domingo - 01/05/2022 - 07:20h

Mistério? Onde?

Por Marcelo Alves

Hoje vou misturar alguns assuntos da minha predileção: os romances policiais/detetivescos e os seus subtipos e a tendência (quase mania) que temos hoje de elaborar listas sobre as mais diversas coisas (os dez mais ricos, as vinte mais bonitas, os cinquenta melhores e por aí vai).

Os especialistas classificam os romances policiais em dois tipos: policiais de enigma e policiais noir, também chamados, respectivamente, de policiais ingleses e policiais americanos, levando em consideração os países de onde esses dois subgêneros teriam se originado.Romance-Policial-ID

Nos policiais de enigma – de gente como Arthur Conan Doyle (1859-1930), C.K. Chesterton (1874-1936) e Agatha Christie (1890-1976), o leitor é “convidado” a desvendar o crime. Ele segue os passos e o raciocínio do detetive através de um jogo de pistas e charadas até o final, em regra, surpreendente.

O mistério é, de fato, o mais importante da estória, muito mais que o ambiente em que ela se passa. Já nos policiais noir – de craques como Raymond Chandler (1888-1959), Dashiell Hammett (1894-1961), James M. Cain (1892-1977) e Ross MacDonald (1915-1983) – temos um mundo estranho e corrompido, e essa atmosfera na qual estão as personagens, “carregada” até visualmente (daí o termo “noir”), é tão ou mais importante do que a trama em si.

A elaboração de listas também é um caso antigo, mas que, até para podermos lidar com a enormidade de informações de hoje, tem virado uma “febre”. Eu mesmo possuo um livrão, “10.000 Things You Need to Know: the Big Book of Lists” (edição de Elspeth Beidas e publicado pela Universe Publishing em 2016), que acho o máximo. Adoro folheá-lo.

O fato é que estes dias topei com uma classificação de romances policiais, com as respectivas listas de títulos indicados, que achei inusitada. Foi no site literário Goodreads, que aponta “100 Mystery and Thriller Recommendations by Setting” – “100 mistérios e suspenses recomendados/classificados pelo ambiente onde se passa a estória”. Tipo: uma biblioteca, um quarto de hotel, no teatro, no escritório, um apartamento decrépito, à mesa, uma casa de campo, um quarto trancado por dentro, em um campus universitário, na igreja, um lugar extremamente frio, aviões e trens, um barco, na praia, uma ilha, através do tempo ou no espaço sideral.

Eu vou escolher três desses locais para tratar. Os de minha preferência para frequentar ou para fins de um bom mistério/suspense/crime (ficcional, deixo isso muito claro). Vou de biblioteca, campus universitário e igreja.

Para a biblioteca, vou com a amiga Agatha Christie em “Um corpo na biblioteca” (“The Body in the Library”, 1942). Em Gossington Hall, na mansão do coronel Arthur e Dolly Bantry, o corpo de uma bela jovem é encontrado na biblioteca. “Quem era a jovem? O que ela estava fazendo na biblioteca? E há uma conexão com outra garota morta, cujos restos carbonizados são achados em uma pedreira abandonada?”, indaga o Goodreads. É um caso para Miss Marple.

Para o campus universitário, vou viajar com Guillermo Martínez (1962-), da Argentina para o Reino Unido. O título é “The Oxford Murders” (“Crímenes imperceptibles”, 2003), pois foi a versão em inglês que li, maravilhado, numa temporada de estudos na cidade universitária. Em um dia de verão, um estudante argentino encontra sua senhoria – uma idosa que ajudou a decifrar o Código Enigma na 2ª Guerra Mundial – friamente assassinada.

Um célebre lógico da universidade recebe uma correspondência anônima com um símbolo estranho. Os símbolos e os assassinatos vão se sucedendo. Cabe aos dois matemáticos deter um serial killer. Já não me lembro mais do final. Vou ler novamente. Embora desta vez em casa, infelizmente.

E, na Igreja, mais precisamente numa abadia da Itália Medieval com uma labiríntica biblioteca, investigo na companhia de Umberto Eco (1932-2016) e seus Guilherme de Baskerville e Adso de Melk, em “O nome da rosa” (“Il nome della rosa”, de 1980). É o cenário de sete dias de “crimes e castigos” imaginados por Eco, misturados nas vidas religiosa e ideológica do século XIV, com suas ortodoxias e heresias, que passaram a compor meu conhecimento (e imaginário).

Por fim, afirmo: não tenho qualquer intenção de me mover para um lugar extremamente frio, para o espaço sideral ou muito menos através do tempo. Nem mesmo tenciono devanear estar por lá resolvendo mistérios. Mas fiquem à vontade. Consultem o Goodreads e o texto “100 Mystery and Thriller Recommendations by Setting”. Cada qual com seu gosto.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República e Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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Categoria(s): Crônica
domingo - 24/04/2022 - 04:00h

O policial siciliano

Por Marcelo Alves

Conheci Andrea Camilleri (1925-2019) por intermédio do meu conterrâneo e amigo Marcelo Navarro Ribeiro Dantas. Toda vez que se fala sobre literatura policial/detetivesca, o outro Marcelo cita – e muito elogia – Camilleri e o seu comissário Montalbano. O amigo tem toda razão.

Andrea Calogero Camilleri faleceu em 17 de julho de 2019 em Roma (Foto: Web)

Andrea Calogero Camilleri faleceu em 17 de julho de 2019 em Roma (Foto: Web)

Andrea Calogero Camilleri nasceu na Sicília, a famosa ilha que é “chutada” pela não menos famosa “bota” italiana. Mais precisamente em Porto Empedocle, comuna batizada em homenagem ao filósofo Empedocles (106-46 a.C.) e que foi a inspiração para a ficcional cidade de Vigata, onde estão essencialmente ambientadas as “investigações” do tal comissário.

Essa mistura fez sucesso: legalmente, chegaram até a amalgamar os nomes das duas cidades, virando, a comuna verdadeira, durante um lustro, Porto Empedocle Vigata. Digo tudo isso porque essa ambientação na Sicília italiana é muito importante para a construção tanto das estórias como da linguagem dos policiais de Camilleri.

Curiosamente, Andrea Camilleri foi durante muito tempo autor, roteirista e diretor de TV (incluindo a badalada RAI) e de teatro. Viveu décadas em Roma até o seu recente encantamento (2019). A TV e o teatro eram as suas praias, pelo menos publicamente, tendo até alguns de seus romances, quando originalmente escritos (lá pelos anos 1960), sido recusados por editoras mais desavisadas. Sua ficção em prosa só ganhou espaço tardiamente.

Como informam os meus guias “Tutto Letteratura Italiana” (De Agostine Editore, 2005) e “Gli spilli fissano le idee – Letteratura Italiana 3” (Edizione Alpha Test, 2016), foi com seus romances e contos de ambientação siciliana, tais como “Un filo di fumo” (1980), “Il birraio di Preston” (1995) “La concessione del telefono” (1998) e “Il re di Girgenti” (2001), e especialmente com os seus romances policiais/detetivescos, centrados na figura sanguínea do comissário de polícia Montalbano, elaborados fazendo uso de uma linguagem fictícia, uma mistura da língua nacional e do dialeto siciliano, tais como “La forma dell’acqua” (1994), “Il cane di terracota” (1996), “La voce del violino” (1997), “L’odore della notte” (2001) e “La Pazienza del Ragno” (2004).

Entretanto, embora tardio, o Camilleri romancista foi um sucesso estrondoso. Sobretudo em fins dos anos 1990 e, solidamente, nestas primeiras décadas do século XXI. Foi e é muito popular na sua Itália e fora dela. Foi naturalmente bater na TV com o seu comissário Montalbano. A RAI mesma produziu duas séries bem conhecidas: “Il commissario Montalbano” e “Il giovane Montalbano”. A BBC e outras redes menos votadas retransmitiram as temporadas. Essa mistura livro, cinema e TV é tudo.

