domingo - 14/07/2013 - 09:34h

A difícil arte de enxergar

Por Francisco Edilson Leite Pinto Junior

José Saramago, no seu livro “Ensaio sobre a cegueira”, foi brilhante ao escolher a seguinte epígrafe dos livros dos conselhos: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara!”. Afinal, acredito que seja este mesmo, o maior problema do ser humano: a falta de visão.

Portanto, se eu fosse o escritor José Ingenieros, corrigiria a lenda, colocada no seu livro “O homem medíocre”, onde ele relata que Deus querendo povoar rapidamente a terra, fez moldes de manequins, se esquecendo de colocar massa cerebral, contendo o amálgama das boas coisas, em muitas calotas cranianas… na minha visão, bem limitada, “tupiniquim-jerimum-caboclo”, o que aconteceu mesmo foi que Deus fez os manequins e colocou neles olhos incapazes de ver e reparar… e para os gregos não parou aí o “equivoco” de Deus: não satisfeito de nos deixar cegos, ainda fez mais uma peripécia – colocou a felicidade dentro de nós e manteve os nosso olhos voltados para fora, com o intuito de dificultar mais ainda a sua busca…  a felicidade se encontra tão perto e tão longe: perto, dentro da gente; tão longe, afastada dos olhos… Por isso, concordo com Einstein que dizia:

“Deus não joga dados”. É claro! Ele gosta mesmo é de brincar de esconde-esconde…

Assim, não é de se estranhar que “Herrar é umano”. Afinal, cegos e longe da felicidade, cambaleamos feito “o bêbado com o chapéu-coco, fazendo referências mil, as noites do Brasil”… agora, penso que fica mais fácil de entender o que quis dizer Saramago, na página 131, do seu “Ensaio sobre a cegueira”: “Já éramos cegos no momento em que cegamos. O medo nos cegou, o MEDO nos fará continuar cegos”.

Sei que corro o risco seriamente de ser processado pelo exercício ilegal da medicina, afinal, como um profissional de “corte & costura” – um cirurgião -, eu não deveria fazer nenhum tipo de diagnóstico… mas, por favor, caro leitor, entenda que este diagnóstico, que faço agora, é de mim mesmo, feito pelo mais “cruel” dos meus médicos: a minha consciência.

Sou um cego! E além de cego, tenho um enorme defeito: adoro trabalhar em equipe! E neste mundo competitivo, individualista, egocêntrico e hipócrita, sei que este segundo defeito, pode me levar para as fogueiras da inquisição moderna.

Mas, longe, muito longe de mim, não poder exercer a minha liberdade de pensar, pois é através dela que falo, logo existo. Portanto, a minha doença incurável, eu sei que nada mais é do que o olho que não se recusa a reconhecer a sua própria ausência: a sua própria cegueira…

Ah! A memória… Ela me leva, para uns dez anos passados, quando ainda operava em hospitais particulares e atendia aos planos de “saúde”. Pois bem! Estava eu na sala de cirurgia, cuja especialidade é aquela que mais necessita do trabalho em equipe.

Estirei a minha mão para Ionaldo (instrumentador, técnico de enfermagem). Não lhe disse nenhuma palavra, apenas estirei a mão. Ele me entregou o instrumento correto: uma pinça. Às vezes, nem estirava a mão, e ele se antecipava, entregando-me o instrumento que estava precisando.

Parecia até que ele lia os meus pensamentos. Brinquei com ele. Na verdade, disse rindo coisas sérias: “Meu caro Ionaldo, fico tão seguro com a sua presença aqui. Pois sei que se eu morresse, um dia operando, você terminaria a cirurgia para mim sem problemas!”. Pois é!

Nunca me senti inferior – e nem muito menos superior-, a Ionaldo. Pelo contrário: a sua presença me dava uma segurança infinita e necessária para o exercício do ATO CIRÚRGICO.

Volto a Saramago e ao seu ensaio, na página 86: “Perante a morte, o que se espera da natureza é que percamos os rancores, a força e o veneno…”; Vou agora para a página 245, para mais uma vez concordar com você, mestre da visão: “Se continuarmos juntos talvez consigamos sobreviver, se nos separarmos seremos engolidos pela massa e destroçados”.

Talvez, lutar – em direção equivocada, em busca da exclusividade-, seja uma forma de cegueira também… não seria melhor, começarmos por nós mesmos? Que tal sermos ÉTICOS?!

Ah! A memória novamente… Prova de residência médica em cirurgia do Hospital Walfredo Gurgel. Entrava o candidato. Eu fazia várias perguntas, mas a decisiva deixava para o final… Afinal, o melhor dos vinhos não se serve por último?!

