Prova de fogo
Por Marcos Ferreira
Dizem (sujeito indeterminado) que até as pedras se encontram. Não duvido. Mas não afirmo que sim. Logo que pegou a calçadinha da Ponte Jerônimo Rosado, num horário em que o trânsito subindo a Presidente Dutra era o mais intenso e caótico possível, Jaime topou com o sebista Antoniel Silva, dono do Sebo Verdugo, o segundo maior do município, cidade esta que possui apenas dois sebos. O maior e melhorzinho é o Bate-Bucha, pertencente ao xilógrafo Gotardo Lins.
Tanto Antoniel quanto Gotardo fazem as vezes de editor e ambos lançaram certas obras com o selo dos seus respectivos comércios. Conforme já foi dito, ao menos creio que sim, o Bate-Bucha situa-se na Rua Jerônimo Rosado. Nessa mesma rua, consintam que eu me repita, também encontramos a loja de carros do senhor Mauro Mosca, vulgo Rato Branco.
Muito bem. Lá caminhava, a passos largos, o escritor Jaime Peçanha, ora alçado à condição de assassino, além do delito de posse ilegal de arma de fogo. Subia a calçadinha da Ponte Jerônimo Rosado com a sua mochila nas costas, a tal mochila contendo a cópia impressa da obra A Cidade que Nunca leu um Livro. Súbito, então, aparece-lhe à direita, sempre a direita!, o sebista falacioso Antoniel Silva. Este vinha assim como quem viesse da pequena e íngreme rua do ponto de ônibus.
Não foi possível ao escritor fazer de conta que não avistou o sebista magricelo por trás daqueles óculos de fundos de garrafa. Nem o sebista, apesar da acuidade visual não ser das melhores, se permitiria simular que não fora visto. Um a par da presença do outro, portanto, o diálogo entre os dois cordiais desafetos foi inevitável. E já nas primeiras palavras, com sua peculiar gagueira, como era de se esperar, o atrevido Antoniel Silva não perdeu tempo e pôs o dedo na ferida política de Jaime Peçanha: o seu imbróglio com os mandachuvas locais, notadamente os senhores Wallace Batista (prefeito) e Leonardo Jardim (presidente da Câmara). Sem rodeios, mas com meias palavras, Antoniel asseverou que estava por dentro das novidades e que ele, se estivesse no lugar de Jaime Peçanha, já teria desaparecido de Mondrongo há muito tempo.
— Sua batata com os políticos agora vai assar.
— Acho melhor batata assada que batata crua.
— Tem uma história por aí cheirando à pólvora.
— Você está botando verde para colher maduro.
— Mas, sendo franco, não creio em tal história.
— Está sendo bonzinho, ou me subestimando?
— Só acho que você não tem pulso para tanto.
— Então está me subestimando. Isso é um erro.
— Quer dizer que confessa o que estão dizendo?
— Não. Até porque ninguém me acusou ainda.
— Já existe um corpo e um crime a ser esclarecido.
— É bom que tome mais cuidado com sua língua.
— Isso por acaso é uma ameaça, Jaime Peçanha?
— Não. Porém você não sabe do que sou capaz.
— Eu não sei de certeza. Apenas já ouvi falar.
— Mesmo assim ainda duvida? Me subestima?
— Eu não tenho medo de você, escritorzinho.
— Deveria ter. Sobretudo com esses rumores.
— Como já disse, talvez isso seja apenas fofoca.
— Suponho que você perdeu a noção do perigo.
— Eu não, e sim você, que mexeu com políticos.
— Eles que tomem cuidado comigo, Antoniel.
— Olhe só para você, Jaime! É um zé-ninguém.
— Melhor que ser um capacho público e notório.
— O que você tem é inveja das minhas amizades.
Jaime gargalhou e bateu no ombro de Antoniel:
— Que amizades?! Você é um puxa-saco oficial!
— Hum! Pelo menos não sou um alvo ambulante.
— Claro que não. Porque você é um mosca-morta.