Para vocês terem uma ideia, já no meu excelente “Giallo: poliziesco, thriller e detective story” (Editore Leonardo Arte, 1999), livro publicado sobre a direção/edição de Sergio Giuffrida e Riccardo Mazzoni, era anotado que, “para chegar à atualidade, não se pode esquecer o fenômeno Andrea Camilleri, um caso editorial sem precedentes: oito de seus livros nos primeiros doze lugares na lista dos best-sellers de 1998. Um sucesso que veio tarde para ele e para seu herói Montalbano (o primeiro romance, ele o havia escrito, sem encontrar editores dispostos a publicá-lo, nos anos sessenta), mas a espera foi mais do que recompensada”.

Bom, para terminar, tomando por mote a história do Andrea Camilleri romancista e do seu comissário Montalbano, devaneio com um sucesso tardio. Quem sabe não mudo de praia? Viro outrem: de cronista para ficcionista. Vou me inspirar anotando, página por página, o clássico “A forma da água” (numa edição da BestBolso, de 2011, que tenho em mãos). Nunca é tarde para se apreender. E, pelo visto, nunca é tarde para se fazer sucesso contando crimes, mistérios e assemelhados. E, se sucesso nas letras não for o destino do Marcelo de agora, quem sabe não o é para o outro Marcelo?

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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  • Repet
domingo - 17/04/2022 - 11:26h

A beleza da vida

Por Inácio Augusto de Almeida

Por ser dinâmica é bela. Nada fica parado. Nem mesmo as pedras. Tudo é movimento, mudança.

De Ptolomeu a Coopérnico mais de treze séculos se passaram. Vida, gaiola, liberdade

Mas a mudança aconteceu e a terra deixou de ser o centro do universo. Depois Galileu e a história seguiu em frente.

Nos costumes as mudanças também aconteciam, só que lentamente.

Sócrates tinha escravo, isto mais de três séculos antes de Cristo.

Tiradentes tinha escravos e falava em liberdade, igualdade etc.

Não fosse a bravura dos negros e até hoje a escravidão, na sua forma mais nojenta, ainda existiria. Foi pela luta e com muito sangue derramado que aconteceu a libertação dos escravos.

Mas as injustiças ainda existem. Desigualdades absurdas acontecem e passam despercebidas.

Nos quartéis existem refeitórios separados para oficiais, sargentos e soldados. E com qualidade de comida diferenciada, como se os estômagos não fossem iguais.

Na justiça os que têm dinheiro contratam bons advogados e zombam dos pobres que estão encarcerados

Do tempo que se acreditava na infalibilidade da palavra papal aos dias de hoje, onde poucos levam em conta o que fala o Papa, muito tempo se passou.

Será que tudo realmente mudou?

O homem, na sua essência, mudou?

Lembra-se do dia em que, na seção onde trabalhava, recebeu a visita de um francês, pai de um jovem que tinha falecido junto com a noiva em um desastre automobilístico na Anápolis/Goiânia.

Veio junto com o maior amigo do seu filho, mesma turma da Academia da Força Aérea.

O pai do jovem que perdeu a vida no acidente trazia na mão o texto que tanto emocionou o amigo do seu filho. E ao ler a mensagem fez questão de ir agradecer as palavras que tocaram o fundo do coração de um pai arrasado pela morte prematura do filho tão querido.

E naquela tarde viu aqueles dois homens abraçados chorando. Um a perda do amigo-irmão, o outro a perda do filho.

O tempo passou e tudo caiu no esquecimento a provar que o homem continua tal qual o da época pré-socrática.

A prática do alpinismo social que o torna inferior aos animais ditos irracionais continua presente e ainda mais forte nesta época de tanto avanço tecnológico e de anulação de sentimentos.

Esquece o homem que caminhar sempre para frente termina por levá-lo ao ponto de partida.

Não percebe que assim procedendo não se dá conta do afastamento dos valores que realmente contam e tornam a vida bela. Isto acontece por estar sempre com os olhos fitos na escada que sobe e com orgulho e soberba se proclama um pragmático.

Envolvido por ilusões, não percebe que o tempo passa e mais dia menos dia chega a hora das lembranças e das saudades.

E se arrependerá das saudades que  permitiu por razões diversas, fossem transformadas apenas em vagas lembranças, se é que alguma lembrança ficou.

E nestes dias de saudosismo lembrar-se-á daqueles a quem era tão grato e preferiu o simplismo do esquecimento ao fardo da gratidão.

É fácil condenar por ouvir dizer. É cômodo condenar e se livrar de quem no jogo duro da vida preferiu não ferir os princípios da dignidade e tudo suportou estoicamente, apenas lamentando os contorcionismos feitos por pretensos epicuristas.

Nada dura para sempre. Para sempre é muito tempo. Nem mesmo as mentiras, costuradas, ardilosamente, se mantém indefinidamente.

É no ocaso, onde só a verdade importa, que entre um balanço e outra da velha cadeira, lágrimas e sorrisos se mostrarão e só a desculpa do quanto se deixou enganar servirá de consolo.

Aí será tarde demais para esquecer ou tentar corrigir as injustiças cometidas em nome da justiça.

Existe alguma coisa mais bela do que a vida?

Inácio Augusto de Almeida é escritor e Jornalista

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Categoria(s): Crônica
domingo - 10/04/2022 - 13:46h

Foi assim…

Por Carlos Santos

Remexendo gavetas e papéis encontro uma velha foto amarelada pelo tempo. Não sei precisar data, mas acredito que início dos anos 90, no lugar em que mais fui feliz profissionalmente, onde mais aprendi, carregado de todos os sentimentos do mundo – a redação do Gazeta do Oeste.

Foto de autoria de Argemiro Lima, redação do Gazeta do Oeste, início dos anos 90)

Foto de autoria de Argemiro Lima, redação do Gazeta do Oeste, início dos anos 90

Tudo feito de paixão pelo que me arrebata até hoje: o jornalismo.

O registro não é de nostalgia, mas de realização plena por poder olhar para trás com encantamento e leveza, sem um pingo de amargura. Vendo o amanhã com os olhos que ainda brilham, lacrimejam até, por fazer a mesma coisa há quase 37 anos.

Nem me prendo às dores, dissabores, ingratidões e cicatrizes. Tudo vale a pena. Ser intenso, denso, exatamente o que sou, tem um preço que topei pagar até hoje. Posso pagar.

Há alguns anos numa prosa regada a café, em Natal, o amigo jornalista Vicente Serejo reproduziu para mim um diálogo que teve, à época dessa foto, com Canindé Queiroz, diretor-fundador do Gazeta do Oeste. Emocionei-me.

Entre uma baforada e outra em cigarros em série, Canindé resmungou que seu diretor de redação, eu, era muitas vezes indócil, batia de frente com ele na condução editorial do impresso.

– Então, por que você não o demite, Canindé? – indagou Serejo.

– Porque ele é apaixonado por isso aqui, cuida como se fosse dele. Como vou demitir?

Foi assim…

Carlos Santos é o criador do Canal BCS (Blog Carlos Santos) e ex-editor político, ex-editor-geral e ex-diretor de redação do extinto Gazeta do Oeste

*Texto originalmente publicado em meu Instagram pessoal no último dia 24 de fevereiro.

Leia também: Morre Canindé Queiroz e o jornalismo de extremos e extremado.

