso, antes de tudo, ter sagacidade e perspicácia.

Com um sorriso nos lábios e uma voz suave, há quem ofenda mais do que aquele que perde a compostura e eleve o tom.

A despeito desse episódio, a história de Triboulet – o verdadeiro bobo da corte -, deve sempre servir de exemplo de sagacidade e fazer com que fiquemos atentos a tudo.

O papel de Triboulet consista em expor a hipocrisia na autoridade e os excessos reais, especialmente durante os reinados de Luís XII e Francisco I, da França, beirando, por vezes, o escárnio; e, embora dispusesse da piedade do rei, ele foi longe demais.

Certo dia, após uma de suas apresentações na corte de Francisco I, Triboulet deu um tapa na bunda do rei, que ficou furioso e decidiu por executar o bobo da corte naquele mesmo instante.

Entretanto o rei, como misericórdia, ofereceu à Triboulet a chance de escapar da morte, caso ele conseguisse lhe pedir desculpas de forma ainda mais ofensiva.

Sem titubear, Triboulet se desculpou da pior forma possível: – Desculpe, Majestade. Te confundi com a rainha.

Ao invés de ser perdoado e, pois, escapar da sentença de morte, sua resposta enfureceu ainda mais o rei que, apesar de ter estabelecido tal condicionante, determinou a imediata execução de Triboulet por tamanha ofensa.

Apesar disso, o rei ainda lhe concedeu um último pedido. Talvez como forma de compensação por tantos anos divertindo a corte: poderia escolher como morreria.

De pronto, Triboulet disse ao rei:  – De velhice, Majestade. Quero morrer de velhice.

Triboulet foi um personagem tão marcante, que Victor Hugo o imortalizou em sua peça “O Rei se Diverte”, de 1832.

Quanto à Triboulet, apesar de ter sido banido da corte, escapou da morte e ainda tripudiou do rei na frente de toda a corte.

Como diz o famoso adágio popular: em terra de cego, quem tem um olho é rei.

Entretanto, penso que Triboulet teria dito outra coisa: – Me arrependo do que disse. Era para ter dito coisa muito pior.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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domingo - 01/09/2024 - 09:58h

Reminiscências…

Por Marcos Araújo

Imagem ilustrativa Freepik

Imagem ilustrativa Freepik

“A minha meta de vida? Apenas gastar o resto da areia da ampulheta, antes que chegue ao fim!” 

Segundo o dito popular, “quem vive de passado é museu”, e confesso que estou nessa condição de “museólogo”. Sou um memorialista, um historiógrafo vivencial. Depois de cinco décadas de existência, meu pensamento se retém mais no passado, sem conseguir expectrar quase nada sobre o futuro. Na ampulheta da vida, vejo que escorreu muito mais areia para a parte de baixo, remanescendo uma pequena porção na parte de cima…

Estou preso nas memórias do ontem, vivendo o hoje, sem pensar muito no amanhã. Outro dia, entre jovens do “Segue-me” (movimento da igreja católica), dei um depoimento do tempo de adolescência, falando sobre a importância da Catedral de Santa Luzia na formação das famílias mossoroenses, na construção dos relacionamentos… Contei aos garotos que muitos dos casais de hoje se conheceram nas paqueras da Praça do Cid, depois da missa da Catedral na noite aos domingos. Foi por ali que dei as minhas primeiras piscadas, depois de girar na praça umas cinco vezes…

Desde sempre tive um pendor para olhar o passado. Fui um “velho” na pele de um adolescente. Sempre convivi e adorava conversar com idosos. Fui amigo de Rafael Negreiros, Cristóvão Frota, Negro Chico do Bar, Chiquinho Germano, Tibério Rosado, Osires Pinheiro, Francisco Revorêdo, Heriberto Bezerra, Antônio Rosado, entre tantos…

Ainda garoto, fui frequentador do Café e Bar Mossoró, tendo conhecido seu Fransquinho e Aurino. Minhas primeiras cervejas foram no bar de Raimundão, na rua Almino Afonso, sob seu olhar de censura à minha falta de recursos. Alcancei ainda o Castelinho, e frequentei algumas festas no clube ACEU. Conheci seu João Pinheiro, do IP, e “roía” por não poder beber whisky e conversar sobre política no seu bar.  Assisti a filmes nos Cines Pax e Cid, comprando bombons nos carrinhos que ficavam em frente.

Testemunhei a abertura do bar de Zé da Volta na Abolição II, proximidades da Usibrás, aonde aos domingos papai e mamãe iam dançar. E também “pastorei” minha irmã Odinha e suas amigas Patrícia, Daniela, Rosimeire e as irmãs Kênia e Kélia Rosado na boate/bar Burburinho, propriedade de Gustavo Rosado. Esperei por elas cochilando dentro de um carro muitas noites, enquanto elas se divertiam e dançavam na Hastafari, uma boate de Samuel Alves, na rua Mário Negócio (em cima da Panificadora 2001).

No período político, panfletei algumas vezes durante a madrugada colocando “santinhos” nas portas das casas, com imagens de Vingt Rosado e Francisco Lobato (pai do meu colega do curso de Direito, Serlan Lobato).  Ao receber o título de eleitor, fui recepcionado à vida eleitoral com a candidatura do Professor Paulo Linhares a Prefeito Municipal.

“Ganhei” minha primeira habilitação do então candidato a vereador Regy Campelo, sob o patrocínio do governador Lavoisier Maia, e posso testemunhar haver assistido, com entusiasmo juvenil, no largo do “Jumbo” (local onde está edificado o Ginásio Pedro Ciarlini), os discursos emocionados de Geraldo Melo (o “tamborete”), Odilon Ribeiro Coutinho e do velho alcaide Dix-Huit Rosado.

Minha predileção musical também denuncia a minha maturidade, e, principalmente, a inaptidão aos ritmos atuais.  Fui incitado a refletir sobre cidadania com Zé Geraldo (“Cidadão”); protestei ao som de Geraldo Vandré (“Pra não dizer que não falei das flores”); fui agitado pela revolta cívica de Renato Russo (“Que País é este?”); vibrei com a personalidade confusa de Belchior (“Paralelas”), e envolvido pela loucura sana de Raul Seixas…

O romantismo e a fossa sempre ressoaram como bálsamo nas canções de Tom Jobim, Vinicius de Morais, Roberto Carlos, Moacyr Franco e Altemar Dutra. A devoção à música americana veio pelos acordes de “My Way” e “New York, New York”, com Frank Sinatra. Ou por “Unforgettable”, de Nat King Cole.

A “mão” da idade pesa nos ombros da minha existência. Resguardo no coração a tristeza de ter assistido a partida de tantos amigos para a eternidade, agradecendo a Deus com fervor pela minha vida, e mais ainda pela dos que ficaram.

Observando bem o ontem, fico genuflexo aos céus pela não contemporaneidade com os jovens de hoje. Não vejo muita graça no divertimento dos adolescentes do presente. Os jogos eletrônicos e as redes sociais como passatempo não superam os jogos de bola nos terreiros com carrascos de pedra de antanho. O passado é história. O hoje é o amanhã de ontem. E o hoje será o ontem de amanhã. Por aqui, conto o passado, sem saber o porvir.

