Paranoia
Por Marcos Ferreira
Depois que Luciano foi embora, estando Jaime sozinho no apartamento, ele se posicionou mais uma vez no parapeito da varanda para contemplar a rua e parte do movimento da cidade. Não tinha lembrança de que em algum momento de sua vida estivera em um prédio tão alto. Ao todo o edifício possuía vinte andares. A vista daquele ponto era realmente privilegiada em virtude do formado em arco da varanda, algo que proporcionava a tal visão panorâmica referida por Luciano.
Exausto devido a todo o estresse a que fora submetido na madrugada anterior, oportunidade em que trocou chumbo com os homens de Rato Branco e conseguiu acertar um tiro certeiro na cabeça do motorista da picape de cor cinza, fazendo com que esta descesse a ribanceira e explodisse com os ocupantes, Jaime acabou pegando no sono na cama de Luciano Aires.
Ele próprio, ao ter a pontaria elogiada pelo amigo advogado, ressaltou que ter alvejado o dito-cujo em movimento não fora nada mais que um lance de sorte. Nessa manhã, portanto, extenuado física e psicologicamente, o escritor fora da lei terminou caindo num sono profundo, confortavelmente embalado pelo friozinho do aparelho de ar-condicionado. Quando acordou, já um tanto preocupado com o horário, viu que era tarde para realizar a postagem dos originais.
Ainda assim, por via das dúvidas, resolveu descer e verificar se a agência estava fechada. Qual era mesmo o nome da rua? “Major Moisés Resende. Um carioca filho da puta e alcaguete da ditadura homenageado em Vila Negra”, dissera Luciano Aires num tom de revolta. Naquele fim de tarde, portanto, ao cruzar a portaria do Condomínio Anatólia e se ver com os pés na calçada, Jaime sentiu mais uma vez a sensação de que estava sendo observado por algum pistoleiro de Rato Branco.
Em meio ao luxo, ao requinte do Anatólia, Jaime se sentia uma espécie de estranho no ninho. Até o sujeito da portaria, um tipo vermelho e de olhos agateados, o fitara com cara de poucos amigos. Apertado no colete à prova de balas sob a jaqueta jeans, o revólver no cós da calça, seu receio era ainda incômodo. Antes de efetuar qualquer passo, tendo às costas uma mochila com os originais de A Cidade que Nunca leu um Livro, notou que na frente do prédio diversas pessoas praticavam caminhada num ritmo apressado no entorno do logradouro bem-arborizado. Já outros indivíduos (uma pequena parcela) estavam sentados nos banquinhos de alvenaria e madeira, papeando sabe-se lá que assuntos com as suas garrafinhas de água e roupas esportivas. Nesse minuto ele imaginou como seria se fosse obrigado a trocar tiros ali com um pistoleiro.
SERIA UM PANDEMÔNIO, um salve-se quem puder. Certamente inocentes seriam atingidos pelo fogo cruzado. O pesadelo da Rodovia 315 se repetiria. E desta vez ele estaria completamente só, sem o apoio de Luciano Aires para também efetuar disparos contra o atirador. Refletiu, aprumou a mochila nas costas e resolveu que, diante do horário avançado, não mais valeria a pena deslocar-se até a Rua Major Moisés Resende a fim de conferir se a agência postal ainda estava aberta.
Apertou o botão da guarita e outra vez o homem o fitou com ar pouco amistoso. Desta feita, quiçá por mera implicância, indagou quem era ele e quem desejava visitar no Condomínio Anatólia. Respirando fundo, com a fleuma de um monge budista, Jaime explicou que estava hospedado, provisoriamente, no décimo nono andar, apartamento de propriedade do advogado Luciano Aires.
O cara da portaria admitiu que estava ciente do fato, pois Luciano havia comunicado à recepção sobre a presença de Jaime no condomínio, e que ele ficaria ali por tempo indeterminado. Mesmo assim, avaliando o semblante e as roupas desgastadas de Jaime, a exemplo da surrada jaqueta e dos tênis sofríveis, o recepcionista permaneceu de cara amarrada e comunicou ao literato que o acesso à piscina estava suspenso devido a uma obra de manutenção.
No dia seguinte, por volta das oito e meia da manhã, Jaime finalmente postou os originais de A Cidade que Nunca leu um Livro para três editoras do Rio de Janeiro e de São Paulo. Os volumes estavam devidamente encadernados e embalados em envelopes com o endereço do apartamento de Luciano Aires como remetente das obras. Jaime pagou a postagem em dinheiro e se deu conta da importância e gentileza de Luciano em lhe ter disponibilizado aquela quantia no total de mil reais.