— Nossa conversa acabou, Jaime. Minha casa é nessa rua. Espero ainda vê-lo (vivo!) para batermos outro papo desses qualquer dia.
— Não posso dizer que foi um prazer reencontrá-lo, mas eu também espero que esta não seja a nossa última conversa. Apesar dos pesares.
Antoniel Silva pegou a rua da casa dele, que ficava ali pertinho, enquanto que Jaime prosseguiu subindo a Avenida Presidente Dutra.
O tempo continuava agradável, contudo sem indícios de chuva. Tal condição, a temperatura daquele jeito, favorecia o uso do colete à prova de balas e também suavizava o contato da mochila nas costas. A mochila continha o original de A Cidade que Nunca leu um Livro, cópia esta que Jaime havia imprimido no escritório de Luciano Aires e nem teve tempo de imprimir o restante na Copiadora Expressa.
A tarefa foi delegada ao seu amigo impressor, funcionário da Copiadora, Raimundo Gilmar. Dessa forma, com o colete bem ajustado por baixo da jaqueta jeans e com o trinta e oito também oculto no cós da calça, subiu a Presidente Dutra e seus passos pareciam mais largos do que quando vinha conversando com o sebista Antoniel Silva. Em certo momento, ao passar por um tipo mal-encarado, lembrou-se da frase de Antoniel:
“Pelo menos não sou um alvo ambulante.”
Um frio lhe correu pela espinha. Discretamente olhou para trás. Da mesma forma, agora espiando um pouco por cima do ombro, virou a cabeça para o outro lado e passou a mão no cós. Conferiu, pelo tato, o volume do revólver de oito culatras. Talvez temesse, por alguma razão inexplicável, que a arma houvesse sumido, desaparecido da sua cintura. Também começou a prestar atenção nos veículos, sobretudo em picapes cinza, como o modelo usado por Rato Branco e os seus comparsas.
De onde se encontrava até a sua casa, no Conjunto Walfredo Gurgel, calculou que restassem uns dois quilômetros. Seu coração batia acelerado. De quando em vez olhava para trás. Cogitou se não seria prudente àquela hora recorrer aos serviços de um mototaxista. Sempre havia um ou dois na esquina da bodega do poeta Francisco Nolasco. Entretanto, recordando-se do que teria que gastar no dia seguinte com a impressão, encadernação e embarque dos originais nos Correios, achou melhor economizar aqueles possíveis dez reais da corrida com o mototaxista. Trajava calça também jeans, tênis marrons de cadarços e um boné preto do New York Yankees.
A frase do sebista Antoniel Silva, aquela sobre “alvo ambulante”, ainda o perturbava. Contrariava-o assim como uma espécie de insulto, um motejo ou brincadeira de mau gosto. Tal coisa, portanto, não tinha graça. Nesse instante, opondo-se às condições climáticas, seu sangue quase entrou em processo de ebulição. Isto é, esteve perto de ferver. Sua preocupação com o que pudesse atingi-lo pelas costas era frequente. Podia ser qualquer um armado até com uma faca, um elemento a mando de Rato Branco.
Depois de uns trinta minutos, sem perder o ritmo, já se encontrava próximo de casa, quase na esquina da drogaria. Nesse instante, quem sabe para aliviar a tensão, resolveu entrar na drogaria para se pesar: oitenta e seis quilos na balança digital. Enfim, agora com os passos mais relaxados, ele deixara a altibaixa e atordoante Presidente Dutra. Entrou no Conjunto Walfredo Gurgel pela primeira esquina. Uma sensação de segurança e bem-estar o dominava. Pegou a rua de paralelepípedos da praça.
Local ruidoso. A fumaça dos espetinhos de carne assada subia feito uma névoa naquele trecho do conjunto. Agora Jaime se sentia em casa, são e salvo, como prometera o advogado Luciano Aires ainda no escritório.