Espero que meus filhos possam reproduzir memórias felizes. A minha meta de vida? Apenas gastar o resto da areia da ampulheta, antes que chegue ao fim!

Marcos Araújo é advogado, escritor e professor da Uern

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 01/09/2024 - 06:42h

Visita inconveniente

Por Marcos Ferreira

Imagem de GG Artes Digitais na Freepik

Imagem de GG Artes Digitais na Freepik

Imagino que alguma vez você passou por algo parecido. E diante de situação dessa natureza cada indivíduo reage à sua maneira.

Depois do jantar, em torno das oito horas, eu já havia tomado banho e a pouca louça estava lavada. Jantei ovos mexidos (cinco) com uma banana em rodelas. É esse, dentro das minhas limitações culinárias, o meu prato favorito. Então coloquei a velha e confortável roupa de dormir: uma bermuda fininha e uma camisa de algodão bem macia de mangas longas. Ressalto que disponho de outras peças semelhantes. Não gosto de dormir sem camisa. A casa não tem forro e por isso não faz calor. Deixo aberta por um tempo a janela da cozinha, situada na lateral esquerda.

Uso o ventilador até certo horário da madrugada. Depois desligo porque fica bastante frio. Sobretudo quando chega a cruviana.

Armo a rede na sala, coloco o ventilador sobre uma banqueta de plástico, além de uma cadeira em cima da qual coloco o telefone, o controle remoto da tevê e meus óculos. Assim aguardo o Jornal Nacional, seguido da novela das nove, que agora venho acompanhando porque a desalmada da Netflix me bloqueou só porque não sou assinante. Uma malvadeza! Antes eu dispunha da plataforma graças ao Elias Epaminondas, que compartilhava comigo. Mas a Netflix meteu a tesoura nessa opção e cortou meu barato. No mais das vezes era esse aí o ponto alto do meu dia.

Deixem quieto! Estou preparando a volta por cima. Logo poderei contar com o cineminha à noite. De vez em quando me viro com o YouTube. Contudo não duvido de que também esse qualquer dia invente de liberar acesso tão só para assinantes. Assistir a filmes e séries nos streamings tornou-se um pequeno luxo, uma carestia que vai frustrando um sem-número de gente mundo afora.

Bem, agora esqueçamos tal assunto. Desejo contar uma história curiosa. Foi na terça-feira passada. Trata-se de uma visita que me apareceu quando eu menos esperava. Portanto, sem ser convidada. Justo quando me encontrava deitado e com a sala iluminada somente pela televisão. William Bonner havia acabado de me dar um solene boa-noite, a exemplo da competentíssima Renata Vasconcellos. Não teve jeito. Eu precisei me levantar às pressas, tamanha foi a inconveniência.

Num voo rasante, a referida visita quase se chocou contra a minha cara. Fiquei em polvorosa, logicamente. Considerei, entretanto, que poderia ser uma coisa ainda pior: um monstro chamado barata, por exemplo. Sim, uma barata voadora. Aquela peste, com as suas asas envernizadas, representaria uma completa desgraça para o meu repouso. Fico arrepiado apenas imaginando. É muito rápida, dificílima de matar. O pânico é imediato. Se uma infeliz dessas aparece aqui em casa à noite, não vou dormir (não ao menos em paz) se antes eu não puder extinguir a intrusa.

Mesmo inconveniente, o ser alado que invadiu o espaço aéreo de minha residência foi outro muito menos asqueroso: um morcego dos grandes, mais ou menos do tamanho de um albatroz. Como se sabe, é uma criatura desprovida de beleza e um tanto quanto desagradável, porém é de caráter inofensivo.

Levantei-me com receio de que o mascote do Batman caísse dentro da rede. É admirável a capacidade, a desenvoltura com que esses orelhudos mamíferos conseguem voar de forma tão arrojada, tão precisa. Exatamente. São os únicos mamíferos capazes de voar, para a nossa inveja e despeito. Morcegos do tipo hematófagos são raros. A grande maioria se alimenta de frutos e insetos. Sei que essas informações não são bem uma novidade para os leitores, mas talvez alguém desconheça. Ao contrário de baratas, não se deve matar um morcego que invada sua casa.

Nessa noite, pois, o “albatroz” voava de um lado para o outro. Abri portas e janelas, apaguei a luz da sala (que eu havia acendido) e liguei a da garagem. Passados dez ou quinze minutos, a visita inconveniente foi-se embora. Tranquei tudo e, apesar do pequeno transtorno, voltei a ver televisão tranquilo. O Jornal Nacional estava bem adiantado; consultei as horas e daí a pouco assisti à novela.

Afora isso (o Jornal Nacional e a novela das nove) não há mais nada suportável que se possa ver de segunda a sábado. No domingo ao menos contamos com o Fantástico. Estou fechado na dita TV aberta, sem muitas opções para quando a noite cai e o sono demora a chegar. Os outros canais são piores.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 25/08/2024 - 10:52h

Até tu?

Por Bruno Ernesto

Arco de Tito no Foro Romano, em Roma (Foto do autor da crônica)

Arco de Tito no Foro Romano, em Roma (Foto do autor da crônica)

No último dia 23 de agosto, comemorou-se o aniversário de nascimento de Nelson Rodrigues (23/08/1912 – 21/12/1980), um dos mais influentes escritores brasileiros, e que, apesar de polêmico, foi o responsável por renovar a cena teatral brasileira no século XX.

Dentre tantas falas, a ele se atribui o célebre vaticínio: “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos.” 

A despeito disso, também há outro célebre personagem da arte brasileira, que foi igualmente polêmico, especialmente pela exaltação à malandragem, o cantor e compositor, Bezerra da Silva, autor de diversas músicas que foram imortalizadas no cenário cultural brasileiro, especialmente a sua famosa “Malandro é Malandro e Mané é Mané”, cuja letra exalta que a sabedoria, a vantagem e a arte de enganar o outro, é a marca registrada daquele que utiliza de recursos engenhosos e condenáveis para viver.

Dentre outras coincidências dessas figuras do cenário cultural brasileiro, o interessante é que ambos, Nelson Gonçalves e Bezerra da Silva, são Pernambucanos.

Apesar de Chico Buarque já ter dito que hoje o malandro pra valer não espalha, aposentou a navalha, tem mulher e filho e trabalha e tal, é certo que ainda podemos ver os malandros cantados por Bezerra da Silva em nosso dia a dia.

Em quase toda esquina ou, por vezes, no prédio ao lado, grande ou baixinho, eles estão aí, com o seus bodejados.

Alguns desses malandros lembram os famosos idos de março, onde Caio Júlio César – um dos maiores chefes militares da história -, além de ser o famoso amante de Cleópatra, foi covardemente apunhalado no interior da Cúria de Pompeu, um grande salão retangular do Senado Romano, onde as reuniões eram realizadas.

Um fato interessante sobre esse episódio é que, antes der ser covardemente apunhalado, Caio Júlio César era coberto de bajulação e honrarias pelos senadores romanos, que o espreitavam.

Evidente que Caio Júlio César, assim como seus antecessores – e o mesmo se deu com os seus sucessores -, sabia que não poderia baixar a guarda ou se descuidar.