— Bem, a sorte está lançada — monologou.
Após a postagem, ao passar pela porta sem detector de metais, Jaime viu uma picape de cor cinza no outro lado da rua. O escritor empalideceu de imediato. O veículo era exatamente igual ao que na madrugada passada descera a ribanceira com os atiradores e se transformara em chamas. Por alguns segundos, quiçá um minuto, ele ficou inerte, o coração aos baques, a mente em torvelinho, os olhos arregalados. De forma discreta, então, tocou a cintura para sentir a saliência do revólver. Pensou até que ponto o colete poderia salvá-lo. Temeu que de repente os vidros fossem baixados e dois ou três elementos abrissem fogo contra ele. Começou a suar frio, as mãos ficaram trêmulas. Será que Rato Branco teria enviado um veículo igualzinho com novos comparsas para dar cabo dele? Até as pernas de Jaime começaram a tremer.
Daí a pouco, conduzindo uma menininha de uns cinco anos de idade, uma jovem senhora saiu de um colégio ali vizinho à agência dos Correios, abriu a porta de trás da picape, colocou o cinto de segurança na possível filha, assumiu o volante e seguiu devagarinho pela Rua Major Moisés Resende. Ainda ligeiramente trêmulo, Jaime Peçanha respirou aliviado, seu coração voltou a bater num ritmo normal e ele enfim retornou com passos lentos para o luxuoso Condomínio Anatólia.
— Não posso deixar que isso vire paranoia.
Apertou o botão da campainha e esperou que o portão fosse aberto. O funcionário da guarita não mais o fitou de cara trancada. Começara a se habituar com ele. No apartamento, usufruindo de uma sensação de segurança pela primeira vez ao longo de semanas, Jaime se despiu do colete à prova de balas, trancou a porta na chave, passou os dois ferrolhos de reforço, largou o trinta e oito cheio de balas sobre o criado-mudo e foi tomar um banho quente para relaxar a musculatura absolutamente tensa. A seguir, na cozinha, pegou ovos e presunto na geladeira, preparou umas xícaras de café ao mesmo tempo em que fritava os ovos e o presunto. Bebeu um suco de caju desses que os mercados vendem em garrafinhas de vidro. Daí a pouco a cafeteira entrou nos últimos estertores e Jaime se serviu de uma boa dose da rubiácea pura e escoteira.
— Não posso deixar que isso vire paranoia.
Disse baixinho consigo próprio, sentado à mesa da cozinha, a caneca entre as duas mãos, os cotovelos apoiados sobre o tampo de vidro. Parecia até que na madrugada anterior não havia sofrido um grave atentado contra a sua vida e a de Luciano Aires. O revólver comprado ao amigo João Claudione, indivíduo atualmente em poder da polícia, permanecia lá no quarto. Quanto ao colete, ele o jogara ao pé da cama como se este fosse um tipo de armadura de que ele não fosse mais precisar.
— Não posso deixar que isso vire paranoia.
ACOMPANHE
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Marcos Ferreira é escritor
Como sempre aguardo as cenas do capítulo do filme semanal!
Um abraçaço querido Amigo.
Um simples porteiro de prédio de classe alta pode, no seu posto de trabalho, achar-se superior aos que não se apresentam devidamente trajados ou com aparência de pobres.
Jaime sente perigo por onde anda. Acha que toda pessoa é um potencial capanga disposto a matá-lo. Será que os matadores profissionais (que até se elegem com votação expressiva) passam por essas paranóias?
Adeus sossego pra Jaime Peçanha! A vida até então, mais ou menos, estava começando a ficar sem muito horizonte; virou um fugitivo! Até onde iria? Parece estar trilhando um caminho sem volta… o que o autor nos reserva? Não arrisco palpite: não gostaria de estar no lugar do Jaime! Mas esperemos os próximos capítulos!
Muito bom, meu caro Marcos!
Não sei por que tenho a impressão que conheço Jaime! Kkkkkkkkkkkkkkkl
Grande abraço!
Simone
Vai ser um capítulo repleto de novidades (e finais), acredito. Vamos ver como o personagem vai conseguir sair de toda essa encrenca que ele, de certa forma, ajudou a criar (ou se vai ficar nela, pagando o que deve). O interessante aí será se, finalmente, o livro será lançado.