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Categoria(s): Comunicação / Crônica
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domingo - 10/04/2022 - 10:30h

Pinóquios

Por Marcelo Alves

É sabido que a construção de uma “consciência moral” se dá com quase todos nós desde muito cedo, a partir, entre outras coisas, de histórias/estórias que nos são narradas ainda quando somos crianças, quase todas elas enaltecendo valores como a verdade, a justiça, o amor, a amizade, a solidariedade e por aí vai.

Os clássicos da literatura infantil, da ficção infantil em geral, com suas belas estórias, enfrentando temas universais, às vezes até controversos, em linguagem lúdica, direta e acessível, são frequentemente as melhores aulas de moral e ética.

Ilustração Web

Ilustração Web

É nesse contexto, de literatura infantil “educativa”, que entram “As aventuras de Pinóquio” (“Le avventure di Pinocchio”), de 1883, do italiano Carlo Collodi (1826-1890).

Collodi, na verdade Carlo Lorenzini, nasceu e viveu em Florença. Foi escritor e jornalista. Lutou no exército de Giuseppe Garibaldi (1807-1882). Foi ser funcionário público.

Mas a grande reviravolta na sua vida veio em 1875, quando, para o nosso deleite, ele se volta para a literatura infantil. Publica bastante nesse gênero de literatura. Em periódicos e em livros. Vem a ser diretor da revista Il Giornale dei bambini. Morre, dizem de um aneurisma, na sua cidade natal, em 1890.

Já quanto às mui afamadas estórias do burratino Pinóquio, consta do guia “Tutto Letteratura Italiana” (De Agostine Editore, 2005): “Romance deveras excepcional é obra do florentino Carlo Collodi (pseudônimo de Carlo Lorenzini, 1826-1890). Autor da afortunada série de estórias de Giannettino (1876) e Minuzzolo (1878), em 1881 Collodi começou a escrever para a recém-nascida revista ‘Il Giornale dei bambini’ um romance em capítulos, a história de um boneco, que, a pedido dos jovens leitores entusiasmados, foi sendo construído até o fim de 1883.

Para concluir a estória, o autor foi obrigado a transformar o boneco Pinóquio em uma criança de carne e osso. Nesse mesmo ano, a estória completa sai em volume único com o título As aventuras de Pinóquio. Considerado indiscutivelmente uma obra-prima da literatura infantil, traduzido para uma centena de línguas, formalmente o livro repropõe, em uma linguagem simples e direta, o tema da iniciação à vida de uma criança, da sua gradual descoberta da realidade, nos aspectos positivos e negativos, e também o motivo da queda e do caminho de expiações até a ‘redenção’ final”.

O legado do boneco/fantoche Pinóquio – incluindo aí sua turma, Gepeto, o Grilo Falante, o Gato, a Raposa etc. – é indiscutível. Como dito no manual “Gli spilli fissano le idee – Letteratura Italiana 3” (Edizione Alpha Test, 2016), essa “obra de intenção pedagógica, pela vivacidade narrativa e pela clareza linguística, tornou-se um clássico da literatura universal”. De fato, como consta de uma versão (parcial) em “italiano lingua straniera” que possuo (“Pinocchio, il gato e la volpe”, Editore Hoepli, 2013), “Le avventure di Pinocchio. Storia di un burattino tornou-se a única obra-prima da literatura italiana dos anos 1800 a ter-se estabelecido a nível mundial, como testemunham as muitíssimas traduções, as numerosas imitações e sobretudo as afortunadas adaptações cinematográficas, entre as quais se destaca aquela de Walt Disney”.

Pinóquio foi e é muito – aliás, muito mais do que muito – interpretado, ilustrado, representado, adaptado, reescrito, imitado e tantas coisas mais. São tantos Pinóquios…

Com o tempo, Pinóquio virou um ícone da nossa cultura. Se originalmente um boneco de madeira que, após várias aventuras, vira uma criança normal; se, na fábula, alguém que, após altos e baixos, vence a preguiça e a superficialidade; ele hoje virou, entre nós, o seu nome pelo menos, sinônimo de mentiroso. Aquele cidadão, cujo “nariz só cresce”, ele é um “Pinóquio”, diz-se.

Nestes dias em que as mentiras, as “fake news”, são talvez o maior desafio à nossa democracia, seria muito bom a releitura da obra-prima de Collodi – ou leitura, já que duvido muito que esses mentirosos já tenham lido alguma coisa na vida. O original ou alguma das suas versões. Nunca é tarde para aprender uma verdadeira “educação moral e cívica”.

Pois, para quem não sabe, se na fábula educativa do burratino, ao final, o bem ludicamente vence o mal, originalmente o seu autor pretendia que a estória do mentiroso fosse uma tragédia. A coisa não terminaria bem para o boneco boquirroto. Acredito que essa tragédia prevalecerá, após os baixos de hoje e os altos de amanhã, inexoravelmente, para os nossos Pinóquios desumanos.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República e doutor em Direito (PhD) in Law) pelo King’s College London – KLC

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Categoria(s): Crônica
domingo - 10/04/2022 - 09:08h

Marcas da vida

Por Odemirton Filho

Os passos são lentos, bem diferente daquele andar firme doutros tempos. De vez em quando as conversas se repetem. Talvez, o silêncio represente um mergulho nos tempos idos; o resgate de lembranças; de saudades.  Família, pais

Eu, quando era criança, dava as minhas mãos para me sentir seguro, e os meus pais me conduziam cheios do vigor da juventude.

Agora, eu estendo o meu braço para apoiá-los. Enxergo no rosto do meu pai e da minha mãe as marcas da vida. Das lutas travadas, algumas vencidas. Os filhos foram encaminhados; os netos adocicam a chamada melhor idade.

Por vezes, falta-me paciência para compreender as limitações naturais dos meus pais. Daqui a alguns anos, eu precisarei dos braços dos meus filhos para me apoiar. Infelizmente, pensamos que a juventude é eterna. Quem não quer envelhecer, morra cedo, diz o ditado popular.

A maturidade traz experiência e, ao mesmo tempo, apresenta-nos a conta da idade. Não há como escapar. Sim, a cabeça pode ficar arejada, o espírito jovial, mas o corpo sentirá o peso da vida.

Antes, eu corria pra lá e pra cá, nessa correria desembestada da vida. Hoje, eu gosto de ouvir as conversas dos meus pais. Paro e escuto. São conversas sobre os seus sonhos; as traquinagens da infância; os arroubos da juventude. Ao ouvi-los, redimo-me um pouco das minhas inúmeras falhas, humano que sou.

Gosto de ver o brilho nos olhos de quem muito viveu, muito sofreu, muito amou. De quem tem experiência de vida para dar e vender; de quem tem as marcas da vida.

Queira Deus eu possa estar ao lado deles por muito, muito tempo.

E, principalmente, o tempo me ensine a compreendê-los e amá-los cada vez mais.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 10/04/2022 - 07:38h

Para quem agitamos os nossos ramos?

Por Marcos Araújo

Hoje é Domingo de Ramos, festa cristã celebrada no domingo anterior à Páscoa. A data relembra a entrada triunfal de Jesus na cidade de Jerusalém. Diz a tradição que as pessoas jogavam seus mantos à Sua frente e agitavam ramos de palmeiras, saudando em cânticos o Rei dos reis.

A passagem tem registro nos quatro evangelhos canônicos (Marcos 11:1, Mateus 21:1-11, Lucas 19:28-44 e Lucas 19:41).

Foto ilustrativa (Autoria não identificada)

Foto ilustrativa (Autoria não identificada)

No Oriente antigo, era costumeiro cobrir de alguma forma o caminho à frente de alguém que merecesse grandes honras. A saudação com ramos a Jesus foi um acréscimo, superlativando a honraria. Estes eram símbolos de triunfo e vitória na tradição judaica e aparecem em outros lugares da Bíblia (Levítico 23:40 e Apocalipse 7:9, por exemplo.