Entretanto, talvez mais célebre que o próprio assassinato, talvez seja a frase que Caio Júlio César proferiu no momento em que estava sendo atacado, e que ao ver o seu filho adotivo, Marcus Julius Brutus, dentre os que lhe apunhalavam covardemente, disse, surpreso: “Até tu, Brutus?

Apesar de ter ocorrido há 2068 anos, essa história ainda hoje é carregada de um intenso simbolismo e deve ser muito representativa, posto que, além de uma dura lição, é um antigo lembrete para que sempre se tenha cuidado com aqueles malandros que lhe bajulam e cobrem de honrarias, mas lhe aguardam na escadaria do Senado, tal qual fez o filho adotivo de Júlio César.

A despeito da história de Júlio César e da malandragem enaltecida por Bezerra da Silva, ouso discordar de Nelson Rodrigues pois, o erro do malandro, é pensar que todo mundo é idiota.

Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor

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domingo - 25/08/2024 - 09:44h

A arquitetura jurídica (II)

Por Marcelo Alves

Imagem ilustrativa da Freepik, com recursos da IA

Imagem ilustrativa da Freepik, com recursos da IA

Como já disse aqui (veja AQUI), os edifícios do Poder Judiciário são cheios de significados para a nossa compreensão do direito e da justiça. A própria ideia de edificar é um ato de poder. Significa o poder estatal e a relevância específica da atividade judicante. Ela visa tanto relembrar, rememorar, evocar e enaltecer como também instruir e inspirar. Ela busca conferir solenidade, dignidade, respeito e prestígio aos atos e às decisões ali proferidas. É um lugar sagrado onde se faz justiça, na medida em que o seu oposto, o espaço externo, seria, nas palavras de Eduardo C. B. Bittar, em “Semiótica, Direito & Arte: entre teoria de justiça e teoria do direito” (Almedina, 2020), “o reino da violência, da barbárie e da desordem”.

Mas essa é uma arquitetura – a dos palácios ou fóruns de justiça – que também constrange. Muitos dos edifícios são grandiosos, às vezes suntuosos, feitos especialmente para impressionar, admoestar, intimidar e até mesmo amedrontar. A grandiosidade e simbologia da arquitetura jurídica atua para além do nível racional. Afeta inconscientemente os nossos sentidos: o tato, a audição e, sobretudo, a visão.

Como anota Eduardo C. B. Bittar, “ao ser mergulhado na experiência de uma Court House, mensagens explícitas e mensagens subliminares são constituídas no universo dos destinatários das mensagens. E as reações são várias: admiração; reverência; espanto; medo; constrangimento; pequenez; temor; respeito; imposição”. E essa enorme carga simbólica atinge tanto seu frequentador recorrente (juízes, promotores, advogados, serventuários, policiais etc.), como o seu frequentador ocasional, o cidadão ou jurisdicionado.

Tomemos como exemplo dessa grandiosidade opressiva o Palais de Justice de Paris, o maior “templo jurídico” da França, onde, como anota François Christian Semur, em “Palais de justice de France: des anciens parlements aux cités judiciaries moderndes” (L’àpart éditions, 2012), “centenas de profissionais do direito e litigantes vão todos os dias e são circundados por prestigiosos vestígios de mais de 1000 anos de história”.

Sobre o Palais de Justice, para deixar a coisa mais lúdica, leiamos o “depoimento” do Comissário Maigret, o detetive imaginado por Georges Simenon (1903-1989). Em “Maigret no tribunal” (L&PM, 2013), ele nos confessa que a sala de audiência do Palais, embora fisicamente próxima do seu ambiente de trabalho, é outro mundo, no qual as palavras não têm o mesmo sentido que nas ruas, “um universo abstrato, alegórico, ao mesmo tempo solene e impertinente”.

Acredito que aqueles que “fazem” a Justiça (juízes, promotores, advogados) já devem ter sentido essa asfixia anacrônica poeticamente descrita por Maigret/Simenon. Eu já senti. Imaginem a sensação daqueles que vão aos “palácios de justiça” ocasionalmente (partes, vítimas e testemunhas), não acostumados àquele ambiente opressor. Para eles, quanto mais rápido aquela “tortura” acabar, melhor.

E vou mais longe nessa mistura da “arquitetura jurídica” com a literatura aludindo a Kafka (1883-1924) e ao seu célebre romance “O processo”, de 1925. Na conhecida narrativa “Diante da Lei”, tem-se um camponês que pede admissão ao porteiro que está na entrada à “lei”. O porteiro recusa e responde evasivamente que o camponês poderá entrar mais tarde.

Quando o humilde homem, do portão, olha para o interior da “lei”, o porteiro adverte-o de que é inútil tentar entrar sem permissão. Anos se passam. O humilde camponês envelhece. Esquece até que existem outras entradas e porteiros. Próximo de morrer, ele indaga por que, em todos aqueles anos, nenhuma outra pessoa solicitou entrada na “lei”. O porteiro responde que aquela porta havia estado aberta só para ele e que, agora que ele está morrendo, vai cerrá-la.

“Diante da Lei” é uma parábola. Ela tem um fim moral ou ensinamento de vida. Mas qual seria essa “moral da história”? Kafka deixa a resposta ao leitor. Há mil interpretações. Eu tenho as minhas. Numa delas relaciono a parábola aos “palácios da justiça”, que, na sua grandiosidade, já na “porta” do aparelho judicial, impedem o acesso dos vulneráveis à “lei”.

Não enfrentamos devidamente os porteiros. Os palácios. Os nossos moinhos de vento.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 25/08/2024 - 08:30h

O Estado é um negócio

Por Honório de Medeiros

Arte ilustrativa extraída da página Ministério Fiel

Arte ilustrativa extraída da página Ministério Fiel

Pedro deve ter uns dezenove anos. Magro, magérrimo, seu corpo ossudo sobra dentro da farda do supermercado. Há sinais claros de subnutrição. No rosto espinhudo um sorriso nervoso aparece e desaparece sem conexão com o que ele diz: sorri quando fala sério, fica sério quando parece brincar com a própria desdita.

Pedro está noivo: quer casar logo, mas não pode. Pergunto-lhe se estuda. “Não tenho tempo”, diz. “Pego aqui às oito da manhã e só largo lá pras oito da noite, e, aí, tenho que pegar ônibus pra Zona Norte, do outro lado de Natal, é quase hora e meia de viagem, chego cansado, só penso em dormir, nem a noiva eu vejo”.

“Está comprando as coisas para o casamento?”, pergunto. “Nada!” “A gente recebe um cartão do supermercado quando entra no trabalho e vai comprando, comprando, lá pra casa mesmo, pros meus pais, e no final do mês quase não recebe nada em dinheiro.” Faz uma pausa e continua: “mas minha noiva tá procurando emprego”.

“Ela estuda?”, continuo. “Terminou o segundo grau, mas não foi em frente por que tem que ajudar em casa.” Pedro segue arrumando as mercadorias nas sacolas enquanto conversa comigo. Diz para mim que folga uma vez por semana, “às vezes”, já que quase sempre aparece um trabalho extra na empresa. E afirma enfático, que vai voltar a estudar, “é só as coisas melhorarem.”

