terça-feira - 09/02/2016 - 12:22h
Crônica

Imagens e sentidos do meu sertão

Meu Carnaval tem sido de descanso e trabalho em marcha lenta.

Estava precisando para recarregar baterias. Tenho um ano em movimento, que promete ser de grandes desafios.

Eu preciso deles, os desafios. São meu combustível.

Mas tirei um dia para mirar o sertão; sentir seu cheiro, ziguezaguear por suas estradas e veredas e falar com sua gente.

Comer arroz-de-leite, lavar o rosto com água geladinha da cisterna, procurar (sem sucesso) o camaleão mimetizado na folhagem e seguir em frente, sem a pressa de chegar.

Ouvir. Observar. Falar pouco (ô! Tentei).

São coisas que me fazem bem. Sou capiau da cidade, realimentado pela vida campesina.

Até neblinou ao longo de pouco mais de 400 quilômetros percorridos.

Eu pedia chuvas caudalosas, antes de viajar. Há-as permanentemente em meus sonhos. Vislumbro-as da casinha – imaginária – fertilizando o chão que dá cria à vida semeada.

O sertão verdinho, animais pastando, o sertanejo sorrindo, é como retempero para continuar a rotina que me empolga nesta página e outras tarefas.

Voltei olhando pela janela do carro e no retrovisor o que ia deixando para trás e ao largo: aquele sol engolido por nuvens densas, teimando em ficar.

Eu não me demorei. Mas trouxe todas as imagens e impressões em meus sentidos. Não ficaram para trás; carrego-as em mim.

Reencontrei-me para continuar minha marcha. Já no beicinho da noite avistei minha cidade.

Hora de começar tudo de novo. Em paz!

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quinta-feira - 24/12/2015 - 00:30h

O que tenho pro Natal

Por Carlos Santos

Eu poderia ser repetitivo, utilizar um cabedal de lugares-comuns, palavras rebuscadas ou recorrer ao ramerrame de sempre, agarrado aos comandos do teclado – no Control C/Control V.

Estão aos montes aí na Net, as saídas para a gente ser simpático, afetuoso, familiarmente resolvido e afetivamente preenchido. Copia, cola.

Completo, feliz, bom além da conta. Ser o que definem por aí como alguém “realizado”.

Parecer que somos aquilo mesmo. Dar a entender que temos tantos dotes.

Tudo está pronto, definido. Até as músicas são as mesmas, incluindo Simone e… “Então, é Natal!” Sim, ela mesma.

O que tenho pro Natal?

Nada que não ofertei o ano todo. Não serei diferente, apesar de admitir que não possa estar alheio a essa atmosfera carregada. Sou Sísifo e sua obrigação de empurrar uma rocha montanha acima.

Indiferente, não. Não mesmo. Mas do meu jeito.

Tem um monte de crianças que quer ser feliz, pelo menos naquela noite.

Que sejam felizes!

Adultos que acreditam que um sujeito da Lapônia, com um sorriso engraçado – “Hô, hô, hô!” – possa aplacar ódios, mágoas e nos devolver o sorriso para sempre.

É, não custa acreditar.

Quando tudo passar, quero voltar a ser como antes. Quero ser devolvido à realidade e continuar minha marcha.

Tenho um Natal por dia. Até o fim.

Feliz Natal!

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domingo - 20/12/2015 - 10:34h

Reflexões do notário

Por François Silvestre

“Nem sei o porquê desse “n” que se agregou ao nome da minha atividade”. É assim que seu Genaro, tabelião aposentado, refere-se à denominação da sua atividade.

Cáustico consigo mesmo, ao ponto de julgar-se estúpido, seu Genaro prefere pôr em si a culpa dos defeitos que aprecia nos outros. “Essa minha mania de ver nas pessoas as ruindades que são minhas”.

E assim, aparentemente despido de autoestima, vai tecendo com fina ironia o lençol furado que cobre a dignidade dos nossos tempos.

“Você tá vendo o cuidado das nossas autoridades locais com a economia de água”. Comenta ele. “Não se pode furar poços nem se abastecer além do máximo permitido”. Seu Genaro reconhece que é uma boa providência.

Mas pergunta: “Não pode furar poços, mas pode tocar fogo nas grotas”. E ele não tá falando dos incêndios criminosos ou acidentais. Não. Tá falando dos broques “legais”. Daqueles que são preparados durantes dias ou até meses, para depois queimar o pouco que ainda resta da vegetação nativa.

E junto com a vegetação morrem bichos e secam olhos d’água. “Água num pode buscar, mas pode tocar fogo”. Quais são os órgãos oficiais que cuidam da natureza?. “Talvez sejam os órgãos genitais de Zé Pelintra”.

Fora da vida notarial ele guarda mais alívio do que saudade. “Quando vejo um cartório, sinto arrepios”. E conta que ainda hoje tem pesadelos com carimbos. Reouve o senso de humor.

“O fórum e seus cartórios são engenhos de moer malucos”. Diz e completa: “E todos são escravos dos papéis”.

Seu Genaro, nos trinta e cinco anos de vida forense, colecionou cacoetes, tiques e assombrações. Foi do tempo da datilografia, fitas rubro-negras, capas de papel madeira. Estantes de cumaru e cadeiras de palhinhas. O cheiro de mofo mora no seu nariz.

Sua secretária chamava-se Clara. Cabelo preso por uma marrafa e óculos de grau grosso. Conta-se que Tibúrcio a flagrou acariciando o carimbo do protocolo.

Dona Clara arrumava os carimbos em filas, pelo tamanho. Pareciam soldados de chumbo, na batalha estulta da burocracia. O burocrata é um cupim de roer paciência.

Numa audiência de partilha, o inventariante passou mal e pediu: “Posso ir ao banheiro, dona Clara”? Ela não ouviu direito nem levantou a vista; só respondeu: “Faça um requerimento”.

Seu Genaro goza contando dessas. Certa vez ele deu ao inventariante uma relação de documentos necessários para o processo. Em casa, o interessado não conseguiu ler a letra do notário.

Voltou ao cartório. Seu Genaro viajara para Mossoró. E agora? Lembrou que seu Rivadávia, da farmácia, sabia ler letra ruim.

Ao mostrar o papel ao farmacêutico, seu Rivadávia disse: “Esse antibiótico, não tem; só o substituto. O xarope e os comprimidos eu tenho”. Disse e comentou: “Essa letra num é dos médicos daqui”.

Té mais.

François Silvestre é escritor

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domingo - 06/12/2015 - 10:38h

Leitura da mão

Por François Silvestre

(Para Naide Rosado e Carlos Santos)

Tudo começou na feira do Patu. E estendeu-se para as outras feiras, numa romaria desassossegada. E tensa. Intensa. Assim foi a paixão de Samuel.

Os ciganos chegavam às cidades e procuravam as fazendas mais conhecidas para pedir arrancho. O Cangaíra, de Messias Targino. O Manuê, de Antônio Suassuna. O Açude Novo, de Chagas. Os Cajuais, de Quinquim Gomes. A Bola, de Silvestre Veras. A Jurema, de Pedro Regalado. Lages, de Oliveira Rocha. Os Campos, de Zenon de Souza. Timbaúba, de Osório Fernandes. A Lagoa, de Manoel Onofre.

E muitas outras. Os bandos liderados por um chefe conversador e convincente, geralmente deixavam marcas de suas paragens não muito recomendáveis. Zé Garcia era o mais famoso deles.