Bem sabemos que a acolhida festiva de Jesus dura muito pouco, pois uma semana depois já o crucificam. Do dia de sua entrada triunfal ao seu martírio, a tradição cristã denomina de Semana Santa, ou de Semana da Páscoa.

Desta episódica semana, dois enlevos: i) a festa da exaltação ao Cristo, Rei do universo; e, ii) a celebração da Páscoa. A palavra páscoa tem etimologia na expressão hebraica “pesach”, e na grega “pascha”, ambas significam “passagem”.

Na forma religiosa, as expressões podem ter diversos significados, tais como: passagem da morte para a vida; passagem de Deus para nos salvar; passagem da escravidão para a liberdade, enfim, a passagem pela qual o homem que se encontra neste mundo, passa para um novo céu e uma nova terra.

Pois bem. Voltemos aos ramos dos judeus…A elevação de galhos, a salva com agito, foi algo novo naquele tempo. Um excesso. Não demorou muito para serem baixados e transformados em instrumentos de açoite. Os galhos ainda estavam por lá, largados nas ruas de Jerusalém, quando voltaram a ser utilizados na sexta-feira, desta feita para chicotear Jesus.

A mudança comportamental dos judeus é inata à condição humana. Em um dia, estamos endeusando pessoas e situações, euforicamente agitando os nossos “ramos” do elogio fácil e da idolatria; no outro, a pulsão pela destruição, desconstituição e morte social (senão, física) do elevado.

Nas redes sociais, o ídolo de hoje pode ser o “cancelado” de amanhã. No mundo virtual, “curtir” algo ou alguém tem a simbologia de “agitar os ramos”, do mesmo modo que o inverso pode ser o ato tanatológico do “bloqueio”, ou do polegar invertido. Por isso, está justificado o suplício musical reportado por Gustavo Lima ao ser “bloqueado”.

Freud explica isto ao se apropriar dos nomes dos deuses mitológicos gregos Eros e Thanatos para exemplificar as teorias das pulsões, que explica a formação psíquica de todos os indivíduos, entre desejo de vida e de morte. A elevação é símbolo da vida; o açoite, a simbologia da morte.

Essas pulsões são visíveis nos escritos das redes sociais em qualquer temática. São extremadas as posições entre vida e morte. Nem merece parâmetros para o presente lembrar dois respeitosos estilos literários: a poetisa Cora Coralina, destacava sempre a vida, integrando nos seus versos o homem e a natureza; já o inigualável Augusto dos Anjos é o portal traduzido para quem adentrava na dor e nas sombras que conduzem à morte.

Voltando ao dia de hoje, é próprio das festas religiosas buscar no cotidiano ligações significativas, para que o vivido no contexto da religião encontre sua relação com a vida em seu cotidiano. É assim que Jesus institui a ceia. Ele faz isto na páscoa judaica, dando a ela um novo sentido, para o nosso cotidiano (“… todas as vezes que comerdes… e beberdes..”). Por isso, no dia de Ramos, faz sentido perguntar: para que, ou para quem, estamos agitando os nossos ramos? Ou, contra o que, e contra quem, temos deles feito uso?

Marcos Araújo é professor e advogado

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Categoria(s): Crônica
domingo - 03/04/2022 - 11:28h

Mil ecos

Por Marcelo Alves

Nunca neguei o meu imenso apreço pelo escritor  (1932-2016). Já escrevi, mais de uma vez, sobre o seu romance “O nome da rosa” (de 1980 e, no original, “Il nome della rosa”); misturando a coisa com o filme homônimo, de 1986, dirigido por Jean-Jacques Annaud e estrelado por Sean Connery, Christian Slater e F. Murray Abraham; e até sugerindo uma espiadela na série “O nome da rosa”, de 2019, uma nova produção italiana, alemã e francesa, que tem John Turturro como o protagonista Guilherme de Baskerville.Umberto Eco em biblioteca

Acho “O Pêndulo de Foucault” (1988) uma obra-prima da ficção, assim como recomendo os romances posteriores, “A ilha do dia anterior” (1994), “Baudolino” (2000), “A misteriosa chama da rainha Loana” (2004), “O cemitério de Praga” (2011), até o seu derradeiro “O número zero” (2015).

Mas a verdade é que há muitos Ecos. Além de romancista – esta, por sinal, com “O nome da rosa”, uma atividade já tardia do grande italiano e, em princípio, até diletante –, ele foi cronista/ensaísta, professor, bibliófilo, pesquisador incansável, filósofo, crítico de arte, linguista, semiólogo/semioticista e teórico da comunicação, entre outras coisas, tudo junto e misturado.

Eu mesmo topei com esses muitos Ecos em diversas fases da minha vida.

No mestrado, na PUC/SP, o semiólogo/semioticista era personagem frequente nas aulas do professor Paulo de Barros Carvalho, na cadeira de filosofia do direito/lógica jurídica. Não entendíamos muita coisa daqueles conceitos e fórmulas matemáticas, mas hoje, passado o sufoco e olhando para trás, vejo como divertido haver padecido naquele “inferno filosófico”.

De toda sorte, tenho aqui comigo o seu “Tratado geral da semiótica” (de 2005, como parte da conhecida “Coleção Estudos” da Editora Perspectiva), que pretende ser uma “verdadeira suma das principais abordagens do tema”, delineando “uma teoria global de todos os sistemas de significação e processos de comunicação”. Eu empresto o dito cujo para quem quiser sofrer também.

Ainda no mestrado e já no doutorado, fiz muito uso de outro livro de Eco, “Como se faz uma tese” (aqui numa edição de 2005, também pertencente à “Coleção Estudos” da Editora Perspectiva). É um livro “antigo”, reconheço. Com as novas ferramentas tecnológicas, pode até ter ficado datado.

Mas, nele misturando duas das duas principais ocupações, a de pesquisador e a de professor, Eco nos ensina como ninguém: “(1) o que se entende por tese; (2) como escolher o tema e organizar o tempo de trabalho; (3) como levar a cabo uma pesquisa bibliográfica; (4) como dispor o material selecionado; (5) como dispor a redação do trabalho”. E isso é muito.

Também topei muitas vezes com o Eco cronista e ensaísta. Uma obra, frise-se, vastíssima. “Quase a mesma coisa” (2003), “História da beleza” (2004), “História da feiura” (2007), “A vertigem das listas” (2009) e “História das terras e lugares lendários” (2013), todos livros mais recentes, fizeram e ainda fazem bastante sucesso.

E me lembro de haver lido, faz muitos anos, o seu “Diário mínimo” (1963), com crônicas e pequenos textos antes publicados na revista Verri, cheios de ironia e pastiches, para o deleite do então jovem leitor. Escrevo também crônicas e pequenos textos. Não tão bem quanto ele. Mas procuro mimetizar os bons.

Mas acho que – e sobretudo – me identifiquei com as ideias de Umberto Eco. Ou, pelo menos, elas me fizeram pensar. E falo das ideias que dele conheço, pois, de uma obra vastíssima, posso tratar apenas de uma ínfima parte.

São coisas como a advertência de Eco às pessoas para não acreditarem nas teorias conspiratórias e outras baboseiras místicas de estilo. Estas, mesmo intrigantes e sedutoras, são ficções. “Gororobas” culturais e ideológicas que não podem ser levadas de vero. Mas muitos as levam, porque, ao deixarem de acreditar na política, nas instituições, na ciência ou mesmo no Deus da tolerância, passam a acreditar em tudo que os outros, mal-intencionados ou apenas amalucados, lhes dizem.