Pedro não sabe, mas sua turma tende a aumentar cada dia mais. A lógica do capital predatório é essa. E anda cada dia mais sofisticada: nos círculos íntimos do Poder o Estado é tratado como “business”. Os termos usados pelos gestores públicos pertencem ao mais fino dialeto econômico/financeiro: é “destino econômico” para cá, “benefícios fiscais” para lá, “mercado interno” ali, “agenda de desenvolvimento” acolá.

É preciso “vender” o Estado, dizem eles. É preciso “captar” investidores, entoam. Pura lógica do capital predatório que amealhando corações e mentes desprevenidos ou ávidos, induz sua entrega à tarefa menos árdua e mais prazerosa de semear facilidades, mão-de-obra barata e grata e outros mimos ao custo óbvio de almoços, jantares, e viagens, para os predadores de fora e os vendilhões de dentro, loucos para espoliar mais uma caterva de ingênuos sob a batuta firme, comprometida e alienada da administração pública, salvo as exceções de praxe.

Vão se multiplicar, leio na imprensa, graças às injunções dos sábios conselheiros da Corte ante os maestros da economia brasileira, as empresas, Brasil afora. Elas vêm aí com o ansiado desenvolvimento econômico: lépidas e fagueiras, sem pagarem impostos, sem darem qualquer contrapartida para o resgate do atraso social, “mas gerando riqueza e empregos”, tal é a propaganda infernal dos publicitários chapa-branca.

Riqueza para os ricos e empregos-farsas para os Pedros da vida, as Taís da vida – garçonete noite-e-dia em um “fast-food” desses que pululam por aí, a esconder rápido, um dia desses, suas lágrimas derramadas pelo filho recém-nascido e doente deixado em mãos estranhas enquanto o emprego é defendido com unhas e dentes; os Josés da vida – empregado de uma indústria “captada” no Sul maravilha, imposto “zero”, contribuição nenhuma, – quase um escravo, tal sua jornada de trabalho.

E tudo continuará como sempre foi, desde que o mundo é mundo, por que essa história se repete há muito tempo, desde que o primeiro espertalhão cercou um lote de terra e disse que “era dele”.

Quem duvidar da história de Pedro, Taís, José, procure a Justiça do Trabalho. Leia os processos. Delicie-se com a expropriação da força de trabalho da nossa classe média mais baixa. Com a história daqueles que sustentam este arcabouço todo do Estado, reproduzindo, cada vez mais sofisticadamente, o modelo de exclusão social no qual vivemos.

Projete, a partir daí, o futuro de nossa “juventude cinzenta”, aquela que se contrapõe à “juventude dourada” – os filhos das elites. E esqueça os excluídos: esses sequer constam corretamente nas nossas estatísticas governamentais, a não ser muito por cima, como quando imaginamos quanto a economia marginal (a dos “bicos”), aquela à margem do Governo, produz dia-a-dia.

Enquanto isso, enquanto o Estado é apenas um instrumento de opressão, consequência de um longo surto atrasado e colonial de um capitalismo ingênuo e predatório – Pedro, Taís, e José não sabem, mas a cada momento aumenta o custo social que eles têm que pagar para sobreviverem nesta selva de pedra: não há políticas públicas, não há projetos sociais, não há ações governamentais planejadas, não há governo, enfim.

Portanto a eles e a seus filhos estão destinadas escolas decrépitas e sem professores; postos de saúde sem médicos e sem remédios; bairros e ruas com postos policiais abandonados, viaturas policiais inapropriadas, quebradas e sem gasolina; e a imensa massa de servidores públicos trabalhando como se estivessem em pleno século XIX, para gerar espoliação da mão de obra barata.

E como os Pedros, Taíses e Josés vicejam na lama obscura da alienação, terminam achando que plano de saúde, escola particular, automóvel, lazer, cerca elétrica, carro blindado, segurança privada é, pela ordem natural das coisas, algo ao qual somente os ricos têm acesso.

Seguem em frente a venderem seu suor, seu sangue, sua vida, a preço vil.

Ah, Jesus…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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domingo - 25/08/2024 - 07:24h

O candidato sabido

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa da Stock News

Arte ilustrativa da Adobe Stock

Confiante, cheio de lábia, armado com um discurso de salvador da pátria, o candidato a vereador chega ao loteamento de casas humildes na periferia de Mossoró acompanhado por um cabo eleitoral. Por motivo de mera discrição, e para não aumentarmos o ibope do elemento, é melhor que não citemos o nome do autêntico ilusionista nem o partido pelo qual concorre a uma cadeira na Câmara.

Quando ele desce do carro, naturalmente com as cores do partido e com um adesivo circular de sua própria cara grudado na camisa, bem na altura do peito esquerdo, encontra todo mundo à sua espera. Cadeiras, banquinhos e tamboretes de todo tipo estão ocupados pelos potenciais votantes do senhor Cornélio. Pronto! Vamos chamá-lo assim, de Cornélio. As pessoas são todas olhos e ouvidos. Parece um transe coletivo. Os moradores se reúnem no terreiro de uma casa onde o ilusionista costuma discursar. O sujeito se mostra um craque no gestual e no papo-furado.

Com menos de cinquenta anos de idade, o garimpeiro de votos sabe levar o pessoal no bico. Até agora não deu nada a ninguém, e é provável que não dê mesmo que venha a ser eleito, todavia promete o Céu e a Terra ao grupo de trinta ou quarenta eleitores que escutam o seu falatório como se estivessem hipnotizados. É isso. Com a sua conversa para boi dormir, o senhor Cornélio dá um show.

Claro que as benfeitorias de maior vulto ele joga para depois do resultado das urnas. A exemplo do saneamento básico e da pavimentação com paralelepípedos da ruazinha que fica cheia de lama e escorregadia toda vez que chove. Obviamente, porém, a fim de garantir seu curralzinho eleitoral, assegura a um e a outro que vai dar isso e aquilo antes das eleições. Por exemplo, sem pestanejar nem gaguejar, afiançou a fulano e a sicrano que mandará vir alguns milheiros de telhas e tijolos de cerâmica para a construção de muros e a cobertura de certas residências.

À catadora de materiais recicláveis Maria das Graças, viúva e mãe de três crianças pequenas, mais uma iludida com as promessas de campanha do dito-cujo, falou que dará uma geladeira nova. De tão velha, a atual está cheia de ferrugem e com a porta presa por uma corda elástica. O amputado Nazareno nutre a esperança de que o candidato lhe consiga uma prótese para a perna direita e possa enfim livrar-se das muletas. Enquanto isso o mecânico Chico Mota segue na expectativa de contar com o apoio financeiro do senhor Cornélio na aquisição de uma máquina de solda.

O cabo eleitoral do senhor Cornélio, talvez por força do hábito, distribui nova porção de adesivos de papel com o rosto do tal messias. Cornélio é devoto de um ex-presidente da República a quem ele chama de mito, justo aquele que muito recentemente foi escorraçado por abelhas no município de Macaíba. Opa! Acabei revelando o nome do partido do senhor Cornélio. Mas deixo como está.

É lógico que nada disso é da minha conta. Sabemos que os homens fazem politicagem bem antes do surgimento da escrita, lá por volta de quatro mil anos antes de Cristo. Dia desses, como modelo de enganador, citei em uma inocente crônica o personagem Odorico Paraguaçu, mestre das maracutaias e da conversa-fiada.