Quase oito horas. Dois flanelinhas maltrapilhos disputavam a atenção e as gorjetas dos motoristas que circulavam o setor a fim de estacionar os seus veículos. Havia barulho promíscuo de música no entorno. Um jogo de futebol era transmitido por um projetor para um telão afixado no que restou da grade de ferro que devia proteger a quadra de esportes. Quase a praça inteira, como é comum ocorrer da segunda até o domingo, tomada pelas mesas e cadeiras de plástico dos comerciantes. Ali se vende toda sorte de comidas, refrigerantes e bebidas alcoólicas.
Aquele, de maneira informal, é o ponto de recreação do bairro. Não raro há um jogo de bingo cujos apostadores costumam marcar as suas cartelas com caroços de milho ou grãos de feijão. Área esta também disputada por duas igrejas evangélicas e um terreiro de umbanda.
Jaime retirou o boné. Enfiou os dedos no cabelo e sentiu que, apesar da temperatura amena, havia um pouco de suor na cabeleira já um tanto crescida. Pôs o boné de volta e aprumou os óculos. Olhou novamente para trás, pela derradeira vez, e logo em seguida contemplou toda aquela gente aglutinada na praça. De repente, “não mais do que de repente”, imaginou que numa daquelas mesas poderia haver um pistoleiro ou dois à sua espera. Por conta disso tornou a acelerar os passos.
Desceu por uma das laterais da praça e virou à esquerda. Entrou na obscura e desértica Padre Mota, onde reside com a enfermeira Laura Gondim. Nessa noite Laura se encontrava de plantão no hospital e só retornaria por volta das sete horas do dia seguinte. Percorreu cerca de cinquenta metros na própria rua e daí a pouco uma picape cinza (como se houvesse surgido do nada) freou praticamente em cima dele.
Três homens encapuzados logo o puseram sob a mira de pistolas. Num átimo, então, concluiu que estava rendido, em menor número e sem qualquer possibilidade de reação. Portanto, deu-se conta de que tentar puxar o seu trinta e oito seria uma grande tolice. Ordenaram que tirasse a mochila e a jogasse para perto deles, e assim Jaime o fez.
Supôs que quisessem apenas o livro, porém recebeu dois tiros seguidos no peito. Ao rastejar, tomou um balaço nas costas, à queima-roupa. Fingiu-se de morto e ouviu a picape arrancar, cantando pneus. O colete o salvou.
ACOMPANHE
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Prólogo;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Capítulo 2;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 3;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 4;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 5
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 6;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 7;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 8;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 9;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 10;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 11;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 12;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 13;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 14;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 15;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 16.
Marcos Ferreira é escritor
Esse Jaime Peçanha está cada vez mais complicado: que sufoco! Será que ele vai continuar escapando? Torço que sim! Embora não seja uma pessoa que eu admire e aprove, não me compete opinar o destino; o autor já deve tê-lo! Cada vez mais curiosa aguardo sempre o capítulo novo a cada domingo! Boa sorte, escritor! Parabéns!👏
Suspense do começo ao fim deste capítulo.
O sebista “sempre a direita” (ou de direita?) tinha razão sobre a possibilidade do escritor ser alvejado a qualquer tempo.
No mundo dos poderosos, todo cuidado é pouco. Prudência, ao usar o colete, foi a sua salvação.
E agora, como reagirá Jaime?
Daqui a sete dias teremos mais histórias.
Parabéns ao grande escritor.
Ufa ! o colete o colete o salvou!
Um abraçaço
Bom dia, amigo poeta!
Esse Jaime Peçanha anda com a vida por um fio… e o escritor, em cada narrativa, mais afiado com seu poder imaginativo. Parabéns! Cheiro das bandas do Norte!
Trama e enredo perfeitos. Suspense a cada vírgula. E a vida do escritor de ” Uma cidade que nunca leu um livro” por um fio da navalha ou pelo colete à prova de balas.
Aguardemos as cenas do próximo capítulo.
O cara está bem encrencado. Cada vez mais “adentrando” um túnel onde, devido ser “cheio de curvas”, está difícil enxergar a luz na saída. Mas, parece-me, esse Jaime é “possuidor” de sete vidas… Vamos ver então.