Mesmo assim, sempre conseguiam autorização para novas pousadas. Ninguém sabia a razão dessa leniência dos fazendeiros. Ou se alguém sabia, fazia-se ao desentendido.

A verdade de mesmo, motivadora dessa relação, onde as fazendas quase sempre sofriam prejuízos, não era outra senão a quantidade de ciganas jovens e bonitas. Belas e acessíveis.

“Num sei o que é que fulano tem com esses ciganos. No inverno do ano passado, eles roubaram três burros de carga e venderam armas com defeitos. E ele ainda hospeda essa gente”. Dizia a mulher de um desses fazendeiros.

Ocorre que não era para os ciganos e sim para as ciganas que o marido dela dava arrancho. Os prejuízos faziam parte da artimanha.

Os cabarés, das cidades pequenas, assustavam os fazendeiros. Não por doenças ou custos, mas por medo da falação. O bando arranchado de ciganos era uma mão na roda.

Foi num dia de feira, em Patu, que Samuel conheceu Honoralina, filha de Coralina com o cigano Honorato. Paixão que desceu feito balão incendiado. Quentura sem rumo.

Aproximou-se e pediu leitura da mão. Ao toque com os dedos suaves da jovem cigana, Samuel nem ouviu as previsões. A vista embaçada e o corpo trêmulo. Quando a cigana fechou a mão, o ganjão Samuel pediu quase chorando: “Leia mais”.

Na emoção, deixou de ouvir as previsões sombrias. E não deixou mais de seguir o grupo de Honorato, dissidente do grupo maior de Zé Garcia. Os dois brigaram e o grupo dividiu-se.

Estivesse Honorato em Umarizal, lá estaria Samuel. Sempre de mão mendiga a pedir leitura de Honoralina. Em Caraúbas, Pau dos Ferros, Apodi, Brejo do Cruz.

Por não ouvir as previsões de Honoralina, dada a emoção que dominava o corpo, fechando os ouvidos, Samuel não tomou as precauções que a cigana sugeria. “Uma desgraça lhe segue as veredas, ganjão. Desgraça de sangue de faca. Não fique na feira da chapada”.

Naquele Sábado, a discussão no bar de Apodi e três facadas no bucho. Tripas expostas, Samuel agoniza. A dona do boteco aproxima-se. Ele diz a última palavra, com a mão aberta: “Leia”. Té mais.

François Silvestre é escritor

* Texto originalmente publicado no Novo Jornal.

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sexta-feira - 11/09/2015 - 10:49h
Reflexão

Meu 11 de Setembro, um dia que não acabou

Onde eu estava há 14 anos, no momento dos ataques terroristas de 11 de Setembro?

Lembro bem.

Como comum, em Mossoró. Como comum, manhã de sol.

A TV no quarto parecia uma geladeira. À época eu ainda conservava o hábito de manter um equipamento desse no quarto – permanentemente ligado.

Deparei-me com aquela cena de difícil compreensão: um edifício enorme, sob chamas.

As informações eram desencontradas e era difícil para mim, que acordava de uma noitada regida à Wyborowa, entender aquela imagem.

A princípio, pensei aturdido: é um filme.

Mas depois outro avião se choca contra novo edifício. Mais chamas. Não era um filme.

Segundo avião mergulha na direção da segunda torre: não era um filme (Foto: reprodução da Web)

A partir daí, a cobertura jornalística planetária passa a dissipar a ideia de acidente. Trabalhava-se com a certeza de um atentado terrorista.

A América imperial estava abalada. Mais do que nunca passou a ser um Estado policialesco, sempre sob o temor de mais atentados.

As chamadas “Torres Gêmeas”, o “World Trade Center”, desabaram e redefiniram – para pior – as relações entre Estados Unidos e o restante do mundo moderno.

Mesmo assim, parece que quase ninguém parou para refletir sobre o papel das grandes potências e da convivência do homem com o homem na Terra.

O surgimento do Estado Islâmico, guerras infindáveis, o populismo de ditadores sob o manto de supostas democracias e a migração de levas de refugiados africanos/árabes para a Europa, nos devolvem à barbárie. Se é que um dia nos livramos dela.

A guerra não é entre União Soviética e Estados Unidos, comunismo e capitalismo. Ocidente e Oriente, também não.

A grande batalha de hoje é a de sempre: o homem conseguir se enxergar como um só.

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domingo - 08/03/2015 - 09:44h

Para que servem as palavras

Por Honório de Medeiros

As palavras valem também para isso, dar alguma existência aos nossos delírios.” (Raduam Nassar, em  “Cantigas d’amigos”, Cadernos de Literatura Brasileira, Ariano Suassuna)

Ariano, entrevistado pelo Cadernos de Literatura Brasileira diz, em certo momento: “não sou um escritor de muitos leitores; costumo dizer que sou um autor de poucos livros e poucos leitores -, (…) Mesmo que eu não publique, tem um círculo de leitores que sempre lê o que escrevo.”

Retruca o Cadernos: “Este é um circuito antimoderno, o circuito da comunidade interessada.”

Assim é, assim será, dado o caráter dos tempos atuais, no qual a imagem evanescente e superficial é tudo e as palavras, quando delírios, manjar para poucos. Aqui a palavra é arte.

Relendo “O Crime do Padre Amaro” do imenso Eça, lá encontro essa idéia pela voz do seco Padre Notário:

– Escutem, criaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja uma brincadeira! Irra! Eu não sou um pedreiro-livre! O que eu quero dizer é que é um meio de persuasão, de saber o que será passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para ali… E quando é para o serviço de Deus, é uma arma. Aí está o que é – a absolvição é uma arma.

Recordo que dizia para meus alunos de Filosofia do Direito ser a confissão um inteligente serviço secreto, a serviço da aristocracia, para a manutenção dos interesses de classe.

A palavra: arte ou instrumento. Às vezes tudo isso ao mesmo tempo. Não somente a palavra escrita, mas também a falada, dá existência aos nossos delírios.

Natal, em 7 de março de 2015.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 15/02/2015 - 07:22h

Agora vou tomar meu rumo…

Por Honório de Medeiros

Estamos de partida. Na bagagem, alguns livros e duas garrafas de Serra Limpa.

Essas duas danadas vão para combinar com os finais-de-tarde lá nas terras de Gil, Annica, Gabriel e Ana Maria, a Fulô da Pedra, quando estivermos escutando o canto dos passarinhos, a toada do vento, o farfalhar das folhas nas árvores e o barulho dos grilos enquanto a noite chega.

Vez por outra o relinchar dos cavalos e o mugido de um ou outro boi. E vendo as luzes das estrelas se acendendo no céu e sentindo o cheiro de mato invadir o alpendre da Casa-Grande.

Nada de celular, televisão, computador, ar condicionado, paredão de som ou som-ambiente. Nada.

Vez por outra um pouco de silêncio logo interrompido pelas risadas ocasionado por algum dito gaiato ou o converseiro de todos irmanados pelos antigos laços de fraternidade que somente a mãe-terra proporciona de mão-beijada a quem lhe ama.

Mais tarde, depois da refeição simples, mas substancial, uma fogueira para chamar estórias de trancoso e estreitar cumplicidades de almas enquanto o sono não vem.

Quando vier, virá acalentado pelo ruído do vento nas frestas das telhas e se haverá de dormir o sono dos inocentes até o chamado do galo, na hora do sol nascer.

Até mais ver…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 08/02/2015 - 03:15h

Nossos baús de ossos

Por Marcos Pinto

“…E no fim resta apenas a saudade. Não importa onde estejam, Quem amamos sempre estará conosco”.