Assim, perguntava: “Se você tivesse que escolher entre ser operado por um cirurgião extremamente ético, mas sem nenhuma técnica, e um extremante técnico, mas sem nenhuma ética, qual seria a sua escolha?”. Os alunos ficavam apavorados.

Esta pergunta não tem nos livros. Embora a resposta fosse tão simples – mas o difícil é ser simples, como dizia Drummond -, muitos não conseguiam acertá-la: ser operado por alguém extremamente técnico, mas sem nenhuma ética, você corre o risco de morrer, pois esse “profissional” não terá nenhum pudor de colocar as próteses, as órteses, etc. etc. sempre em primeiro lugar; mas se você escolher o extremamente ético, mas sem nenhuma técnica, ele nunca irá lhe operar sem se sentir capaz.

Ele buscará essa “técnica” pedindo ajuda a outro (irá encaminhá-lo para alguém que possa ser a duas coisas: técnico e ético), pois ele sempre se colocará no seu lugar… Sempre!

Portanto, ser ético é fundamental! E quando aqui falo em ética, não falo nos arremedos e nos remendados com esparadrapos ou coisa parecida… Ser ético é lutar constantemente contra um monstro interno, que nos leva a querer sempre ir pelo caminho do MAL. É lutar permanentemente por uma limpeza interna nos nossos porões, afinal, como dizia Hamlet: “Com quem a beleza poderia manter melhor comércio do que com a honestidade?!”…

Termino, então, aconselhando-o: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara!”

Francisco Edilson Leite Pinto Junior é professor, “médico” (cirurgião) e escritor.

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. Inácio Augusto de Almeida diz:

    Sobre complicar as coisas e a dificuldade de ser simples leiam este pequeno trecho do Romace MARANHÃO:
    ///
    A Baía dos Tubarões amanhecera calma. A placidez daquelas águas nem de longe lembrava as procelas que aconteciam frequentemente e que assustavam os habitantes da Ilha das Cobras. No pequeno barco, pai e filho se dedicavam à pesca naquela manhã de luz e calor. No céu, o azul pleno, bonito, como bonito era aquele dia.
    Francisco olhava para o pequeno João com muito orgulho. Menino ainda e já se revelava um grande pescador, inteligente e corajoso. Tudo o que um pai deseja de um filho.
    – Sabe, filho, a vida me lembra uma pescaria.
    – Uma pescaria Como, papai?
    Francisco atirou a linha dentro d’água e disse:
    – João, tem coisa mais simples do que pescar? Mas se você prestar atenção vai ver que tem gente que complica tudo. Transforma um simples lançar de uma linha em coisa do outro mundo. Lembre-se sempre que todas as coisas são simples, nós é que complicamos tudo. A vida, se você não complica ela, é a mais simples de todas as coisas. Deus, meu filho, é o pai de todos nós. E como pai, Ele não iria nos dar uma coisa complicada.
    – Pai, tem peixe na sua linha.
    – Tá vendo como pescar é simples? Mais simples só mesmo a vida.
    – Será mesmo, pai?
    – Claro, filho. O grande mal é que os homens se deixam dominar pelas emoções e assim eles mesmos se condenam ao fracasso. Não percebem a felicidade batendo à porta e só acordam quando tudo já passou. Aí entendem tudo e ficam se lamentando.
    A pescada era enorme e estava numa trabalheira danada. Foi preciso que João largasse a sua linha e viesse ajudar o pai a colocá-la dentro do barco.
    …………..
    Pag. 77
    ////
    Um dia eu me animo a tirar uma nova edição deste romance.
    ////
    CUSCUZ COM OVO SEM CAFÉ É SERVIDO NA MERENDA ESCOLAR
    O UNIFORME ESCOLAR AINDA NÃO FOI DISTRIBUÍDO EM MOSSORÓ

  2. Expedito diz:

    Ah! a paciência… Ela me levou a esperar alguns posts adiante e encontrar a resposta que quisera dar. Tenho certeza não teria me expressado tão bem e ainda talvez, quase que com certeza, cometido alguma indelicadeza como o nobre estudante de medicina. Pois bem, eis aí, Diogo Medeiros, alguém que como você teve o sonho de poder atender as demandas da sociedade e nem por isso achou que só as atenderia se tudo ao redor conspirasse em seu favor.

  3. Marcos Araújo diz:

    Caro Prof. Edilson,

    Não o conheço pessoalmente, daí não poder ter a visão de sua compleição física. Mas, posso sentir, como “um cego”, a sua alma e os atributos da sua virtuose moral.
    Que Deus lhe conserve em sabedoria e grandiosidade humana.
    Sou admirador não só dos seus escritos, mas de sua absoluta coragem!

  4. Ana Márcia Donnabella diz:

    Caro amigo e professor, brilhante sua reflexão!!!!
    Agradeço suas palavras tão claras e precisas.
    Um grande abraço.

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