Já o senhor Cornélio, como não poderia deixar de ser, possui as suas manhas e contos do vigário. Com admirável desenvoltura, estufa o peito, arregala os olhos por trás das lentes de grau e se vende para os moradores do loteamento como conservador, cidadão de bem, patriota, um defensor dos bons costumes e das virtudes da família.

Hoje à noite, segundo vi no Instagram de supostos e ingênuos eleitores, haverá outro encontro com o candidato sabido. Nada mais há que se possa fazer para abrir os olhos daquela gente humilde. E que ninguém se atreva a declarar que o senhor Cornélio não é um homem honesto e bem-intencionado.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 18/08/2024 - 11:28h

A arquitetura jurídica (I)

Por Marcelo Alves

Palais de Justice de Paris (Foto: Viator)

Palais de Justice de Paris (Foto: Viator)

Os edifícios do Poder Judiciário são cheios de significados para a nossa compreensão do direito e da justiça. A própria ideia de edificar é um ato de poder. Significa o poder estatal e a relevância específica da atividade judicante. É uma arquitetura que se impõe e mesmo constrange. Ela visa tanto relembrar, rememorar, evocar e enaltecer como também instruir e inspirar.

Ela busca conferir solenidade, dignidade, respeito e prestígio aos atos e às decisões ali proferidas. E muitos desses edifícios são também grandiosos, às vezes suntuosos, feitos para impressionar, admoestar, intimidar e até mesmo amedrontar.

Eduardo C. B. Bittar, em “Semiótica, Direito & Arte: entre teoria de justiça e teoria do direito” (Almedina, 2020), anota que essa “linguagem arquitetônica permite conferir dignidade e solenidade às decisões da justiça. Por isso, geralmente, a linguagem arquitetônica se vale do ornamento, da solenidade e da massa, além de uma decoração ostentatória para demonstrar a solenidade e a seletividade do ambiente de justiça, como demonstra o ensaio de Piyel Haldar na obra intitulada Law and the Image, de Costas Douzinas. Ora, o que se faz num Palácio de Justiça não é arbitrário, possui uma história e dá continuidade ao curso da civilização, desde o seu protótipo-fundador. É aí que o Palácio de Justiça revela uma forte investidura simbólica, que traduz, como afirma o sociólogo francês Antoine Garapon, três experiências fundamentais: a de um espaço separado, a de um lugar sagrado, a de um percurso iniciático”.

Com efeito, “todas as ‘marcas’ simbólicas – em separado, e diferentes dos demais espaços sociais – fazem do espaço judiciário este lugar especial para as coisas da justiça, (…) na medida em que seu oposto é o reino da violência, da barbárie e da desordem”. E se é de dentro desses palácios que saem as sagradas ordens da justiça para cumprimento por todos que estão no espaço exterior, isso justificaria o investimento orçamentário-estético-simbólico feito nos edifícios.

Um exemplo típico dessa arquitetura, dessa carga simbólica, está no Palais de Justice de Paris, sito no 1º arrondissement da capital francesa, na Île de la Cité. Sua localização, no coração da Cidade Luz, já o torna um edifício icônico. Verdadeiramente “um lugar excepcional”, como afirma François Christian Semur, em “Palais de justice de France: des anciens parlements aux cités judiciaries moderndes” (L’àpart éditions, 2012).

O Palais de Justice de Paris é um complexo de edifícios construídos e reconstruídos ao longo da história da França. Sua origem está no Palais de la Cité, que foi residência e sede de poder dos reis da França, do século X ao XIV e do qual permanecem belos vestígios, como a Conciergerie e a Sainte Chapelle. Foi a casa de Felipe Augusto e de São Luís. E quando Carlos V transferiu a residência real, as instituições da justiça ali permaneceram.

O Palais de Justice foi assumindo uma nova dimensão política, especialmente após a Revolução Francesa (1789). Hoje, o Estado Francês busca reforçar a atratividade cultural e turística da Île de la Cité. E o Palais de Justice, devidamente embelezado, tem um papel central nessa empreitada.

A fachada que domina a Cour du Mai, entrada principal do Palais de Justice de Paris, possui em estilo neoclássico com uma imponente colunata. E está encimada com signos verbais que evocam as tradições posteriores à Revolução Francesa (1789): Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Essa simbologia é muitíssimo importante. Significa a regeneração da ordem social, a legalidade, a legitimidade e, sobretudo, a expressão de um novo poder.

No cidadão, a simbologia da arquitetura jurídica atua para além do nível racional. Afeta inconscientemente os nossos sentidos: o tato, a audição e, sobretudo, no que toca à grandiosidade externa dos edifícios, a visão. Entretanto, como ensina C. B. Bittar, é “interessante notar que os elementos arquitetônicos do espaço judiciário serão, não raro, investidos de muita força simbólica, seja do lado externo, seja do lado interno, da construção arquitetônica”.

E é tratando da imersão dentro de um palácio de justiça, uma experiência interna, que continuaremos, na semana vindoura, esse nosso papo sobre a arquitetura jurídica. 

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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domingo - 18/08/2024 - 08:30h

Tem dia que, só amanhã

Por Bruno Ernesto

Foto produzida pelo autor da crônica

Foto produzida pelo autor da crônica

“Não morri. Aparentemente, as pílulas eram velhas demais, ou, talvez, não suficientemente fortes. Acordei de manhã. Sentia náuseas, zumbidos na cabeça e latejo nas têmporas. Os olhos pareciam querer saltar das órbitas, enquanto os braços e as pernas pareciam estar paralisados. Uma mosca, certamente aturdida pelos acontecimentos da noite, fazia cócegas no meu pescoço. Tive que usar um violento esforço para espantá-la. A minha primeira sensação não foi o desapontamento por não ter morrido, mas a alegria de estar vivo. Senti um animalesco e irresistível desejo de viver, a qualquer preço. Agora, que sobrevivera a uma noite num prédio em chamas, tinha que encontrar um meio de salvar-me”*.

Certamente você já deve ter tido um dia parecido com essa descrição. Não que você tenha ingerido pílulas velhas demais ou tenha passado a noite em um prédio em chamas após um bombardeio.

Todos nós – uns mais, outros menos -, travamos nossas batalhas. Umas diariamente, outras sazonais. Mas, uma coisa é certa: uma guerra é feita de batalhas.

A correria do dia a dia, as inconveniências da vida, em especial as pessoas com quem temos que lidar diariamente, gostando delas ou não, por vezes é um preço alto demais que se paga para ser gregário.

Há pequenos detalhes do dia a dia que, se antes não dávamos importância, ou eram irrelevantes, com o passar dos anos, cada vez mais pessoas tendem a se afastar de certos ambientes para, simplesmente, não ter que cruzar com alguém que estrague o seu dia.

Por acaso, você percebeu que aquela pessoa – seja amigo ou familiar – com quem você mantinha estreitos laços simplesmente sumiu do seu horizonte?

Embora seja um fenômeno bem antigo, e que atualmente foi batizado de “ghosting” no âmbito dos relacionamentos das redes sociais, a finalidade é a mesma: sumir da vida do outro.

