• Cachaça San Valle - Topo - Nilton Baresi
domingo - 02/10/2022 - 11:00h

A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 16

Da literatura à pistolagem

Por Marcos Ferreira

Embora hoje tenha enveredado para o mundo da violência e do assassínio, pois agora as suas mãos estão sujas de sangue, e talvez tenha reagido de forma desproporcional às agressões que sofreu, Jaime tornou-se um criminoso, um fora da lei. Entretanto, apesar dos pesares, de algum modo ele ainda alimenta a sua veia de homem de letras. Não desistiu de ser (nem ele pode estimar como) um talento reconhecido. Não vislumbra, de forma animadora, sobretudo com os capangas de Rato Branco no seu encalço, um meio de concretizar, de cravar uma obra na posteridade mondronguense.

Pintura digital de Anderson Santos

Pintura digital de Anderson Santos

Estamos falando, obviamente, do seu caótico e nebuloso romance A Cidade que Nunca Leu um Livro, título este supostamente originário de uma simples frase que teria sido proferida ou mesmo publicada em jornal há mais de um século por um livreiro falido de Mondrongo, o senhor Leopoldo Ferreira de Andrade, isto tudo num enredo entrelaçado com episódios remotos quanto atuais: ou seja, de 1912 a 2000.

A história já começa nada menos que fantasmática. Pois, segundo o aclamado folclorista Cândido Besouro, em seu “clássico” O Propósito de Lampião em Mondrongo, conto este da carochinha do qual o leitor talvez se recorde, tem a ver com a narrativa de que o avô paterno do Rei do Cangaço supostamente abrira a primeira livraria de Mondrongo e teria falido menos de um ano depois por falta de clientes. Então, senhoras e senhores, magoado e ressentido, o avô de Virgulino teria publicado um artigo na Tribuna Mondronguense afirmando que os habitantes de Mondrongo jamais leram um livro, ele que era ex-ferroviário, descendente de espanhóis e natural do nordeste baiano.

O tal “clássico” de Cândido Besouro também dá conta de que, como citamos numa conversa com o sebista Antoniel da Silva, Lampião era um poeta e, nas horas vagas, escrevia versos para Maria Bonita. Besouro informa, portanto, que o empresário e poeta bissexto, amante desmedido da literatura, teria empenhado todas as suas economias nesse projeto fracassado e findou perdendo tudo quanto possuía, caiu na ruína, terminando como mendigo pelas ruas sujas e sem luz elétrica de Mondrongo.

— Uma esmola pelo amor de Deus!

O problema, convenhamos, é que agora o romance promíscuo de Jaime está numa encruzilhada ficcional ou mesmo confessional. Isto no tocante à morte de Paulo César dos Anjos e do rasto que tal homicídio imprimiu no caminho de Rato Branco e dos demais capangas que restam ao ex-jornalista e atual empresário do ramo de automóveis. Por outro lado, de maneira ainda menos plausível, A Cidade que Nunca Leu um Livro duvidosamente promete jogar no ventilador a lama da política local, como, sobretudo, as pseudodenúncias de corrupção envolvendo o senhor prefeito Wallace Batista e o vereador Leonardo Jardim, atual presidente da Câmara.

Jaime ficou sem poder lançar o seu bombástico livro, cheio de inúmeras acusações contrárias ao prefeito e contra o presidente da Câmara, simplesmente porque um araponga traiçoeiro, lacaio do próprio João Claudione, soube das ações da dupla e jogou toda a história no bico de Wallace Batista e de Leonardo Jardim. De repente, então, o escritor se viu em papos de aranha.

Raciocinando ingenuamente, levou em consideração a hipótese de tentar lançar A Cidade que Nunca leu um Livro fora de Mondrongo, preferencialmente em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Contudo, Jaime tem consciência de que tais editoras só costumam publicar celebridades, medalhões, best-sellers, e não autores e obras obscuros, rigorosamente anônimos. Mesmo assim, contrariando a regra, prepararia três cópias impressas de seu original e as enviaria para editores do Sudeste. Imprimiria tais cópias no escritório do advogado Luciano Aires.

Já com a grana bastante curta, pois João Claudione o havia depenado, e temendo a pancada que sofreria no guichê dos Correios, inicialmente ele fez quatro cópias em disquetes do seu original. Uma ele entregou a Reginaldo Marinho na calçada da Tribuna Mondronguense, com quem partilhava a esposa, Laura; entregou uma outra a Luciano Aires, que se espantou com a atitude de estar recebendo aquela espécie de bilhete de despedida; e a esposa ficou com a terceira.

O quarto disquete Jaime levou no final da tarde para imprimir na Copiadora Expressa, onde trabalhava o seu também amigo Raimundo Gilmar da Silva Ferreira, este já acostumado a imprimir e confeccionar as cópias encadernadas dos livros de Jaime, trabalhos inéditos remetidos a diversos concursos de que ele participava. Escritor polígrafo, comumente se aventurava nos gêneros poesia, contos, romances, crônicas e até ensaios literários.