A trajetória indefinida do ser humano impõe a necessidade da adoção de fé inquebrantável, através da qual se atenuará a tensão das interrogações sobre o incontinenti desfecho existencial. Nesse desenrolar, assiste-nos a certeza inexpugnável de que todos nós carregamos nossos baús de ossos.

É certo que alguns mais pesados que os outros – pesados por tragédias que marcam a crônica do passado, a história do presente e uma dor que sempre marcará o programa do futuro. Somos sempre flagrados comungando silenciosamente com a merencória procissão de nossos mortos, em penosas meditações que sacodem o ânimo em desalentos ante a dura e pungente realidade de que já não temos perto de nós aqueles que um dia compuseram nossa diuturna geografia sentimental.

Assistiu razão ao grande poeta Mario Quintana quando indagou: ”

– Por que será que a gente vive chorando os amigos mortos e não aguenta os que continuam vivos ?.

E Humboldt arremata:

– A morte não é um período que termina uma existência, mas um prelúdio somente, uma passagem de uma forma para outra do ser infinito.

Ao abrirmos os nossos mofados baús de ossos, somos assediados por um corolário de crenças, sentimentos, superstições, algo de transcendental e instigante. E tudo isso há de ser contrastado por muita reação antes de completar-se o nosso desenlace material. E porque não dizer que persistem referenciais em relíquias deixadas, como testemunhas mudas, intensamente evocantes de seus antigos donos.

E nessa garimpagem dos nossos baús de ossos segue-se aquele silêncio comprimido, aquela pausa de toda a co nversação espiritual em que os pensamentos são tantos que se atropelam e não acham saída no nostálgico labirinto de saudades. Nesse diapasão, percebemos que nossa voz espiritual tem o dom da súplica, amortecendo a dor da alma – filha de um remorso salutar.

É como se fora aquela plácida sensação de mais profundo sentimento. Não mais que de repente, abre-se o livro do passado, parando em uma página repleta de reticências, como a culpar-me por omissões sentimentais de atos e palavras. Era preciso ter existido o desejo de fazer, e não apenas ser.

O lamentoso ranger das dobradiças dos nossos baús de ossos instiga-nos o espírito como todas as coisas que nos fazem pensar muito. E o inconfundível eco morto da solidão responde tristemente às minhas perguntas. É aí onde a cronica se cala, como efeito da inexaurível piedade de Deus, que acode minha alma, antes que ela se perca nos desvarios da mulher amada.

Nesse cotejo, há cenas indescritíveis, circunstâncias e ações pretéritas que me remetem ao sentido das coisas e da vida. A verdade é que o mistério oculto mostra um outro lado da utilização das sombras.

E o que somos? Nada mais do que espectros humanos. Somos sombras que sofrem.

Diante todo esse inclemente materialismo dialético, só nos resta abandonar o cadáver de nossas desilusões, deixando-o entregue às tormentosas lufadas de ar do imponderável.

Já é tempo para que meus pensamentos e sentimentos transponham os umbrais do tempo e do espaço, onde eu possa rever quase materialmente os meus entes queridos que já atenderam ao chamado do Supremo Arquiteto do Universo. Na esperança de um dia viver a mansuetude da mansão celestial, vou seguindo vida afora.

Nunca mais esquecerei de abrir o meu baú de ossos, resgatando, assim, em minhas perenes lembranças, o sentimento indizível de solidão, saudade, angústia e bem-querer.

Marcos Pinto é advogado e escritor

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domingo - 11/01/2015 - 06:36h

A porteira da saudade

Por Marcos Pinto

”Garimpar o insondável chão do tempo é fazer ranger a porteira da saudade” (Marcos Pinto).

Diviso ao longe, lá no imenso latifúndio da recordação, um lance de cerca feita com varas trançadas, parecendo representar as paralelas dos meus desafios cotidianos. Interrompendo o devaneio perscrutador, vejo que há um hiato entre o estirão da cerca, se perdendo na imensidão dos sonhos.

Nesse espaço lacunoso, a interruptiva presença da velha e surrada porteira da saudade. Deteriorada pelas intempéries, é uma testemunha muda que guarda toda uma uma história de pessoas que por ela passaram em suas afanosas fainas diárias. Há muito transfiguraram-se em sombras que sofrem, vagando pela dimensão espiritual, numa solene procissão dos mortos.

Percebo, amargurado, que a esquina do tempo já espreita o cadinho da idade mais que cinquentenária, revelando assédios de esquecimento em lances fortuitos.

Do mais humilde sítio à mais suntuosa fazenda, há sempre uma porteira demarcando presença em nosso território sentimental.

No sítio da humildade franciscana, vislumbro a rústica porteirinha feita com paus tortos, mal acabados, oriundos da mata nativa, geralmente da árvore denominada de ”Pau Branco”, ou até mesmo de pés de jurema, amarrados uns aos outros por uma espécie de corda sertaneja de nome imbira.

Na portentosa fazenda, uma porteira diferente, bem trabalhada, parafusada, larga, às vezes até pintada. Assim é a nossa vida. Uns vivendo como se fossem a porteirinha humilde, rangendo precisão em cadenciada sonoridade de tristeza. Como num lance de mágica, aguça-me a sintonia do ranger da porteirinha sincronizada com o cantar tristonho do sertanejo, montado em seu magro jumentinho.

À exemplo do seu dono, dá-se até para contar as salientes costelas, se revelando ameaçadoras de romperem o surrado couro. Outros vivendo à tripa forra, deleitando -se em faustosa opulência. Existências similares às porteiras da vida – viventes de um drama cheio de lances e imprevistos.

O tempo voraz e célere consome a firmeza e integridade da porteirinha e da imponente porteira da rica fazenda. Morrem-lhes os donos, e os sucessores já não dispensam-lhes a mesma manutenção.

Não há como negarmos que as porteiras das terras dos nossos pais e avós até hoje exercem um grande fascínio sobre nosso contexto existencial, dando um colorido especial às nossas contagiantes recordações. Nessas alongadas vigílias da insônia, elas surgem cheias de mistérios, como um milagre tão esperado.

Na retentiva da noite, eis que a porteira da saudade revela-se abrindo sozinha, rangendo estranha sonoridade em forma de prece. Descortinam-se entranhas de abismos insondáveis. Aqui e acolá um suspiro imperativo e silencioso tremulando no peito, como se estivesse travando uma guerra silenciosa com a inexpugnável certeza de que a morte impõe-se como o caminho mais certo, a importunar os horizontes de nossas atitudes.

De sorte que a certeza fora lapidada por inesgotável fé na ressurreição da carne e na vida eterna. A porteira da saudade resume tudo isso: o fim de um começo que nunca deixará de ter uma finalidade.

O ter e o ser, o materialismo doentio e o espiritualismo cheio de transcendentalidade. Faço minha a emblemática frase do meu culto primo Antonio Noronha Pinto (Tom):

– Se a solidão usasse um vestido, certamente lembraria um sudário.

Marcos Pinto é advogado e escritor

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domingo - 14/12/2014 - 08:41h

Nunca fale com estranhos

Por Honório de Medeiros

Ela falou: “minha mãe me disse que eu nunca falasse com estranhos”.

Ele riu. Não se desculpou. Não podia deixar de rir.

Não falar com estranhos, ou desconhecidos?

Podia ser um desconhecido estranho, mas também podia ser um conhecido estranho. Não importava.