Ou a célebre observação de Eco sobre o “idiota da aldeia”, aquele que ganhou voz com a Internet para espalhar suas platitudes e mentiras, que, desapercebidamente, nós acabamos aceitando. Lembrando que esse não foi um comentário de um “tio do zap”, irascível e reacionário. Mas, sim, a assertiva de um dos maiores teóricos da comunicação da Terra Redonda. Por isso talvez tenha assustado tanta gente. E certamente por isso devemos meditar muito sobre ela.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KLC

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 27/03/2022 - 11:30h

A última peça

Por Marcelo Alves

A última peça de teatro que eu assisti, se não estou enganado, foi “A morte acidental de um anarquista” (“Morte accidentale di un anarchico”, de 1970), de Dário Fo (1926-2016). A produção tinha direção de Hugo Coelho, com Dan Stulbach no papel principal.

Foi no Teatro Tuca, da PUC/SP, onde por coincidência estudei. Ainda me lembro dos atores entrando em cena cantando uma versão da música “Os alquimistas estão chegando” (e, no caso, eram os “anarquistas”), do nosso Jorge Ben Jor. Acho que foi no comecinho de 2017. Como o tempo passa e como a pandemia nos tirou alguns prazeres da vida (falo de ir ao teatro ou ao cinema).

A morte acidental de um anarquista (Foto: divulgação)

A morte acidental de um anarquista (Foto: divulgação)

O italiano Dario Fo, o autor da peça em questão, foi um bocado de coisas na vida. Estudou arquitetura. Recusou a guerra ao lado dos fascistas (seus pais eram da Resistência). Foi a partir da arquitetura, apaixonando-se pela cenografia teatral, que Fo “pôs o pé da profissão”, como diria o nosso Milton Nascimento. A profissão de artista como um todo, já que Fo foi ator, comediante, cantor, compositor, cenográfo, diretor de teatro, dramaturgo e por aí vai.

Esquerdista, talvez anarquista ou mesmo apenas anti-establishment, Fo meteu-se até com a política (que não deixa de ser uma forma de “arte”, manejada, para o bem ou para mal, por grandes ou pequenos “artistas”). Mas foi como dramaturgo, claro, que Fo se consagrou. Foi muito popular em vida. Traduzidíssimo, provavelmente chegou a ser o autor mais representado no palco do mundo. “Mistero Buffo” (1969), “Morte accidentale di un anarchico” (1970) e “Non Si Paga! Non Si Paga!” (1974) foram e são sucessos retumbantes. Ele arrebatou, merecidademente, o Nobel de literatura de 1997.

Na verdade, como dito no manual “Gli spilli fissano le idee – Letteratura Italiana 3” (Edizione Alpha Test, 2016), Fo é o criador de uma obra agudamente satírica e profana – anticlerical mesmo, numa Itália profundamente católica –, “que se inspira em questões históricas, políticas e atuais”.

E, como completa o guia “Tutto Letteratura Italiana” (De Agostine Editore, 2005), “definindo-se como ‘palhaço do povo’, ‘comediante itinerante da arte’, Fo liga-se à tradição da comedia dell’arte para recriar um espetáculo aberto, capaz de envolver o público, graças a uma comédia que faz uso de misturas dialetais e invenções linguísticas, interpretadas com força histriônica e com uma mímica irrefreável”. Acrescento: há muitos monólogos e improvisações no teatro de Dario Fo.

É nesse contexto, que mistura história, política, fantasia e crítica inteligente, que entra a peça “A morte acidental de um anarquista”. Antes de tudo, ela parte de um fato real, o famoso “Atentado da Piazza Fontana”, de 1969. Um ato terrorista, em Milão, em que uma bomba acaba matando quase duas dezenas e ferindo quase uma centena de pessoas. A ação foi atribuída inicialmente a supostos anarquistas.

Um deles acaba morrendo/suicidando-se – alegadamente teria caído/pulado do prédio da polícia – durante o interrogatório. Isso gera ainda mais violência e vingança. De toda sorte, posteriormente, o “Atentado da Piazza Fontana” é atribuído a grupos de direita, que queriam fomentar a repressão. O resto é mistério da história.

Basicamente (não vou fazer spolier), a peça visa reinterpretar a coisa, partindo da “morte acidental do anarquista”, com muita ironia e perspicácia. Na produção que assisti, Dan Stulbach faz o papel de um louco, cuja patologia é fingir ser outras pessoas, detido então por falsa identidade.

A confusão na delegacia está feita. O louco aproveita a deixa e se passa por muita gente, inclusive pelo juiz da investigação da “morte acidental” do anarquista. O juiz-louco, que assume várias identidades, engana a todos. A imprensa e a população tomam partido. Ele desmonta o poder. “Mas o que teria se passado ali realmente?”, acho que ainda perguntamos.

“A morte acidental de um anarquista” é uma obra com mais de cinquenta anos. Mas, como um clássico da literatura, é ainda bastante atual. O ano que assisti à produção foi 2017. Tínhamos, aqui no Brasil, os nossos juízes. Ainda me lembro das improvisações.

Desde a entrada em cena dos “anarquistas” ao som de Jorge Ben Jor às manifestações sobre o nosso juiz-herói de então. O ano agora é 2022. E hoje perguntamos, entre nós, sobre a nossa história: “o que, de fato, aconteceu?”, “que peça está faltando?”.

Marcelo Alves Dias de Souza é Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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domingo - 27/03/2022 - 09:00h

O jornaleiro

Por Inácio Augusto de Almeida 

Todos os dias o menino passava com uma ruma de jornais em frente a um quartel no centro de Belém na Praça da República.

Ali parava para apanhar algumas mangas e descansar do peso dos jornais. jornaleiro

Ficava chupando mangas sentado no chão embaixo de uma mangueira. Nem das belas estátuas se dava conta.

Aquele garoto despertou a curiosidade de um militar. E por curiosidade, quase sempre o militar atravessava a rua e ficava a conversar com o jornaleiro que mal conseguia falar, tal a maneira como comia as mangas.

O garoto era o tipo amazônico com ascendência indígena sem nenhuma miscigenação. Já o militar, um nordestino típico.

Aos poucos o militar ficou sabendo que o menino estudava e morava num bairro da periferia onde os alagamentos eram constantes. A casa era de madeira; ao invés de uma rua, tábuas servindo de ponte no alagado onde tinham feito o casebre.

Isto lembrava ao militar uma casinha de palha…

Naquele dia observou muitos jornais e resolveu perguntar quantos o menino já vendera naquela manhã que prometia ser chuvosa.

Sem levantar os olhos, sem nada falar, o jornaleiro fez o V da vitória.

Com a chuva ameaçando cair, muito certamente não venderia mais nenhum jornal naquele dia

– Você quer vender todos estes jornais bem ligeirinho?

O jornaleiro deu um pulo, levantou-se e balançou a cabeça.

– Faça o seguinte. Limpe as mãos, pegue os jornais e vá para a esquina. De lá venha gritando AUMENTO DOS MILITARES, AUMENTO DOS MILITARES.

Quando o menino saiu para a esquina o militar atravessou a rua e ficou no portão de entrada do quartel.

Logo começou a ouvir o grito do jornaleiro anunciando o aumento dos militares.

Olhou para um colega e perguntou se ele tinha escutado o jornaleiro anunciar a manchete do jornal. Um outro militar disse ter ouvido alguma coisa como AUMENTO DOS MILITARES

Antes do jornaleiro passar em frente ao portão já havia vários militares com o dinheiro na mão.

E foi um vapt-vupt. Faltou jornal para tantos compradores.

Quando o último jornal foi vendido o menino com os olhos cheios de medo e uma voz baixinha perguntou:

– E agora?

 – Agora? Agora vá embora, ligeiro, não olhe para trás e passe um tempão sem andar por aqui.

Não sabia porque estava nesta viagem de transporte de estudantes do projeto Rondon a se lembrar desta passagem da sua vida. Voava de Santarém para Parintins

Lembrava e ria da cara dos colegas procurando no jornal a notícia que não existia.