Claro que nossa vida é feita de ciclos. Um sempre termina para que outro se inicie. Por vezes é natural e, indiscutivelmente, necessário em certos momentos da vida. Se não aconteceu ainda com você, pense melhor. Alguns deles partem de nós mesmos.

Tem dia que uma dose de uísque cai melhor que uma taça de vinho.

Aquela amizade que você julgava firme, forte e inabalável, talvez só exista em sua mente; embora, sim, haja amizades genuínas, claro. A sua?

Aquele sorriso amarelo que lhe fazem ao chegar em um determinado ambiente, ou aquele olhar de soslaio, talvez seja mais verdadeiro que a sua própria consideração. Sim, a sua.

Se certas vezes você, mesmo não tendo superstição, acorda com o pé esquerdo, talvez devesse tentar ser ambidestro.

Lembro que Rita Lee, ao ser questionada por um repórter o porquê de gostar tanto da companhia dos animais, disse que as pessoas trazem muitos problemas. Os animais, não.

Tem dias que precisamos apenas de um banho demorado, uma boa xícara de leite com canela e uma boa noite de sono.

Sim, tem dia que, só amanhã.

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

* Trecho do livro “O Pianista”, de autoria do polonês Władysław Szpilman.

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domingo - 18/08/2024 - 07:28h

O último abraço

Por Odemirton FilhoAbraço

A queda de um avião em Vinhedo (SP), no último dia 9, ceifou a vida de sessenta e duas pessoas, interrompendo sonhos e cobrindo o Brasil de luto. Eram pessoas de todas as idades que não voltaram para as suas famílias, pois partiram para outro plano e deixaram saudades no coração dos seus. Um abraço apertado, um sorriso, um beijo carinhoso, uma lágrima, quantas lembranças devem estar no coração dos familiares e amigos.

Imaginemos os filhos a esperarem os seus pais; os pais a esperarem os seus filhos. Maridos e mulheres ansiosos pelo retorno do(a) companheiro(a). Quando ocorre uma tragédia dessa proporção há um enorme sentimento de pesar, diante do impacto por tantas vidas perdidas de uma só vez. Embora tenhamos a morte como certeza, pois a “única conclusão é morrer” – diria Álvaro de Campos, heterônimo do poeta Fernando Pessoa.

Claro que os órgãos competentes irão apurar os fatos e, se ao final da investigação, houver culpados, que sejam responsabilizados na forma da lei. Entretanto, nada aplacará a dor de quem ficou. Nenhuma indenização, por maior que seja, pagará o inestimável valor que aquelas pessoas tinham para os seus familiares. A saudade será uma companheira diária, uma vez que o tempo pode acalmar o coração, todavia, nunca conseguirá arrancar do peito o amor por aqueles que nos fazem falta.

Fico a pensar no filho que não aprenderá a andar de bicicleta com o seu pai; na mãe que não mais abraçará o filho. Os encontros em família não serão como outrora, sempre faltará alguém. E, aqui ou acolá, lágrimas descerão pelo rosto, porque o coração estará transbordando de lembranças e saudades.

O jovem casal não formará a sua família, não terão os filhos que tanto esperavam; a casa, comprada com tanto esforço, ficará vazia. Os sonhos sonhados foram desfeitos, pois só tinham razão de ser se fossem concretizados ao lado daquela pessoa.

Quantos abraços, beijos e sorrisos não foram trocados antes daquele fatídico voo? talvez, juras de amor. Mensagens por meio do aparelho celular foram enviadas, “eu chego já, te amo”.

Se eles soubessem que aquele momento seria o derradeiro, teriam dado um abraço mais apertado, um beijo mais demorado, teriam dito palavras nunca ditas. Eu sei que é um clichê, mas nunca é demais repetir que nenhuma demonstração de afeto deve ser deixada para depois, pois não sabemos quando será o último abraço.

Odemirton Filho é colaborador do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
  • Repet
domingo - 18/08/2024 - 05:44h

Um conto bem-feito

Por Marcos Ferreira

Imagem ilustrativa gratuita da Stock

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Terça-feira passada, ao ler um conto do escritor Inácio Rodrigues Lima Neto, delegado da Polícia Civil e colaborador deste Blog Carlos Santos, senti-me inspirado diante da ótima urdidura de Inácio Rodrigues. Então, como há muito eu não faço, falei de mim para comigo e disse: “Vou escrever algo assim para o próximo domingo!” Coisa nenhuma! Fiquei só na vontade, no caqueado.

Sem querer jogar a toalha, sem digerir a derrota, procurei alguns autores e as suas páginas a fim de me livrar da influência do enredo trazido por Inácio, que no final das contas embaçou o meu horizonte criativo.

O referido conto, publicado aqui no Blog no dia 17 de novembro de 2019 sob o título “Memórias em cacos” (veja AQUI), vale quanto pesa, conforme o adágio. O danado me pegou mesmo de jeito. Esse causo oferta ao leitor uma história cheia de surpresas e astúcias literárias que nos deixa de queixo caído no seu desfecho.

Ouso dizer, sem sombra de dúvida, que se trata de um dos melhores contos já publicados neste espaço, muito embora o autor seja uma espécie de contista bissexto.

Como podem notar, findei entregando os pontos. Não escrevi o que pretendia, contentei-me com louvar o texto de Inácio, cuja narrativa merece ser lida ou relida por todos que acompanham o que se estampa aqui.

De minha parte, quando eu reorganizar a oficina da inventividade, almejo produzir uma peça dessas do chamado gênero short story. Por enquanto, sem lhes apresentar uma crônica propriamente dita e muito menos a ambicionada ficção, considero razoável tecer estes palpites acerca de “Memórias em cacos”.

Apesar da ideia de fragmentação, tudo se encontra nos devidos lugares. Recomendo, portanto, a quem não conhece o texto, que procure ler essa escrita do Inácio Rodrigues.

Não se trata de incensar ou adular. Porém (coisa que não dói nem arranca pedaço) apenas parabenizo o autor. Pois se agora me comporto de tal forma é por único e simples merecimento desses bem-articulados “cacos”.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 11/08/2024 - 17:48h

Um “Jumento” no Vaticano

Por Carlos Santos

Reprodução de quadro com charge e crônica

Reprodução de quadro com charge e crônica

O professor, advogado e ex-vereador mossoroense Tomaz Neto passeia pelas “Oropas”, com prioridade para visita ao Vaticano.

Ao lado de sua mulher, a professora Ceição, faz a segunda viagem internacional da vida.

Na primeira aos Estados Unidos, há alguns anos, foi apresentado ao WhatsApp e chamadas de vídeo por esse aplicativo. Os amigos sofreram bastante com essa descoberta científica dele.

Agora, creio, venha da Basílica de São Pedro com o domínio do Direito Canônico, amigo do Papa Francisco e alguma encíclica para pacificar o Brasil.

Tomaz, que a todo interlocutor trata carinhosamente por “Jumento”, ainda poderá contar em sua volta a Mossoró, que pela primeira vez um “animal” nordestino atravessou o oceano para receber a bênção papal.

O Jumento é nosso irmão!