“É verdade que você não me conhece, mas não sou estranho a você. Somos, ambos, seres humanos, vivemos no mesmo País, temos amigos em comum, partilhamos alguns interesses que nem vale a pena elencar, de tão óbvios. Temos afinidades idênticas, inclusive: desejar o melhor para a humanidade que integramos, o fim das guerras, da fome, das doenças, nutrir esperanças em relação ao futuro…”

Em mim pulsa a mesma centelha de vida que pulsa em você. Temos tristezas, alegrias, decepções, como qualquer um…

Como posso lhe ser estranho? Desconhecido, talvez. Pois bem, é acerca disso que quero lhe falar.

Diga a sua mãe que não é possível não falar com desconhecidos. Antes que você conheça alguém, esse alguém lhe é desconhecido. Se você não fala com desconhecidos, como não há de ser uma ilha?

Sua maior amiga, por exemplo: era uma desconhecida até que você rompesse a recomendação de sua mãe e, em rompendo, começasse a construir esse vínculo afetivo que lhe é, hoje, tão caro.

Imagine, por instantes, você vivendo em um mundo em que não lhe fosse permitido falar com desconhecidos.

Como seria isso?

Como seria em supermercados, restaurantes, cinemas, shoppings…

Falemos, então, um com o outro, mesmo que seja para você me dizer que não gosta de mim.

Isso eu posso entender. E perdoar.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Estado do RN

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domingo - 07/12/2014 - 09:26h

Mundo pequeno, pequeno mundo…

Por Honório de Medeiros

No cruzamento da Avenida Afrânio de Melo Franco com a Avenida General San Martín, pleno Leblon, eu tinha deixado as duas Bárbaras e Joseane na beira-mar para irem ver o pôr do sol no Arpoador, eis que escuto alguém me chamando.

Surpreso me deparo com Carlos Eduardo Gomes, gentil companheiro de jornadas do Cariri Cangaço. Desde 2011 não nos víamos.

Colocamos a conversa em dia. Me confessou que daqui a uns seis anos, para mais ou menos, vai se mudar para Poty do Alferes, encantadora cidadezinha serrana próxima de Vassouras onde acarinha um plantio de madeiras nobres. Voltará nos finais-de-semana para o Rio, posto que ninguém larga esta maravilha de uma vez por todas.

Colocou-se à minha disposição, quando soube que eu estava de férias e, antes de partir, deu-me alguns bons conselhos acerca do que fazer enquanto por aqui estiver.

Abração, Carlos.

Muito obrigado.

Depois de deixá-lo tomei o rumo do Shopping Leblon, na busca de um livro de Murakami, “Kafka à Beira-Mar”.

E na livraria encontrei uma brilhante ex-aluna minha, Mariana Brandão, neta de uma ex-professora minha, advogada tributarista, e sua mãe, e logo encetamos uma agradabilíssima conversa acerca das coisas da vida, Direito inclusive, mas principalmente Filosofia.

Mariana é um nome a se guardar com respeito, para o futuro, nas letras jurídicas.

Muito bom reencontrá-la, Mariana.

Fica marcado nosso café em Natal, quando for por lá.

Mundo pequeno, pequeno mundo…

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e Estado do RN

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quarta-feira - 09/07/2014 - 07:59h
Crônica de uma nova era

Caminhão VW tromba com Gurgel e acorda uma nação inteira

Por Carlos Santos

Gente, vamos trabalhar, produzir. Ano Novo, vida nova. Finalmente começou 2014.

Aquilo ontem, foi como se um caminhão VW tivesse trombado com um utilitário brasileiro da extinta montadora automotiva Gurgel. Vitória da Alemanha foi justa, mas o placar de 7 x 1, não. A gente percebe que poderia ser mais.

Claro que é o tipo de escore improvável. Porém um resultado normal por tudo o que não somos ou deixamos de ser.

Nem o alemão mais otimista ou vidente poderia imaginar tanto. “O imponderável de almeida”, como diria o cronista Nelson Rodrigues, entrou em campo e deu uma forcinha ao melhor.

O blindado frio, disciplinado, técnico e vigoroso como um “punzer” germânico abalroou o mirrado futebol brasileiro, a arrogância de Felipão e a miopia própria de nossa paixão.

Como na música célebre da banda The Doors, “The end” (O fim),  “esse é o fim”. Espero que seja o fim da era dos técnicos fanfarrões, estrelas, autossuficientes e que vendem gato por lebre.

Ao mesmo tempo, que seja a oportunidade para se recomeçar o futebol nativo de onde paramos, quando ele dava certo porque éramos vibrantes, alegres, voltados para o ataque e a cópia de nós mesmos, Brasil multifacetado, miscigenado, “Brasileirinho”.

(THE END, O FIM) …Este é o fim
Meu único amigo. O fim
De nossos planos elaborados, o fim
De tudo que está de pé…

Saibamos reconhecer que não somos os melhores, que futebol é esporte coletivo e não “Samba de uma nota só”.

A tragédia é ponto de partida para fazermos diferente e melhor ou repetirmos pecados. Façamos a escolha coerente.

O futebol “é a metáfora da vida”. Mas no fundo é só um esporte.

Aplaudamos os vencedores. Eles merecem. E como nação, possuem 102 prêmios Nobel, enquanto nós não temos um sequer. Temos muito a aprender com eles.

Claro que o ex-jogador de futebol e dublê de comentarista, Ronaldo Fenômeno, poderia sacar uma de suas célebres frases e justificar: “Não se faz copa com hospitais (ou cultura, acrescento) e sim com estádios”.

E não se faz um campeão sem futebol, Fenômeno. “Entende?” – me auxiliaria o Rei Pelé, com um de seus cacoetes verbais.

“We are the champinos” (Nós somos os campeões), hino dos vitoriosos, dos ingleses da banda “Queen”, não será nosso segundo hino. Fiquemos com o “Pátria amada, Brasil” de corpo, alma, todos os dias, não apenas a cada quatro anos.

Nos sites, portais, jornais impressos, rádios e noticiosos televisivos caberia esta manchete: “Caminhão Volkswagen tromba com Gurgel e acorda uma nação inteira.”

Assim espero.

Vamos ao trabalho.

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domingo - 06/07/2014 - 09:34h

Peladas

Por Armando Nogueira

Esta pracinha sem aquela pelada virou uma chatice completa: agora, é uma babá que passa, empurrando, sem afeto, um bebê de carrinho, é um par de velhos que troca silêncios num banco sem encosto.

E, no entanto, ainda ontem, isso aqui fervia de menino, de sol, de bola, de sonho: “eu jogo na linha! eu sou o Lula!; no gol, eu não jogo, tô com o joelho ralado de ontem; vou ficar aqui atrás: entrou aqui, já sabe.”

Uma gritaria, todo mundo se escalando, todo mundo querendo tirar o selo da bola, bendito fruto de uma suada vaquinha. Oito de cada lado e, para não confundir, um time fica como está; o outro joga sem camisa.

Já reparei uma coisa: bola de futebol, seja nova, seja velha, é um ser muito compreensivo que dança conforme a música: se está no Maracanã, numa decisão de título, ela rola e quiçá com um ar dramático, mantendo sempre a mesma pose adulta, esteja nos pés de Gérson ou nas mãos de um gandula.

Em compensação, num racha de menino ninguém é mais sapeca: ela corre para cá, corre para lá, quiçá no meio-fio, pára de estalo no canteiro, lambe a canela de um, deixa-se espremer entre mil canelas, depois escapa, rolando, doida, pela calçada. Parece um bichinho.