Resolveu ir ao banheiro do C-47 que os americanos, após a guerra, tinham doado ao Brasil. E na passagem para o banheiro viu entre os passageiros, universitários que estavam no projeto Rondon, um rosto que lhe pareceu familiar.

Na volta encarou aquele estudante que também o olhava com simpatia e um sorriso bem aberto.

– Gostou de ter vendido todos os jornais?

– Foi a mais rápida venda de jornais que fiz.

– Qual curso está fazendo?

– Medicina.

Em Brasília Geisel era o Presidente da República e nas universidades meninos inteligentes, através do estudo, faziam cursos que mudariam completamente as suas vidas e a dos seus familiares.

Uma enorme alegria dominou por completo aquele piloto. E um grande abraço aconteceu. Lágrimas rolaram nas faces e nos corações daqueles dois homens.

E ainda existe quem diga que a felicidade não existe.

Inácio Augusto de Almeida é escritor e Jornalista

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terça-feira - 22/03/2022 - 23:10h
Tensão

Horas de ansiolíticos

Aumentará muito o consumo de ansiolíticos nas próximas horas. Quarta-feira taí. Tudo pode acontecer, inclusive nada.

Em todas as direções existe tensão na política do RN.

Certas desistências são engatilhadas, sonhos desfeitos.

Dormirei em paz.

Cuide-se.

Boa noite.

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domingo - 20/03/2022 - 14:32h

Exemplo de gratidão de um mossoroense

Por Ney Lopes

Recebi gratificante mensagem do pesquisador Francisco Paulo Ramon Rocha Paiva, 26, natural de Mossoró, RN, sobre um gesto político e humano do meu falecido filho Ney Lopes Jr, quando do exercício de mandato de vereador em Natal. Não conhecia o fato relatado, nem o missivista.

A seguir, a transcrição da mensagem:gratidão, flores

“Sr. Ney Lopes, o ano era 2018, eu estudante mossoroense ouvi falar de um vereador em Natal que valorizava a ciência e a tecnologia. Eu, natural de Mossoró, com pesquisas na área oncológica infantil, a qual tinha sido matéria nos Estados Unidos e em Portugal. Desenvolvi o projeto de lei chamado ‘Super K vs câncer’, que instituía aulas de reforço parta crianças portadoras de câncer, que se ausentassem do ambiente escolar por causa do tratamento oncológico. Eu era de Mossoró e o vereador de Natal, Ney Lopes Jr. Em poucos minutos de ligação falei sobre o projeto e o mesmo se apaixonou pela causa. A princípio tive medo, pois sou residente em Mossoró e o tal vereador em Natal. Eu nunca o havia visto. Iria passar um projeto de tão grande importância logo para um desconhecido? Mas senti no meu coração que ele era uma pessoa boa. Pois bem, o projeto que eu enviei para Ney Jr, o qual nunca tive oportunidade de conhecer em vida, mas somente por ligação e vídeo chamada, foi votado e aprovado por todos os vereadores da Câmara de Natal. Logo um mossoroense fazer essa proeza. Dias depois vou ler o projeto e me espantou a iniciativa do vereador. No texto ele destacou que a iniciativa foi de um pesquisador mossoroense chamado Francisco Paulo Ramon Rocha Paiva. Ele me concedeu todos os créditos da pesquisa e da aprovação do projeto.“Foi aí que entendi que aquele vereador era uma pessoa boa. Hoje já tenho outras lutas. Mas sempre com o sentimento de gratidão a Ney Lopes Jr. No mundo existem conhecidos que não devemos confiar. E existem estranhos que Deus coloca em nosso caminho para que possamos lembrar todos os dias, que devemos acreditar sempre na humanidade.“Não pude conhecer seu filho em vida, porém sou grato e rezo todas as noites por ele. Obrigado por ele ter reconhecido o meu trabalho e empenho. Se vivo fosse com certeza estaria comigo nessa nova campanha que faço com a Covid. Ele me deu uma lição, que nunca esqueci, de que nunca devo desistir”.

Realmente, na atividade pública Ney Jr reconhecia e incentivava os talentosos. Em 2010, através da lei Nº 0306/2010, propôs a criação em Natal, do Banco de Talentos para identificação de nova geração de especialistas e gestores, visando cadastrar profissionais qualificados e identificação de nova geração de especialistas e gestores em diversas áreas, com formação multidisciplinar.

Ele partia do princípio de que o talentoso necessita apenas de oportunidade. O mossoroense Francisco Paulo Ramon Rocha Paiva é um dos potiguares qualificados, que Ney Jr prestigiou em vida, sem conhece-lo pessoalmente.

Ele inventou o primeiro game no mundo para crianças com câncer, que já mereceu destaque em matérias de telejornais nos Estados Unidos e Portugal. Alunos do Curso de Jornalismo da UFRN produziram um documentário sobre o ‘Super K vs Câncer’, denominação dada ao jogo infantil.

Inspirado nessa inovação, o vereador Ney Lopes Jr aprovou legislação para que o poder público municipal de Natal ofereça aulas particulares gratuitas aos alunos em tratamento contra o câncer e assim evite prejuízos educacionais aos estudantes.

Paulo Paiva concluiu outra pesquisa, denominada “Dr. Covid”, que é um aplicativo para garantir de forma rápida o agendamento de atendimento ambulatorial a pessoas que tiveram Covid-19 e ficaram com sequelas.

Este artigo visa unicamente estimular a classe política, para que estimule a descoberta de talentos. Fica a sugestão para que o Prefeito Álvaro Dias (PSDB), com base na lei vigente Nº 0306/2010, instale o “Banco de Talentos”, de Natal.

Ao pesquisador Francisco Paulo Ramon Rocha Paiva o agradecimento pelo seu gesto de grandeza e gratidão, ao relembrar a ação legislativa do Vereador Ney Lopes Jr, que hoje existe na saudade.

Como escreveu Mario Quintana, a saudade “é o que faz as coisas pararem no tempo” e recordá-lo sempre.

Ney Lopes é advogado, jornalista e ex-deputado federal

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domingo - 20/03/2022 - 12:38h

Quinze ações que deixam a vida mais tranquila

Por Herbert Mota

Se é verdade que o excesso de obrigações, especialmente em razão do tempo, priva-nos de determinadas satisfações e da prazerosa companhia dos amigos, ainda que virtualmente, não menos verdadeiro é, também, a máxima que dize que “tempo é uma questão de prioridade”.saude-mental-de-adolescentes-e-jovens_hero-bouncer

Na realidade, a cada dia temos recebido menos contatos pessoalmente, menos telefonemas, menos e-mails, tudo isso, notadamente, em função do crescente surgimento e utilização de novos sites de
relacionamentos, como Facebook, WhatsApp, Twitter, Instagram, etc., o que é uma pena.

Vivemos num mundo com excesso de informações. Isto é fato.

Para se ter uma noção do quanto somos bombardeados com milhões de notícias ininterruptamente, uma criança de dez anos, atualmente, recebe mais notícias durante um dia, do que recebia o imperador do poderoso império Romano.

E é exatamente o excesso de informações que nos dá a falsa impressão de que o tempo está passando muito rápido. Mas, o que podemos fazer para não sermos totalmente contaminados pelo excesso de informações e termos, em contrapartida, uma vida mais tranquila?