Carlos Santos é criador e editor do Blog Carlos Santos

*Crônica originalmente publicada no dia 22 de outubro de 2022 (veja AQUI)

Nota do Blog Carlos Santos – O ex-vereador Tomaz Neto completou 70 anos essa semana e o presenteamos com  quadro espelhando charge constante desta crônica e o próprio texto, em trabalho do chargista, artista plástico e caricaturista Túlio Ratto. Saudação a uma amizade de mais de 35 anos de estrada, que sobreviveu ao tempo, às diferenças, conflitos de interesses e ao nosso temperamento por vezes trovejante.

Saúde, paz e juízo (se ainda for possível), Velho.

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 11/08/2024 - 10:46h

Os contos

Por Marcelo Alves

Ilustração do Adobe Stock

Ilustração do Adobe Stock

Sob o ponto de vista da extensão do texto, numa ordem decrescente, a ficção em prosa é classificada em romance, novela e conto. Longe de ser arbitrária, essa classificação tem sua razão de ser, pois, entre outras coisas, os recursos imaginativos do escritor e a própria formatação da narrativa dependem muito do estilo/subgênero em que se deseja escrever.

Como explica Alan Wall, em “Writing Fiction” (Collins, 2007), “a mais óbvia diferença entre o romance e o conto é a extensão/tamanho. O romance é algo muito mais longo, e todas as outras diferenças decorrem desse fato. A maior extensão permite uma variedade de vozes, retratos detalhados de diferentes vidas; ela permite uma ambientação variada, com a descrição dos locais e de suas populações. A narrativa pode acelerar ou diminuir de velocidade, pode ter longas seções meditativas, em que nada acontece com exceção da descrição das inúmeras reflexões. Por isso o romance é talvez a mais flexível forma literária já inventada”.

A novela, basicamente, fica no meio do caminho, no que toca a tamanho e características, entre o romance e o conto.

Quanto ao conto, os especialistas ensinam o que dá forma e conteúdo a um texto de excelência: partir de um fragmento da vida ou de uma história; daí retornar a um tema universal; apresentar uma mínima biografia das personagens; sugerir mais do que contar; ter um narrador irreal, num monólogo, ou ter um diálogo, com duas visões de mundo; ter um mistério a ser decifrado; apresentar um caso sobrenatural com a exploração do suspense ou do terror; sugerir uma estória de amor, em regra não realizado; e, ao final, ter uma epifania. Edgar Alan Poe, Guy de Maupassant, Anton Tchecov, Ernest Hemingway, Flannery O’Connor, Jorge Luis Borges e o nosso Machado de Assis, entre outros gigantes, foram os “craques do jogo”.

Embora o romance ainda seja o subgênero narrativo ficcional mais glamouroso, o conto é um meio de expressão narrativa sobremaneira ajustado ao mundo “líquido” atual, certamente bem mais fragmentado do que o mundo/vida de outrora. O já citado Alan Wall lembra mesmo que “as estórias da modernidade são frequentemente fragmentadas: isso porque a própria modernidade é fragmentada. A vida moderna, ela mesma, não se nos apresenta num todo contínuo. Ela é comumente uma montagem de fragmentos desconectados”.

Na roda-viva de hoje, a ficção em forma de conto é uma dádiva tanto para o escritor como para o leitor. A duração de sua leitura, bem menor que a de um romance, é o suficiente para gostarmos da estória sem cansarmos. É um mundo em miniatura para se viver, com começo, meio e fim.

É nesse contexto agitado que me caiu em mãos o livro “Contos do Tirol” (Sarau das Letras, 2024), do prolífico escritor mossoroense David de Medeiros Leite, que é professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca (USAL) – Espanha. Li-o de uma tirada. Adorei. E desejo recomendá-lo por aqui.

As estórias de “Aurora”, “Tatuagem”, “Húmus de minhoca”, “Medo de dedo”, “Dahora”, “Unhas roídas”, “Fim do mundo”, “Reencontro”, “O colecionador de guarda-chuvas”, que compõem os “Contos do Tirol”, seja na voz de um narrador imaginário ou nos seus diálogos, retornando a temas universais, têm amores não realizados, um tico de pornografia, psicologia, suspense e, claro, várias epifanias. Identifiquei-me, inclusive, com algumas dessas estórias.

Sophie King, em “How to Write Short Stories” (How To Books, 2010), ensina que “escrever contos é tanto uma ciência como uma arte”. Pois David de Medeiros Leite, professor doutor e fino escritor, em “Contos do Tirol”, misturou muito bem essas duas sabenças.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 11/08/2024 - 07:48h

Madrugada insone

Por Marcos Ferreira

Foto ilustrativa feita pelo autor da crônica

Foto ilustrativa feita pelo autor da crônica

Duas e cinquenta e cinco da madrugada. Levanto-me para ir urinar e sinto que o sono foi-se embora. “Acho que a quetiapina falhou de novo”, penso com meus botões. Os galos palestram cheios de entusiasmo. O que tanto será que conversam? Não sei. O que sei é que gosto de ouvir esses tenores ao longe. Pois é, ainda há galos, noites e quintais. O bigodudo Belchior ficaria contente com isso.

No mais compreendo que não conseguirei voltar a dormir. Não pelo menos em breves minutos, assim tão depressa. Decido que será oportuno ligar o computador e escrever alguma coisa após vários dias sem produzir uma página. É isso. Vou rabiscar uma historinha enquanto a insônia permanece. Tomo a providência de preparar a cafeteira. Sim, um cafezinho talvez ajude a fazer os pensamentos fluírem. Daí a pouco a cafeteira emite seus últimos estertores. O cheio é ótimo!

Não tomarei banho tão cedo. Lavo apenas os olhos e escovo os dentes; deixo outras abluções para mais tarde. Um vigilante de rua passa apitando sobre uma motocicleta. Os galos seguem com o colóquio em pontos diversos. Sirvo-me de uma pequena xícara de café. Vou tomando a rubiácea com vagar.

Um turbilhão de pensamentos me vem à mente. Nada, entretanto, com muito proveito para a composição desta hipotética crônica. Recordo situações e fatos pretéritos e gasto um pouco do meu raciocínio avaliando bobices, questões futuras. Percebo que não vou bem das pernas na condução deste possível texto para publicar no domingo. Mas é dessa forma. A gente nem sempre governa; certas vezes somos governados pela escrita que supomos apreender e tentamos moldá-la.

Não desejo, porém, descambar para o velho e repisado tema do processo de redação. Não estou a fim de chover no molhado. Melhor dizer algo mais a respeito dos galos, que seguem firmes com as suas canções gregorianas. Há também alguns grilos estridulando em miúdos esconderijos nas imediações.

Em breve explodirá a algazarra dos pássaros que ocupam o condomínio da mangueira no quintal da casa aos fundos. Imagino que consigo ouvir alguns pipilos daqueles bichinhos alados mais madrugadores. Volto à cafeteira e pego outra meia xícara. Dizem que não é algo saudável tomarmos em jejum.

Confiro a temperatura: vinte e dois graus. Seria uma bênção se ao meio-dia não chegasse aos trinta e sete ou mais; isso com sensação térmica de quarenta. Dou seguimento a estas linhas já um tanto cabeceando. É o que estou dizendo. Apesar dos tragos moderados de café, parece que a sonolência está de volta. A passarada iniciou sua festança nos ramos da portentosa mangueira do vizinho.