Aqui, nessa pelada inocente é que se pode sentir a pureza de uma bola. Afinal, trata-se de uma bola profissional, uma número cinco, cheia de carimbos ilustres: “Copa Rio-Oficial”, “FIFA – Especial.”

Uma bola assim, toda de branco, coberta de condecorações por todos os gomos (gomos hexagonais!) jamais seria barrada em recepção do Itamarati.

No entanto, aí está ela, correndo para cima e para baixo, na maior farra do mundo, disputada, maltratada até, pois, de quando em quando, acertam-lhe um bico, ela sai zarolha, vendo estrelas, coitadinha. Racha é assim mesmo: tem bico, mas tem também sem-pulo de craque como aquele do Tona, que empatou a pelada e que lava a alma de qualquer bola. Uma pintura.

Nova saída. Entra na praça batendo palmas como quem enxota galinha no quintal. É um velho com cara de guarda-livros que, sem pedir licença, invade o universo infantil de uma pelada e vai expulsando todo mundo. Num instante, o campo está vazio, o mundo está vazio. Não deu tempo nem de desfazer as traves feitas de camisas.

O espantalho-gente pega a bola, viva, ainda, tira do bolso um canivete e dá-lhe a primeira espetada. No segundo golpe, a bola começa a sangrar. Em cada gomo o coração de uma criança.

Armando Nogueira foi jornalista e escritor, cronista e comentarista esportivo

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Categoria(s): Crônica / Grandes Autores e Pensadores
domingo - 01/06/2014 - 06:02h

Antes que tudo lá fora seja sol

Por Carlos Santos

Você nem percebeu antes: meus olhos fitavam-na há tempos. Ô! Nem lhe conto.

Viam cada detalhe daquele rosto delicado, branquinho, quase encoberto pelo grosso lençol.

Cabelos desdenhados faziam véu sobre sua fronte; uma respiração quase inaudível dava sinal de vida interior. De repente…cílios e pálpebras fazem movimento contínuo e sincronizado, num abrir e fechar lento. Hesitante.

Como “cortinas” que se elevam, eles deixam à mostra o brilho do seu olhar, que espelham o meu. Sob o traçado de lábios sinuosos e semifechados, você sorrir sem jeito. Parece incomodada.

Descubro a luz num quarto que teima em não amanhecer, antes que tudo lá fora seja sol.

Fecham-se as ‘cortinas’ outra vez. Ao que tudo indica, sem direito a “bis”. Mesmo que eu pedisse em silêncio, não seria igual.

Segundos depois, um leve olhar se forma de novo. Agora, mais cauteloso e de viés, como a perscrutar se ainda estou ali à espreita e de modo tão impertinente.

Assumo a felicidade contemplativa, aquela que vê tudo com a alma. Posso até virar estátua de sal, mas não largo a tentação de espiar o que me cativa.

Seu corpo rola para o outro lado num esforço sobre-humano, sem que quase nada saia desse casulo de algodão.

“Huumm!” A preguiça se enrosca na própria manha de menina que quer colo. Só isso.

Em posição fetal, se defende do mundo, do meu olhar e dos meus instintos. Mas não se queixa dos meus braços.

Faz do meu pulso extensão do seu, apertando-o firmemente com a mão presa ao próprio peito.

Está na hora de irmos embora.

– Vamos!

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 06/04/2014 - 03:22h

Ode à bunda dura

Por Ailin Aleixo

Tenho horror a mulher perfeitinha. Sabe aquele tipo que faz escova toda manhã, tá sempre na moda e é tão sorridente que parece garota-propaganda de processo de clareamento dentário? E, só pra piorar, tem a bunda dura? Pois então, mulheres assim são um um porre. Pior: são brochantes.

Sou louca? Despeitada? Então tá, mas posso provar a minha tese. Quer ver?

* Escova toda manhã. A fulana acorda as seis da matina pra deixar o cabelo parecido com o da Patrícia de Sabrit. Perde momentos imprescindíveis de rolamento na cama, encoxamento do namorado, pegação, pra encaixar-se no padrão “Alisabel é que é legal”. Burra.

* Na moda: estilo pessoal, pra ela, é o que aparece nos anúncios da Elle do mês. Você vê-la de shortinho, camiseta surrada e cabelo preso? JAMAIS! O que indica uma coisa: ela não vai querer ficar “desarrumada” nem enquanto tiver transando. É capaz até de fazer pose em busca do melhor ângulo perante o espelho do quarto. Credo.

* Sorriso incessante: ela mora na vila do Smurfs? Tá fazendo treinamento pra Hebe? Sou antipática com orgulho-só sorrio para quem provoca meu sorriso. Não gostou? Problema seu. Isso se chama autenticidade, meu caro. Coisa que, pra perfeitinha, não existe. Aliás, ela nem sabe o que a palavra significa, coitada.

* Bunda dura. As muito gostosas são muito chatas. Pra manter aquele corpão, comem alface e tomam isotônico (isso quando não enfiam o dedo na garganta pra se livrar das 2 calorias que ingeriram), portanto não vão acompanhá-lo nos pasteizinhos nem na porção de bolinho de arroz do sabadão.

Bebida dá barriga e ela tem HORROR a qualquer carninha saindo da calça de cintura tão baixa que o cós acaba onde começa a pornografia: nada de tomar um bom vinho com você. Cerveja? Esquece! Melhor convidar o Jorjão.

Pois é, ela é um tesão. Mas não curte sexo porque desglamouriza, se veste feito um manequim de vitrine do Iguatemi, acha inadmissível você apalpar a bunda dela em público, nunca toma porre e só sabe contar até quinze, que é até onde chega a seqüência de bíceps e tríceps. Que beleza de mulher. E você reparou naquela bunda? Meu deus…

Legal mesmo é mulher de verdade. E daí se ela tem celulite? O senso de humor compensa. Pode ter uns quilos a mais, mas é uma ótima companheira de bebedeira. Pode até ser meio mal educada quando você larga a cueca no meio da sala, mas adora sexo.

Porque celulite, gordurinhas e desorganização têm solução (e, às vezes, nem chegam a ser um problema). Mas ainda não criaram um remédio pra futilidade. Nem pra dela, nem pra sua.

Ailin Aleixo é jornalista e publicitária, com atuação em periódicos como revistas Vip, Veja e Época

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Categoria(s): Crônica
domingo - 30/03/2014 - 08:12h

Ser seu amigo

Por Vinícius de Moraes

Se eu morrer antes de você, faça-me um favor. Chore o quanto quiser, mas não brigue com Deus por Ele haver me levado. Se não quiser chorar, não chore. Se não conseguir chorar, não se preocupe. Se tiver vontade de rir, ria.

Se alguns amigos contarem algum fato a meu respeito, ouça e acrescente sua versão. Se me elogiarem demais, corrija o exagero. Se me criticarem demais, defenda-me. Se me quiserem fazer um santo, só porque morri, mostre que eu tinha um pouco de santo, mas estava longe de ser o santo que me pintam.

Se me quiserem fazer um demônio, mostre que eu talvez tivesse um pouco de demônio, mas que a vida inteira eu tentei ser bom e amigo. Se falarem mais de mim do que de Jesus Cristo, chame a atenção deles.

Se sentir saudade e quiser falar comigo, fale com Jesus e eu ouvirei. Espero estar com Ele o suficiente para continuar sendo útil a você, lá onde estiver.