Confesso que não sei se existe uma fórmula ideal para se levar uma vida tranquila. No entanto, existem estratégias que se adotadas no dia a dia podem surtir efeitos extraordinários para uma vida mais tranquila, a saber:

1. em final de semana, desative os seus celulares e utilize o telefone fixo;

2. tenha um celular privativo, cujo o número repasse apenas para pessoas mais próximas;

3. não assista os telejornais das grandes redes de televisão; dê preferência aos telejornais da Rede
Vida, TV Século 21 e/ou Canção Nova, que transmitem praticamente as mesmas notícias, porém
sem o apelo sensacionalista;

4. limite seu acesso às redes sociais: preferencialmente, trinta minutos pela manhã, e igual período
ao meio dia e à noite;

5. nunca atenda ligação ou mensagem quando estiver dirigindo, em reunião, em audiência ou mesmo quando conversando com alguém;

6. para contatos pessoais e profissionais, sempre que possível, dê preferência ao telefone às redes
sociais;

7. mantenha em atividade um hobby, pelo menos uma vez por semana;

8. pelo menos uma vez por semana, encontre amigos para um bom papo, preferencialmente, regado a uma boa bebida socialmente degustada;

9. pelo menos uma vez por semana ligue para um amigo só pra conversar coisas boas e bobagens
importantes;

10. todo dia mantenha contato com meus filhos e, ao menos uma vez por semana, veja, abrace, beije e converse com seus netos;

11. mantenha o hábito de conversar muito, muito com sua esposa, companheira, namorada;

12. nunca dê um SIM ou um NÃO que possa te causar constrangimento; seja sempre sincero;

13. não leve trabalhos e assuntos profissionais para casa, e vice versa;

14. vá à Casa de Deus ao menos uma vez por semana;

15. faça uso permanente das palavras “por favor”, “obrigado”, “com licença”.

Herbert Mota é advogado e ex-juiz do TRE/RN

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domingo - 13/03/2022 - 13:30h

Homenagem póstuma

Por Ney Lopes

Na próxima terça feira (15), a Câmara Municipal de Natal homenageará postumamente o ex-vereador Ney Lopes Jr, falecido em 30 de novembro passado, com a instituição de Comenda com o seu nome, em homenagem ao consumidor.

Ney Júnior foi vereador por dois mandatos em Natal, era jornalista e advogado (Foto: Elpídio Jr./arquivo)

Ney Júnior foi vereador por dois mandatos em Natal, era jornalista e advogado (Foto: Elpídio Jr./arquivo)

Durante sua vida, o homenageado especializou-se neste tema de defesa do consumidor e dirigiu o PROCON estadual e municipal de Natal.

Ney Jr completaria 48 anos na próxima sexta feira, 25 de março.

Nascido em Natal graduou-se em Direto pela Universidade de Brasília (UNB) e jornalismo pela UNP, em Natal.

Especializou-se em temas ligados ao direito econômico, sobretudo as questões ligadas a proteção legal do consumidor.

Concluiu Mestrado em Direito Econômico Internacional na Universidade “Washington College of Law – Washington, DC, EUA”.

Fez extensão universitária na “George Washington University”, na capital americana, sobre temas políticos e econômicos da América Latina.

Estagiou no BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO (BID), em Washington DC).  Convidado para função permanente nesta instituição, renunciou com o propósito de voltar à cidade de Natal e exercer a sua vocação política.

No período em que residiu em Brasília estudou Direito Legislativo Municipal, analisando e pesquisando na sua integralidade o Processo Legislativo, Regimento Interno e Lei Orgânica Municipal.

Usou essas ferramentas durante dois mandatos de vereador na Câmara Municipal de Natal, onde teve o “recorde” de aprovação de 52 leis, todas elas em plena vigência.

Presidiu a Comissão de Legislação, Justiça e Redação Final e a Comissão, que coordenou os trabalhos iniciais do Plano Diretor de Natal.

Presidiu por um período a Câmara Municipal de Natal.

Foi prefeito constitucional em exercício de Natal, exercendo o cargo até a investidura do prefeito Carlos Eduardo, em 2017, a quem deu posse e saiu aplaudido do Palácio Felipe Camarão.

No final de sua vida, Ney Jr foi acometido duas vezes de Covid, duas pneumonias, internações em UTI

Faleceu repentinamente de enfarte agudo do miocárdio, no dia 30 de novembro de 2021, cuja causa é atribuída aos males que sofreu.

Ney Lopes é jornalista, advogado e ex-deputado federal

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  • Repet
domingo - 13/03/2022 - 07:42h

Paisagem mossoroense

Por Marcos Ferreira

Ontem, cerca de meio-dia, lá estava ela no canteiro da João da Escóssia, logradouro este que se tornou uma espécie de Quinta Avenida de Mossoró. Mulher jovem e franzina, orçando pelos vinte anos, pele clara, olhos grandes e tristes; vestígios de uma adolescência pobre ainda perceptíveis no rosto assustadiço. Além desses aspectos, do cabelo curto e do corpo longilíneo, exibia a barriga de uns sete meses de gestação. Talvez até já saiba o sexo da criança, ou das crianças.

Avenida João da Escóssia, que corta o bairro Nova Betânia em Mossoró (Foto: Prefeitura de Mossoró/Divulgação)

Avenida João da Escóssia, que corta o bairro Nova Betânia em Mossoró (Foto: Prefeitura de Mossoró/Divulgação/arquivo)

A exemplo de outros que se arriscam no comércio itinerante daquela rua, ela vendia garrafinhas de água mineral no semáforo. Tinha ali do lado, à pouca sombra de uma árvore, um recipiente de isopor. Por estar sozinha, é possível que seja mais uma futura mãe solteira. Considerei-a novata naquele modelo de “empreendedorismo”, como apregoa a política criminosa do Grande Percevejo.

Fico pensando no que leva uma tão jovem mulher em estado interessante (grávida) a se submeter a tal expediente, exposta a uma temperatura e condições tão adversas. Naquela fase, àquela altura da gravidez, fosse outra sua a realidade familiar e, sobretudo, econômica, ela estaria em casa, resguardada.

Fui e voltei da residência de Natália, minha noiva, e nem na ida como na volta presenciei nenhum gentil motorista abaixar um vidro e adquirir uma daquelas garrafinhas d’água.

Eu, cujo transporte é uma moto, também não comprei. Mas aquilo (vai o lugar-comum) ficou martelando na minha cabeça. Quilômetros depois, pensei que poderia ter pegado uma garrafa, embora não fosse cômodo levá-la, posto que não tinha uma sacola, ainda menos uma mochila. Dar algum dinheiro a ela, como dei a alguns pedintes no semáforo, poderia constrangê-la, quiçá ofendê-la.

Não. De modo algum. Aquela futura mãe não estava ali a pedinchar. Não era mendiga. Não ao menos àquele instante. Digo isto porque, infelizmente, conheço um rapaz que fazia malabarismos com bastões de fogo no semáforo e hoje vive mendigando.

Decerto porque o preço do querosene (dos combustíveis, enfim) tornou-se absurdo. Já a moça tentava, através daquele “empreendedorismo” de centavos, obter recurso para si e para a vida, ou vidas, que carrega em seu ventre.

Preciso retornar à João da Escóssia e comprar a água da buchudinha. Senão não ficarei em paz com minha consciência. Sei que as coisas estão difíceis para a maior parte dos brasileiros, todavia (cada qual dentro das suas posses) podemos fazer algo mais pelas pessoas que se encontram, a exemplo daquela gestante, em condições tão vulneráveis. Amoleçamos os nossos corações empedernidos.

Sinto falta das entidades e pessoas caridosas de Mossoró. Em dezembro, ao contrário dos outros meses, existe toda uma publicidade das ações dos bons samaritanos. Ora não vejo, por exemplo, distribuição de cestas básicas em parte alguma desta urbe. Será que os necessitados só têm fome no período natalino? Ou, de maneira mais específica, na véspera da noite de Natal? Penso que essa caridade datada e ostentatória fere e desaponta o mais ilustre aniversariante do dia 25 de dezembro.