A solidão me faz companhia na maior parte do tempo. É verdade. Vivo só há quase vinte anos. Estou habituado. Mas existem ocasiões em que penso que baterei as botas a qualquer instante sem que ninguém fique sabendo. Sentirão minha falta depois de longo tempo e aí um chaveiro dará um jeito de abrir a porta. Desse modo encontrarão o meu corpo em avançado estado de enrijecimento.

Mas não falemos (perdoem este sapateiro das letras) acerca dessas questões funestas, de nada disso que possa representar melancolia, baixo astral nem pessimismo. Não posso morrer agora. Como eu costumo dizer, o preço do caixão está pela hora da morte. Quiçá as Olimpíadas sejam uma boa saída; assunto melhor para se abordar. Acontece que estou por fora dos jogos olímpicos. Tenho visto meramente um fragmento aqui e outro acolá quanto aos eventos esportivos que se passam em Paris. Futebol?! O tal do Brasileirão?! Está por completo longe do meu campo de interesse. Não tenho nadica de nada a dizer concernente a esse aclamado esporte.

Bem, prezados leitores, é chegado o momento de colocarmos um ponto final nessa conversa-fiada. Espero que noutra circunstância, quando a literatura estiver menos arisca, menos arredia, eu lhes ofereça uma narrativa digna do tempo e atenção de vocês. Escrever não depende tão somente de vontade própria.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 11/08/2024 - 04:00h

Conhecimento

Por Honório de Medeiros

Foto de autoria do próprio cronista

Foto de autoria do próprio cronista

Imagine uma semente, o fruto de uma árvore que a gerou. Ela medra, se desenvolve, suas raízes mergulham no chão em busca de alimento, o tronco cresce, veem os galhos, ramos e folhas em busca do céu. Frutos virão. O ciclo continuará.

Assim é o conhecimento. Não começa do nada. Antes de qualquer ideia – a semente – outras propiciaram seu surgimento. Suas raízes são buscas de comprovações, no passado, que darão suporte à sua existência, mergulhando fundo no conhecimento anterior.

Seus galhos, ramos e folhas desenvolvem-se rumo ao infinito. Os frutos são colhidos por todos nós.

Os frutos do conhecimento vão se transformar em outras árvores, e não há limite para o tamanho da floresta.

Em cada um de nós há uma floresta. Se nos dermos as mãos, deixarmos de lado o que nos separa, dia haverá que seremos Um que são Todos.

Natal, “Ventos Uivantes”, 27 de novembro de 2023.

Honório de Medeiros é ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 04/08/2024 - 16:34h

O pesquisador entusiasta

Por Marcelo Alves

Foto ilustrativa

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Amaro Cavalcanti (1849-1922) foi um pesquisador entusiasta do direito dos Estados Unidos da América, cuja história se confunde com a formação do próprio país.

A conformação do direito estadunidense remonta à fundação, pelos ingleses, nos albores do século XVII, de colônias independentes no chamado novo mundo (a primeira, em 1607, foi Virginia). Então, com o exemplo do processo Calvin, de 1608, é o common law que vigora nas treze colônias inglesas a partir de 1607 até 1722. Em conjunto com o common law inglês, desenvolveu-se um direito primitivo nas colônias americanas, no qual a Bíblia tinha também papel de fonte do direito.

Surgiram codificações, tais como a de Massachusetts de 1634, que ajudavam na administração da justiça. E a presença de colonos vindos de outros países explica a coexistência, nesse período, do common law com um esboço, mesmo que rudimentar, de codificação. Já o século XVIII, o Século das Luzes e da secularização do conhecimento, vem lançar a luz que originará a especificidade do direito americano, sobretudo porque as normas do common law importadas da Inglaterra já não ofereciam, para todos os casos, as soluções idôneas aos problemas jurídicos da futura nação.

Em 1776, veio a Declaração de Independência das primeiras colônias americanas, emancipação que se consumou com a Constituição de 1787 e o Bill of Rights de 1789. A independência dos Estados Unidos fez com que, apesar de mantida a filiação ao common law, fossem elaboradas leis novas que, ocasionalmente, divergiam da tradição pura do sistema inglês. Foi nesse período tumultuado da independência dos Estados Unidos da América que os representantes dos estados (antigas colônias), em congresso de delegados na Filadélfia, no Independence Hall, optaram pela criação da célebre e modelar Federação.

Segundo Amaro Cavalcanti – e aqui já se mostra o entusiasmo do autor de “Regime Federativo e a República Brasileira” (1900) com a Federação estadunidense –, era o caso, “nada mais, nada menos, do que, no dizer de um escritor, – ‘salvar os Estados confederados da bancarrota, da desordem e da anarquia, e dar a todos uma existência nacional’”.

Mas “a tarefa era por demais difícil, em vista dos interesses encontrados nos Estados”, que, “antes de tudo, não queriam abrir mão dos seus antigos privilégios e direitos soberanos, mantidos na Confederação”. Triunfou “o querer patriótico e a habilidade de alguns chefes proeminentes da Convenção” e “foi adotada a Constituição Federal da República Americana”.

Amaro nos dá, pela ótica de então, à luz da Constituição estadunidense, a conformação do Estado federal criado, com seus ramos do poder público completos e bem definidos: (i) o poder legislativo foi confiado a um Congresso, composto da Câmara dos Representantes e do Senado; (ii) o poder executivo foi confiado ao Presidente dos Estados Unidos, eleito para um período de quatro anos, pelo povo, mediante sufrágio de dois graus, isto é, o povo de cada Estado elege os eleitores presidenciais, e estes, o Presidente da República. Conjuntamente com o Presidente é também eleito um vice-presidente, para servir-lhe de substituto, e tanto um como outro podem ser reeleitos; (iii) o poder judiciário foi confiado a uma Corte Suprema e às cortes inferiores, que por lei forem criadas. Os membros deste poder são nomeados pelo Presidente da República, mediante assentimento do Senado, e são conservados nos seus lugares, enquanto bem servirem (during good behaviour); (iv) a Constituição federal investiu os três poderes ditos de todas as atribuições e faculdades necessárias, de modo a constituir o governo federal a autoridade soberana da Nação, tanto nos negócios interiores, como nas relações exteriores da República; (v) e, talvez o mais importante, já que estamos tratando da conformação de um Estado federal, quanto aos estados federados, conservaram eles, sem dúvida, a mais completa autonomia nas matérias de legislação, administração e justiça local; mas, em todo o caso, dependentes do poder central, segundo os princípios da nova organização feita.

Leia também sobre Amaro Cavalcanti: O jurista federal

Leia tambémO historiador comparatista

Ao finalizar sua “história” da formação da Federação estadunidense, Amaro não fez a menor questão de esconder seu entusiasmo com a obra comentada: “desta sorte, começou a ter efetivo vigor esse documento memorável que, sob o título de ‘Constitution of the United States of America’, subsiste há mais de século [lembremos que ele escreveu por volta do ano 1900], fazendo a prosperidade de um grande povo, e provocando a admiração dos estadistas do mundo inteiro”.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL

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Categoria(s): Crônica
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