E se tiver vontade de escrever alguma coisa sobre mim, diga apenas uma frase : ‘Foi meu amigo, acreditou em mim e me quis mais perto de Deus !’ Aí, então derrame uma lágrima.

Eu não estarei presente para enxuga-la, mas não faz mal. Outros amigos farão isso no meu lugar. E, vendo-me bem substituído, irei cuidar de minha nova tarefa no céu. Mas, de vez em quando, dê uma espiadinha na direção de Deus. Você não me verá, mas eu ficaria muito feliz vendo você olhar para Ele.

E, quando chegar a sua vez de ir para o Pai, aí, sem nenhum véu a separar a gente, vamos viver, em Deus, a amizade que aqui nos preparou para Ele.

Você acredita nessas coisas? Sim? Então ore para que nós dois vivamos como quem sabe que vai morrer um dia, e que morramos como quem soube viver direito. Amizade só faz sentido se traz o céu para mais perto da gente, e se inaugura aqui mesmo o seu começo.

Eu não vou estranhar o céu. Sabe por quê? Porque ser seu amigo já é um pedaço dele!

Vinícius de Moraes (1913-1980) foi compositor, poeta, jornalista, diplomata, cronista, cantor.

* Clique na seta do boxe constante desta postagem, para ouvir essa crônica-poesia sendo declamada por Rolando Boldrin.

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Categoria(s): Crônica / Poesia
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domingo - 23/02/2014 - 07:41h

A maioria faz qualquer coisa por dinheiro

Por Danuza Leão

Como é incrível um restaurante de luxo; se for de alto luxo e em Paris, mais incrível ainda. Os garçons volteiam por entre os clientes e todos os desejos são realizados antes mesmo de sabermos que eles existem. Nesses ambientes, tem de tudo e não se espera por nada.

É uísque? Ok. De que marca? Copo curto ou longo? Gelo? E a água, é natural ou com gás? Pense: se seu amigo mais íntimo for visitar você, já percebeu quantas providências terá que tomar até que estejam os dois sentados conversando, botando a vida em dia?

Quando, enfim, conseguirem, ainda precisará limpar cinzeiros – isso sem falar no capítulo salgadinho e afins. Aí, realmente, é demais e, por todas essas razões, vamos voltar correndo aos restaurantes. Aliás, a um determinado restaurante, e em Paris, claro.

Foi assim: fazia frio lá fora, mas bastava entrar para nos sentirmos no paraíso. Em cima do balcão do bar, havia um imenso jarro com as flores mais lindas do mundo, de um tipo ao qual não estamos habituados, por não ter nada de tropical. O maître nos levou à mesa, e a sensação de felicidade só fez aumentar.

Depois de servidos os drinques, olhei em volta para reconhecer o terreno. Todos pareciam felizes, o que é sempre bom, mas me detive em uma mesa com dois casais. Não eram muito jovens nem muito bonitos, e um deles prendeu meu olhar.

Ele tinha entre 50 e 60 e não era nenhum galã. Com uma barba moderna, estilo malfeita, dava atenção especial à sua companheira. Ela não era inacreditavelmente bonita e teria o quê? Quarenta, 45? Bem, com as mulheres nunca se sabe. É certo que ele não parecia exatamente apaixonado, mas, de alguma maneira, dava para sentir que todas as outras não tinham a menor importância para ele; não naquela noite.

Ele ouvia o que ela dizia – ou melhor, escutava, o que é bastante diferente –, e com aquela atenção que raramente os homens dão. E tinha mais: de vez em quando, passava a mão no ombro dela com um ar de posse, uma firmeza daquelas que as mulheres adoram.

Ele não era maravilhoso, mas havia uma certa decisão no seu rosto, na sua expressão e, sobretudo, nas suas mãos, que não só eram lindas como também sábias.

Para entender melhor o clima: as toalhas eram rosa e havia velas nas mesas, o que fazia com que as mulheres parecessem deusas, e os homens… Nem vamos falar disso! Todos ali eram bonitos e glamourosos, assim como aparentavam não ter um só problema na vida e ser muito felizes. E achei, com certo pesar, que não pertencia àquele mundo.

Depois do ritual de praxe – champanhe, primeiro prato, segundo prato e o suflê da sobremesa, sabiamente encomendado no início da refeição –, veio o café. E, por uma dessas coincidências que ocorrem, as duas mesas (a deles e a nossa) se levantaram ao mesmo tempo e todos nos encontramos na calçada. Foi incrível.

O tal casal, longe das velas, das flores e da atmosfera, era apenas banal. Ele, o charmoso, era feio e deselegante e ela… Bem, um nada.

A barba dele, tão sedutora, não passava de barba malfeita, e aquela mão, tão carinhosa, estava prosaicamente tentando chamar um táxi. Ele foi andando para procurar outro carro, e ela ia atrás, se equilibrando no salto.

Nessa hora, entendi por que a maioria das pessoas faz quase qualquer coisa por dinheiro: para viver em lugares luxuosos, achando que a vida é sempre bela e todos são lindos e felizes.

A conta foi alta, mas valeu. Afinal, por duas horas de ilusão, se paga qualquer preço.

Danuza Leão é escritora e cronista

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Categoria(s): Crônica
domingo - 23/02/2014 - 04:06h

Ponto, ao encontro

Por Caju Oliveira

Malas que carregam sonhos e uma confiança que te faz querer ganhar o mundo com as mãos. Ponto de encontros e despedidas.

Pessoas que se (re)conhecem entre tantas histórias, estórias e memórias, nos mantendo firmes, sorr(indo).

Um fluxo constante de chegada e partida.

Uma trama de pessoas que se encontram, se entrelaçam e misturadas ganham uma outra direção: a entrada do encontro.

No caminho, desrespeitam as placas de aviso, ultrapassam os limites e desconfiam dos atalhos. Voltam atrás e andam em círculos.

Perdem os dias, o rumo, a paciência e se exaurem em tentativas pra encontrar um quase endereço, mesmo que desconhecido, um provável ponto de chegada: o sonho.

Eu jamais chegaria onde cheguei se só andasse em linha reta. Eu moro no caminho e possuo uma ânsia pelo equilíbrio entre o viver e o sonhar.

Agora, eu só preciso escrever mais um ponto, pra que as despedidas sejam apenas o ponto de partida.

Mando boas notícias.

Caju Oliveira é acadêmico de Comunicação Social e produtor cultural

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  • Art&C - PMM - Sal & Luz - Julho de 2025
sexta-feira - 21/02/2014 - 12:04h
Crônica

Saudade da Mossoró do passado…

Saudade da Mossoró do passado. Lá, bandido mais perigoso era “Luiz da Véia”. Descia o Alto do Louvor para roubar toca-fitas e apanhava da mulher.

Saudade da Mossoró do passado. Lá, bandidos presos no final de semana tinham cabeça raspada e eram fotografados usando cuecas de “copinho”, em poses patéticas na primeira página do jornal.

Saudade da Mossoró do passado. Lá, a droga mais perigosa era maconha. O cara ficava “lombrado”, batia carteira de algum descuidado e na sela pedia “paz e amor” ao delegado.

Saudade da Mossoró do passado. Lá, os escassos homicídios saíam de mesas de bebedeira, “cornagem” ou algum raro acerto de contas entre inimigos.

Saudade da Mossoró do passado. Lá, “crime hediondo” foi um homem “comer” sexualmente uma galinha (viva) e ser fotografado com a penosa debaixo do braço, como punição exemplar.