Por um lado, segundo o raciocínio de Jaime, nem o prefeitinho Wallace Batista nem o pavonesco vereador Leonardo Jardim moveriam uma palha sequer contra ele. Não neste momento. Pois ambos têm o rabo preso, culpa no cartório, e o romance de Jaime poderia produzir grande estrago em uma época de reeleição como esta. Não o atingiriam ao menos do ponto de vista jurídico. Jaime não descarta, entrementes, que os políticos requebrantes se unissem com o tísico Rato Branco para dar cabo dele. Especialmente agora que estão a par das ações praticadas por Jaime em parceria com o frustrado humorista João Claudione, este que nas sérias instâncias policiais não passa de um percevejo, assassino, traficante, fichado como João Cláudio Santana, marginal perigoso e, por enquanto, sob a proteção de agentes corruptos da própria polícia. Mas seus dias estão contados; e sua casa deve cair a qualquer momento.

Na cozinha, antes de sair, Jaime bebeu um pouco de café. Daí a pouco, sentado na cadeira da área frontal, fumou um cigarro com vagar. Depois foi ao quarto, paramentou-se com o colete à prova de balas, vestiu a jaqueta abotoada por cima, pôs uma mochila vazia nas costas, a fim de colocar os três originais impressos e encadernados que receberia na Copiadora Expressa.

Semblante grave, enfiou o trinta e oito na cintura. Havia, repito, preparado quatro cópias de disquetes, isto além do arquivo que deixara no computador. Por último, colocou as cópias nos bolsos internos da jaqueta jeans. Na cintura, entre um leve roçar e outro, ele se incomodava com o peso do revólver de grande porte com as oito cápsulas no tambor. Por baixo da jaqueta, conforme ressaltamos, estava aquela espécie de anjo da guarda: o firme e quase imperceptível colete.

Por volta das três da tarde, então, debaixo de um céu incomumente nublado e em meio a uma temperatura também poucas vezes experimentada pelos mondronguenses, Jaime pegou um mototáxi perto de sua casa e desceu direto para o Centro. O seu destino era o escritório de Luciano Aires, que estava com um cliente em tal ocasião, e Jaime ainda precisou aguardar uns trinta minutos. Daí a pouco o cliente saiu e Jaime e Luciano se viram a sós. Naquele dia, portanto, como já vinha ocorrendo há dois meses, Jaime estava no escritório de Luciano não meramente como amigo. Aqui e acolá experimentavam umas intimidades homoafetivas. Ambos trocavam uns rápidos beijinhos e se agarravam um pouco antes que o próximo cliente desse o ar da graça. Nem Laura nem Reginaldo Marinho, com os quais Jaime participava de um trissal, tinham conhecimento dessa relação paralela. Jaime passou a utilizar a impressora de Luciano para imprimir as cópias de que precisava para encadernar e colocar nos Correios.

— Hoje a minha tarde foi bastante cheia, Jaime. Todavia, se você puder esperar mais uma horinha, talvez até menos, eu vou lhe acompanhar no trabalho da copiadora. E cumprida esta missão das cópias, e também após um pouquinho de prazer, logo que sairmos daquele motelzinho bacana, eu prometo que vou deixar você em casa, são e salvo. O que me diz, senhor das letras? — propôs Luciano.

— Não vai dar. Estou com pressa. Eu quero ver se consigo fazer a encadernação dessas coisas hoje ainda. Tenho a sensação de que ando por aí o tempo todo com um alvo no peito ou nas costas A postagem nos Correios vai ficar mesmo para amanhã. Quero que guarde isto com você. É uma cópia do meu romance. Estou sofrendo ameaças, Luciano, justamente por conta desse livro e não sei o que me pode acontecer se essa minha obra for publicada aqui em Mondrongo. Então, meu caro, uma cópia ficará com você. Outra vou entregar ao Reginaldo, uma ficará com Laura e a quarta eu vou confiar a Raimundo Gilmar da Silva Ferreira, aquele meu amigo impressor da Copiadora Expressa. Ele me conhece há bastante tempo e imprime os livros que lhe envio para os concursos de que participo. Se algo de pior me acontecer, se eu for morto por conta dessas páginas, meu último desejo é vê-las publicadas, aqui ou fora de Mondrongo. E a todos aos quais entreguei os disquetes ficarão com responsabilidade dessa obra. Principalmente você, Luciano, justamente com o Raimundo Gilmar.

— Não fale assim, homem! Até fico arrepiado só de imaginar uma coisa dessas. Esta cidade de bosta não vai fazer nada de tão grave contra você! Fique tranquilo. Você não vai morrer por conta desse livro e de nenhum outro. Aquele incidente na noite do lançamento do meu Caixa-pregos foi apenas para lhe intimidar. Até porque, convenhamos, você pega pesado com esse pessoal poderoso.

