Por Bruno Ernesto
Desde criança me interessei por colecionar todo tipo de coisa que você possa imaginar: selos postais, moedas, cédulas, cartão telefônico, álbuns de figurinhas, revistas em quadrinhos, embalagens de cigarros, lata de cerveja etc. Em relação a esses dois últimos, registre-se, não fiz uso. Pelo menos não naquele tempo.
Por volta dos meus 12 anos de idade, comecei a cultivar outro hábito: guardar recortes de jornal.O que ia achando interessante, ou guardava a folha inteira do jornal, ou passava a tesoura e guardava o que me interessava. Alguns colava na porta do meu guarda-roupa.
Após tantos anos, restaram apenas um imagem de Noel Rosa, Luiz Gonzaga, o Nogueirão e um recorte sobre fobias.
Por sinal, minha mãe ainda conserva meu velho guarda-roupa num dos quartos da casa dela, apesar de destoar de todos os outros móveis feitos sob medida.
Numa das portas, ainda está bem conservado um recorte de jornal que colei, lá pelos meus dezesseis anos de idade, onde consta mais de sessenta fobias dispostas em quatro colunas. Tem de fobia pra tudo. Sabia que um dia me serviria.
Recentemente, por volta das 14h de uma quarta-feira, eu e minha namorada fomos almoçar num restaurante aqui em Mossoró. Um bristô bem aconchegante e reservado na Nova Betânia, e que não é tão movimentado nesse horário, de modo que poderia ficar aguardando enquanto ela ia ao salão fazer as unhas e aproveitar o restaurante vazio, com um ar-condicionado geladíssimo para aplacar esse calor infernal do verão e, assim, fazer render esse tempo de espera.
Aproveitei para continuar lendo uma tese de doutoramento sobre sátira na literatura brasileira contemporânea que achei bastante interessante e havia guardado – sim, agora coleciono textos digitais -, aproveitando o gancho que escrevi sobre sátira no texto anterior (Concórdia //blogcarlossantos.com.br/concordia/ ).
Após uns vinte minutos de leitura, entrou um casal; ele aparentando ter por volta de 25 anos de idade e ela, 20.
Pelo adiantado da hora, só tinha a minha mesa ocupada, e o único som que podia escutar, além da música estilo lounge ambiente, era o do tilintar da louça sendo lavada na cozinha do restaurante, mas algo suportável.
Ocuparam uma mesa ao lado da minha. Para o meu azar.
Pediram dois croissants. Para beber, o rapaz pediu um refrigerante; ela um suco.
Conversavam a meio tom, trocando sorrisos e olhares de soslaio enquanto comiam. Ela aparentava estar bem encabulada. Tensa.
Você deve estar pensando, caro leitor, o porquê de eu estar tão curioso, observando o jovem casal. Decerto.
Entretanto, o motivo era outro mais obscuro, e tive a prudência de proceder com olhares rápidos e discretos.
O que me chamou a atenção, na verdade, foi o mastigado do rapaz, que me desconcertou a leitura a ponto de não conseguir mais prosseguir.
Era um mastigado mole, intercalado com diálogos com a boca cheia de croissant e coca cola; chupados esquisitos, uns assobios: um tipo de simbilado bem esquisito.
Alguém já me disse que sofro de misofonia. Penso que deva considerar procurar uma fonoaudióloga ou uma neurologista.
Agora, pondere. Quem nunca se irritou com mastigado de boca mole, chupado de canudo, bicada em café e sopa quente feito aspirador de pó; gente mastigando gelo ou comida crocante em um ambiente não adequado, como sala de aula, biblioteca, e até mesmo, no ambiente trabalho?
E mais! E aquelas pessoas falando com a boca cheia, roçando o talher nos dentes para arrancar a comida dele e o famigerado palitar dos dentes?
Calma! Você, por acaso, já reparou na quantidade de gente que arrasta os pés no supermercado? À vezes observo para ver se estão tentando tirar algo preso na sola do calçado.
Ledo engano meu: é a mania irritante da pessoa que parece estar sendo arrastada a força pelos corredores do supermercado em direção à guilhotina. Antes fosse. Justificaria, e até me compadeceria com o seu final.
Enquanto isso, no restaurante, a situação só se agravava. Pensei em abordar o rapaz e perguntar se ele estava bem, no intuito de interromper aquela sinfonia em dó sustenido maior.
Porém, abortei a ideia, pois, certamente, estragaria o encontro amoroso. Poderia ferir de morte o galanteio.
Não vendo uma solução compatível com a urbanidade, me fiz de covarde e bati em retirada decorosamente.
Antes o calor que fazia fora do restaurante, a permanecer naquela tortura ou estragar o encontro amoroso.
Ponderei a situação e pensei no futuro de uma família. A minha, claro! Poderia sair dali direto para o xilindró.
Minha namorada quando me viu sentar num banco em frente ao salão, no calor, já mudou a fisionomia. Sabendo como sou calorento, decerto já imaginou que algo de grave ocorrera para eu não estar no restaurante.
Perguntou, via mensagem de texto, se eu estava bem. Apenas disse que estava com dor de cabeça. Desconversei. Vi de longe que ela não acreditou.
Não sei se, de fato, sofro de misofonia ou mesmo de fonofobia. Agora, toda vez que abro o velho guarda-roupa e ponho os olhos no recorte de jornal, mais me identifico.
Lembrei o fato de que na tradição japonesa, tomar sopa sem sugar fazendo um barulho terrível é sinal de má educação e que não gostou da sopa. Entretanto, o rapaz não tinha feições nipônicas.
Talvez o ditado de que o costume de casa vai à praçaesteja em pleno vigor no caso do tipo de cena que vi no restaurante.
Entretanto, penso que não seria o caso. Sei da tarefa que os pais têm de combater isso. E me incluo nessa peleja.
Apesar de tudo, a conclusão que tive foi a de que aquela garota teve, em verdade, muita sorte, pois o rapaz poderia ter pedido uma refeição acompanhada com farofa; e, a considerar a empolgação da conversa, teria sido um desastre. Apesar de que há quem até assobie chupando cana, numa harmonia impressionante.
A bem da verdade é que, misofônico ou não, é melhor manter a calma e sair de perto numa situação dessa.
Perder a calma fará com que apenas você saia prejudicado. Ainda que a tentação seja grande e possa valer a pena em certos momentos.
Melhor não arriscar.
Bruno Ernesto é professor, advogado e escritor