Saudade da Mossoró do passado. Lá o policial Netão fazia operação sozinho e trazia preso – um, dois ou mais malandros – sem algemas, dirigindo seu buggy.

Saudade da Mossoró do passado. Lá, o delegado Clodoaldo dispersava multidão de meninos que jogava bola na rua, rasgando à faca a pelota usada no “delito”.

Saudade da Mossoró do passado. Lá, o soldado Catôta mandava meninada escolher: “Pra dentro ou pra fora”. Só não aceitava que ficassem em cima do muro, em jogos oficiais de futebol dos times locais.

Saudade da Mossoró do passado. Lá, crime sexual mais comum era o doido “César do Fusquinha” comendo qualquer Fusca que encontrasse estacionado, com ‘pirrola’ para fora, deitado sobre o capô.

Saudade da Mossoró do passado. Lá, a quadrilha mais conhecida era a junina ou os cordões do pastoril, reunindo amigos e famílias em festas.

Saudade da Mossoró do passado. Lá, menor infrator éramos nós, correndo para furtar pão “d´água” quentinho, do cesto de palha coberto com um pano, na garupa da bicicleta do vendedor ambulante.

Saudade da Mossoró do passado. Lá, mascarado era do bem e nos encantava na TV preto e branco, com o nome de Zorro ou outro herói vespertino.

Saudade da Mossoró do passado. Lá, ‘assalto’ era costume próprio do carnaval, com grupos de foliões “invadindo” alegremente casas de amigos que previamente se preparavam à chegada do cortejo.

Quero de volta minha Mossoró do passado. Acuada, intimidada, vilipendiada, furtada, roubada, violentada e com medo de sentar à calçada.

Quero de volta minha Mossoró com a prosa na pracinha, flerte na Festa de Santa Luzia, do futebol na rua, da janela aberta e da mercearia de “Seu Lopim” com seus doces e ‘confeitos’.

Será que é muito querer minha Mossoró de volta? Será que vamos continuar aceitando que ir e vir seja uma aventura, em vez de simples direito?

Saudade da Mossoró do passado.

Não quero muito. Quero de volta a minha Mossoró do passado.

 

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Categoria(s): Crônica
domingo - 02/02/2014 - 08:11h

A força de um capricho do tempo e do destino…

Por José Dario de Aguiar Filho

Há vinte anos, em 12 de janeiro de 1994, fui agraciado com a aprovação em concurso de Juiz do Trabalho do Tribunal Regional desta unidade federada.

Empossado no dia 25 daquele mês, vim a ser designado juntamente com outro colega então também recém-empossado, o magistrado Zéu Palmeira Sobrinho, para o exercício da judicatura nesta cidade (Mossoró).

Na manhã do dia 31 aqui chegamos e não conhecendo nada nesta cidade, nos hospedamos logo na praça do mercado, no Hotel ”Scalla”.

Para mim, Mossoró não se tratava de uma terra desconhecida, pois, antes mesmo de balbuciar as primeiras palavras, ouvia de papai e mamãe que se tratava de uma cidade próspera, produtora de quase todo o sal do pais, onde nasceu o vizinho da rua Samuel de Farias, no bairro da Casa Forte, na cidade do Recife,  e estimado amigo, seu Antonio da Costa Gomes, Mossoroense da gema, detentor uma grande casa de comércio nesta cidade e em Natal, conhecida por A. C. GOMES.

Por gostar de acompanhar a política, meus pais como meus avós paterno e materno sempre falavam da tragédia sem par representada pelo acidente de avião que vitimou o então governador Dix Sept Rosado Maia e seu secretariado, ocorrida em Sergipe, lá nos idos de 1951. Coisas de minha memória !…

Ao aqui chegar (janeiro de 1994), Mossoró detinha apenas duas varas, as duas mais trabalhosas do estado, já que a cada ano ingressavam em torno de três mil ações, em cada uma das unidades judiciárias.

Tempos bons, o da chegada à Mossoró (RN), em um batismo de fogo que embora fosse penoso, mostrava-se gratificante pelo tão sonhado exercício da judicatura.

Aqui permaneci continuamente por cinco meses e meio e durante todo ano de 1994, auxiliando o colega Edwar Abreu Gonçalves, e até o final do mês de janeiro de 1995, praticamente todo dia de sexta-feira aqui comparecia, para realizar as audiências de suspeições dos então juízes titulares das duas varas, Edvar (1ª VT) e Ricardo Luís Espíndola Borges (2ª VT).

Por uns seis anos não mais vim a esta calorosa terra, retornando por cerca de três semanas em meados de agosto a setembro do ano de 2000.

Depois, em janeiro à fevereiro de 2001, por um mês e meio laborei perante a 2ª Vara de Mossoró (RN).

Finalmente, em 27 de março de 2001, foi exarada a minha nomeação para a titularidade da 2ª Vara desta cidade, sendo empossado na presidência do Tribunal em Natal, no final da tarde do dia 28 e já na manhã do dia 29  (quinta-feira) cheguei em Mossoró, logo cedo, através de avião.

Na segunda-feira, dia 02, deu-se o primeiro dia de audiências.

O tempo foi se passando, e em meados de 2008 surgiu a vacância da Vara de Caicó (RN), da qual declinei de pedir remoção, pois se encontrava em curso o acordo da MAÍSA, na fase ainda de venda de bens para pagamento de parte da dívida dos empregados daquela empresa.

Não poderia ser diferente, pois como um capitão de navio, o mesmo não desembarca da nau até que o último dos passageiros e tripulantes  tenham sido salvos.

O tempo foi se passando e hoje por uma incrível coincidência é dia 31 de janeiro de 2014 (um dia de sexta-feira) ou seja, vinte anos depois do primeiro dia em que comecei a trabalhar como juiz (dia 31 de janeiro de 1994 – segunda-feira), , dos quais catorze dedicados a esta cidade e região.

Foram anos de trabalho árduo e até estressante, mas gratificante por resultados que restabelece a harmonia e paz social, além de distribuir justiça.

Confesso que irei sentir saudades do convívio diário, o eterno bom humor de Marcos Artur e Melo Neto, das brigas entre alguns patronos, que como sempre dizia brincando – “É amor demais! “,  das audiências demoradas mas, esclarecedoras do direito, da descoberta a cada dia dos novos talentos que despontam na advocacia desta terra.

Afasto-me do edificante labor do dia a dia, para poder melhor conviver com minha mulher, meus filhos e a última grande dádiva de Deus – o meu primeiro neto, bicho macho cheio de moral para o avô e credor de todo amor do mundo.

Assim, deixo o dia a dia de Mossoró, levando a experiência da verdadeira economia do Rio Grande do Norte, representada pela produção de frutas, de camarão, de sal, de petróleo, do cimento e de outras atividades, como legado para os dias vindouros, quem sabe, para novamente melhor poder servir à sociedade de Mossoró e dos municípios de seu entorno, com Mossoró sempre bem viva dentro de mim !

Houve dificuldades ! Houve contratempo!

Por fim agradeço a todos que durante esse longos anos aqui trabalharam – advogados, prepostos e a todo o corpo funcional da Justiça do Trabalho em Mossoró, não por terem convivido com algumas de minhas qualidades, mas, sobretudo, pela tolerância com os meus defeitos.

Encerro esses palavras para dizer ter sido um privilégio ter podido servir ao povo e a população de uma cidade de destino cosmopolita, já com ar de metrópole, que surgiu a partir da fazenda de Santa Luzia do rio Mossoró.