— Não se trata de nada que eles não mereçam.

— Precisa de algum dinheiro para a impressão das cópias e a postagem? Pode falar, não tenha cerimônia entre nós. Recebi honorários e estou cheio da grana — brincou Luciano. — Sei que isso custa caro, principalmente os Correios.

— Sim, eu aceito. Mas lhe prometo que vou devolver.

O tempo passou rápido. Voara. Daí a pouco chegou o cliente que Luciano estava esperando, um senhor rosado e de meia-idade, e logo Jaime precisou ir embora com apenas uma das três cópias que conseguira imprimir do original.

“O resto eu faço na copiadora”, pensou. Mas as horas haviam passado céleres. As luzes dos postes já estavam acesas, e quando Jaime chegou à copiadora, esta se achava com uma placa de “fechado” pendurada na porta de vidro. Ainda assim, por uma portinhola superior, Jaime acenou a Raimundo Gilmar da Silva Ferreira e eles conversaram rapidamente. Jaime Peçanha explicou a urgência da situação, entregou-lhe o disquete pela portinhola e Raimundo Gilmar o guardou no bolso da camisa. “Pode ficar tranquilo, meu amigo”, disse Raimundo prometendo que a primeira impressão do dia seguinte seriam as duas cópias de A Cidade que Nunca Leu um Livro, juntamente com as encadernações, já que uma das impressões, justamente a que fora feita no escritório de Luciano, seguiu sem encadernação na mochila de Jaime. Convém agora recordarmos que nessa época as editoras em geral ainda recebiam dezenas (talvez centenas) de originais impressos e encadernados. Atualmente, passados mais de vinte anos, é tudo recebido somente por e-mail, por correio postal, com arquivos sobretudo nos formatos Word e PDF.

Não se sabe por que razão, portanto, Jaime decidiu levar consigo, na mochila, a cópia que conseguira imprimir no escritório de Luciano Aires. Perfeccionista, não duvidemos de que objetivasse uma última revisão.

— Amanhã cedo, Gilmar, eu estarei aqui com a terceira cópia para você fazer a encarnação. Esses originais seguirão para o Rio e São Paulo.

— Peço uma esmola pelo amor de Deus! — implorava o livreiro falido, o mesmo que supostamente afirmara que esta cidade nunca leu um livro.

Jaime Peçanha deu meia-volta levando na mochila apenas a cópia que fizera no escritório de Luciano, pouco antes do próximo cliente chegar. Além de um punhado de balas nos bolsos internos da jaqueta que encobria o colete tecnicamente impenetrável, ele ultimamente havia adquirido um carregador automático, de maneira que trocaria de carga em tempo mínimo. Na cintura, um tanto desconfortável, portava o poderoso berro, o quase inseparável revólver. Àquela altura já havia comprado de João Claudione uma caixa de projéteis novinha: cem unidades.

O tempo estava bem ameno para uma caminhada. Então Jaime decidiu subir a Presidente Dutra a pé. Talvez tenha sido esse o seu grande erro.

ACOMPANHE

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Prólogo;

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Capítulo 2;

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo  3;

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 4;

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 5

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 6;

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 7;

Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 8;

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 9;

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 10;

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 11;

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 12;

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 13;

Leia tambémA cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 14;

Leia também: A cidade que nunca leu umlivro – Romance – Capítulo 15.

Marcos Ferreira é escritor

Compartilhe:
Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Marcos Ferreira diz:

    Saudações a todos.
    O Capítulo pode até não ser dos melhores, porém a ilustração é show.
    Abraço!

  2. Francisco Assis Ferreira de Souza diz:

    Parabéns meu irmão tenho serteza que Deus te enviou pra nós para você sempre trazer suas grandes opiniões poéticas e um diferencial no mundo da grande literatura brasileira um forte abraço 🙏👍

  3. Raimundo Gilmar da Silva Ferreira (Gilmar) diz:

    A cada final de semana somos premiados com a criatividade do autor. Nesta, entrou um personagem que me surpreendeu bastante. Parabéns!

  4. Bernadete Lino/ Caruaru-PE diz:

    Esse Jaime tem muitas facetas: sempre surpreendendo! O suspense está no ar. O que virá domingo? Curiosa o tempo todo! Parabéns, escritor Marcos Ferreira!

  5. RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES diz:

    A cada capítulo, uma surpresa, uma novidade… Fico cá a pensar nas “armações” mais lá para frente para “amarrar” a multiplicidade de detalhes… rsss

Faça um Comentário

*


Current day month ye@r *

Home | Quem Somos | Regras | Opinião | Especial | Favoritos | Histórico | Fale Conosco
© Copyright 2011 - 2024. Todos os Direitos Reservados.