Mas tenho que me curvar ao que o tempo revelou, o de que a minha permanência em Mossoró perdurou até o dia em que foi permitido, não podendo violar e nem afrontar A FORÇA DE UM CAPRICHO DO TEMPO E DO DESTINO….

José Dario de Aguiar Filho é juiz da Vara do Trabalho em Mossoró

 

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 05/01/2014 - 03:48h

A nenhuma chamarás Aldebarã

Por Rubem Braga

Eu vinha de não sei que tristes sonhos, nefastos pesadelos. Despertei, ansiado, no meio da noite, e olhando a escura parede senti que as imagens torvas que me povoavam os olhos ainda tontos ali vagamente se moviam. Voltei-me, então, sobre o meu flanco direito; a janela estava aberta para a noite. Era uma noite sem lua, que ciciava em árvores e murmurava em águas humildes; e uma grande estrela brilhava.

Haveria outras, esparsas e pequenas, mas aquela era tão grande e cintilava com uma estranha palpitação; era tão distante, mas brilhava tão perto e tão para mim como se fosse uma lanterna que mão amiga houvesse pendurado em minha janela para me dar alento no fundo da treva.

Eu vagara tanto pelo mundo que, ao despertar, não sabia em que leito, casa, país e tempo; e mesmo tinha de recompor minha idéia para lembrar se era feliz ou infeliz. Apenas senti que estava agora voltado para o norte, e do fundo de meu coração saudei a estrela com a palavra que me veio aos lábios: Aldebarã!

Lera essa palavra em velhos, cansados livros que falam de astros e mistérios do céu; mas somente agora percebia que era uma palavra mística, feita de muitas outras, querendo dizer, em antigas secretas línguas: a Nova Esperança, a Alegria Amiga, o Esquecimento das Mágoas, a Alegria da Noite.

Aldebarã, Aldebarã! – disse eu, com estranho ardor; e foi como se a sua palpitação se fizesse mais fremente e pura. Então uma voz suave me disse, e era como se a minha melancólica mãe ou, ainda mais distante, a minha irmã e madrinha me passasse a mão pelos cabelos.

“Descansa, dorme em paz, Aldebarã é tua amiga; e como soubeste dizer seu nome ela é para sempre tua amiga; dorme em paz, homem da noite solitária e cruel e dos fatigados, tristes pesadelos; dorme. E se amanhã, na tua inquieta fantasia, quiseres dar esse nome a algo que ames, podes dá-lo sem remorso à égua fidalga que no galope deixa que o luar lhe beije as negras crinas, ou à mais bela flor no pélago marinho; e até podes chamar Aldebarã a uma nuvem que se doira no momento em que o céu, para o ocidente, já toma a cor da triste violeta; mas promete que nunca darás esse nome, nunca, a nenhuma filha dos homens, por mais ansioso te faça a sua beleza peregrina”.

Eu disse apenas, humilde: “Prometo”.

E então pela primeira vez em muitos e muitos anos de longas noites, eu pude adormecer sorrindo, porque meu coração era puro como o de um menino.

Rubem Braga (1913-1990) era cronista

 

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terça-feira - 24/12/2013 - 09:13h
Crônica

Acreditar em Papai Noel

Por Lya Luft

Acreditei em Papai Noel por muitos anos. Menina do interior com a fantasia sempre a mil, ele fazia parte das minhas histórias encantadas. Até uns 7 anos de idade, eu também acreditava na cegonha e no coelho da Páscoa. Quando o pôr-do-sol tingia o céu, diziam-me que os anjinhos começavam a assar aqueles biscoitos de Natal que se faziam em todas as casas da pequena cidade. Trovoadas de começo de verão eram São Pedro arrastando os móveis para a fábrica de brinquedos ter mais espaço.

Na antevéspera de Natal, um recanto da sala era ocultado por lençóis estendidos, e ali atrás ocorria o milagre: na noite de 24, com o coração saltando de ansiedade, a gente escutava sininhos como que de prata: era hora. Levada pela mão da mãe ou do pai, eu entrava na sala, de onde os lençóis tinham sido removidos, e lá estava ela: a árvore de Natal, toda luz de velas, toda cor de esferas, e embaixo os presentes. Muitíssimo menos dos que se dão hoje às crianças, mas havia presentes.

Cantávamos canções natalinas, todo mundo se abraçava, depois abríamos os pacotes e comíamos a ceia. No dia seguinte, chegavam tios, primos, alguns amigos. Era só isso, sem alarde, mas com emoção. Guardei a sensação de que Natal é fraternidade, é reconciliação, é alegria de estar junto, é a chegada de pessoas queridas, é o tempo da família. Para quem não a tem, é o tempo dos amores especiais.

Não éramos particularmente religiosos, mas uma de minhas avós, luterana convicta, na manhã seguinte me levava à igrejinha, onde eu gostava de cantar. Algo de muito bom se comemorava nesse tempo, o nascimento de Cristo e a esperança dos povos. Nem tudo seria guerra e perseguição, pobreza, crueldade, injustiça.

As pessoas se queixam muito de que o Natal hoje é só comércio. Depende de quem o comemora. Se me endivido por todo o próximo ano comprando presentes além de minhas possibilidades, pois no fundo acho que assim compro amor, estou transformando o meu Natal num comércio, e dos ruins.

Se entro nesses dias frustrado porque não pude comprar (ou trocar) carro, televisão, geladeira, estou fazendo um péssimo negócio para minha alma. E, se não consigo nem pensar em receber aquela sogra sempre crítica, aquele cunhado cínico, aquele sobrinho malcriado, abraçar o detestado chefe ou sorrir para o colega que invejo, estou transformando meu Natal num momento amargo. Então, depende de nós.

Claro que há as tragédias, as fatalidades, doença, morte, desemprego, alguma maldade – essas não faltam por aí. Um avô meu morreu de doença muito dolorosa, na véspera de Natal. Foi a primeira vez que vi um adulto, minha avó, chorando. Há poucos anos, minha mãe morreu na antevéspera de Natal, depois de longuíssimo tempo de uma enfermidade maldita. Mas foram também ocasiões de conforto e consolo, abraço, amor e entendimento.

Na medida em que não se podem dar muitos e caríssimos presentes, talvez até se apreciem mais coisas delicadas como a ceia, o brinde, o carinho, os votos, a reunião da família, o contato emotivo com os amigos, mensagens pelo correio ou e-mail, música menos barulhenta e aroma de velas acesas. Mais que tudo isso, o perfume de uma esperança ainda que realista. A crise nas finanças pode incrementar a valorização dos afetos.

Se não pudermos viajar, curtiremos mais nossa casa. Se não há como trocar velhos objetos, vamos cuidar mais dos que temos. Se não podemos comprar o primeiro carro, vamos olhar melhor nossos companheiros no metrô. Vamos curtir mais nossos ganhos em afeto.

Não é preciso ser original para escrever sobre o Natal. A gente só quer que ele seja tranqüilo e gostoso, e que nos faça acreditar: em Papai Noel, em anjos, em famílias amorosas ou amigos fiéis, em governantes mais justos e líderes mais capazes, em um povo mais respeitado – em alguma coisa a gente acaba sempre acreditando. Porque, afinal de contas, é a ocasião de ser menos amargo, menos crítico, menos lamurioso e mais aberto ao sinal deste momento singular, que tanto falta no mundo: a possível alegria, e o necessário amor.

Lya Luft é escritora e tradutora

 

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Categoria(s): Crônica
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