Pois é, o rapaz que fazia malabarismos com bastões de fogo agora pede esmolas nos sinais de trânsito, em meio a vários outros miseráveis. Trocou os bastões incendidos por um tosco cartaz de papelão com uma mensagem de súplica. É um moreno pequenino, trejeitoso, iletrado, de vinte e poucos anos, possivelmente oriundo de outra cidade nordestina. Criatura sem eira nem beira, como se diz.

Apesar disso, da lástima social e familiar, pois ele vive sozinho na terra de Santa Luzia, o malabarista é simpático, sempre propenso a sorrir. Sim, agradece os trocadinhos que recebe de mão piedosa com um grande sorriso, umas breves palavras que nunca compreendo e uma pequena mesura com a cabeça. Não tem onde morar. Algumas noites, quando não chove, o que é comum por aqui, ele dorme em bancos de praça, ao relento, ou sob marquises de lojas, nas calçadas do Centro.

Dói saber que certos indivíduos que se julgam ricos, ou que de fato o são, não raro tratam tais pessoas desprotegidas feito esse rapazinho malabarista com grosseria, hostilidade, intolerância, apenas em virtude de o pobre coitado lhes “importunar” com pedidos de auxílio. Aliás, a grosseria, a hostilidade e a intolerância parecem ser características dessas pessoas que imaginam ter o rei na barriga.

A intolerância, sobretudo esta, é mais exercitada e encontrável em nosso meio do que supomos. É algo que não atinge unicamente os mais precisados e desprotegidos. Vejam, acaso não saibam, o que ocorreu esta semana com o poeta Aluísio Barros, professor de literatura aposentado da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Aluísio foi objeto de denúncia à Polícia Ambiental porque seus galos têm o inadmissível hábito de cantar. Até parece piada, mas só parece.

Aluísio Barros se defendeu no Facebook:

“Imagine que o vizinho do outro lado da rua denunciou à Ambiental os meus galos por cumprirem o seu papel natural de fazer nascer a manhã. Vão prender os galos? Ou vão silenciá-los com chumbo, veneno ou pólvora? PS.: não sei o que fazer. Não sou bruto: sou poeta”. Enquanto isso, salvo exceções, existem pessoas que todos os dias estupram nossos ouvidos com músicas de péssima qualidade.

No meu caso, diferentemente do que ocorre com o vizinho intolerante de Aluísio, o canto dos galos é canção de alta voltagem poética. Gosto de ouvi-los, próximos ou distantes, a qualquer hora do dia ou madrugada, quando me encontro a escrever ao som dos pássaros, do coaxar dos sapos ou da sinfônica dos grilos. Há ainda os cães que latem ao redor, os gatos que se amam sem pudor nem discrição, dando notícia de sua inconfundível libido para quem quiser escutar e achar ruim.

Que tempos são estes, torno a indagar, em que cuspidores de microfone, que se vendem por astros e estrelas, seguem agredindo os nossos ouvidos com dejetos sonoros, estelionato musical comerciado por arte? Já os galos do poeta Aluísio Barros agora sofrem censura, têm o seu direito de cantar ameaçado. A intolerância mostra as garras e a poesia gregoriana dos galos virou caso de polícia.

Ofereço minha solidariedade a Aluísio, sobretudo aos seus cantores emplumados. Onde já se viu uma coisa dessas, senhoras e senhores? Galos sob o iminente risco de prisão, de serem banidos para longe do seu dono ou serem abatidos tão somente por desempenharem sua legítima função de cantar. Só mesmo no inacreditável País de Mossoró, cujo povo pacato e acolhedor repeliu o temido bando do fora da lei Lampião e, segundo a lenda, enterrou o cangaceiro Jararaca ainda vivo.

Torço que o vizinho incomodado do poeta amoleça o coração, e retire a queixa contra as referidas aves. Ao invés de perseguir esses bichos, proponho que ofereça alguma fraternidade aos cidadãos que procuram de algum modo sobreviver nos semáforos da João da Escóssia e de outros pontos da nossa província. Querer proibir que um galo cante é uma intolerância tão injustificável quanto ridícula.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 06/03/2022 - 13:40h

3X4 PRETO E BRANCO

Por Inácio Augusto de Almeida 

De dentro do ônibus, já quase noite, avista ao longe um avião que passa com destino ao Norte.

Talvez para Fortaleza ou Belém.

Olha para os passageiros e vê crianças comendo biscoitos baratos. Na parada para o almoço ficaram brincando com uma velha bola para passar o tempo e espantar a fome. Onibus

Olhou buscando o avião e só viu as luzes, azul e vermelha, na ponta de cada asa.

O sol, entre nuvens vermelhas, anunciava a chegada da noite.

A ponte, que separa Juazeiro de Petrolina, tinha ficado para trás e imaginava chegar a Fortaleza manhã cedo.

Sabia que o avião, se o destino fosse Fortaleza, logo estaria chegando.

Acomodou-se na cadeira do ônibus e disse para si que apenas mais uma noite e também estaria em Fortaleza.

Fechou os olhos, mesmo sabendo que não conseguiria dormir.

Conseguiu apenas um mergulho nas suas memórias.

E lembrou-se da concessionária de carros de propriedade do seu pai. Da grande festa na mansão, quando o irmão se elegeu deputado federal. Era ainda um meninote…

Nunca se esqueceu da chegada das novas marcas de carros e de concessionárias mais amplas e modernas. Seu pai falava de uma tal concorrência, mas naquela idade não compreendia o que aquelas mudanças iriam significar na vida de toda a família.

Não conseguia dormir. Chegava mesmo a ouvir o choro do pai, da mãe e do irmão, principalmente do irmão, no dia que não conseguiu renovar o mandato de deputado federal. Recordações…

Do avião conseguiu ver o ônibus e lembrou-se da escola pública onde estudava no período noturno após deixar o trabalho de ajudante de pedreiro na construção de uma ponte. E da caminhada da ponte até a escola, por não ter dinheiro para pagar a passagem do ônibus, não tinha como esquecer.

Estudava depois que chegava da escola e, já quase 10 horas da noite, para vencer o sono e o cansaço, colocava os pés dentro de uma bacia com água.

O belo sorriso da aeromoça, a lhe perguntar se preferia camarão à francesa ou escalopinho, para o jantar, e se desejava vinho ou cerveja, o libertou daquelas tristes lembranças.

A noite caiu e trouxe a escuridão. Os meninos já tinham acabado as bolachas e perguntavam se estava perto do ônibus parar.

Lembrou-se da mesa sempre farta do seu tempo de garoto e dos bons restaurantes onde seu pai parava quando das viagens de puro lazer.

Não sentia fome. Aquele avião que passou lhe trouxe saudades da melhor fase da sua vida. Uma época onde tudo era lindo e maravilhoso. Tempo em que para passar de ano no colégio nem precisava estudar. Escola de mensalidade caríssima e de professores compreensivos.

Riu quando lembrou-se de como conseguiu driblar o vestibular com um outro estudante, já no último ano do curso, fazendo as provas em troca de um dinheirinho.

As crianças faziam uma festa porque o ônibus parou.

Desceu, só para estirar as pernas. E olhou para o lindo céu estrelado. Não sentia a menor vontade de comer. As emoções…

Voltou ao ônibus e finalmente conseguiu dormir um pouco.

Ao descer na rodoviária, em Fortaleza, toma um susto.

Dá de cara com o estudante que fizera o vestibular por ele.

– Antônio, quanto tempo?

– Francisco, você aqui, nesta rodoviária?

– Estou indo para Uruoca. Lá tenho uma rede de supermercados. Larguei o direito e me dediquei ao comércio.

Antônio conhecia Uruoca com seus 11 mil habitantes e disse que tinha chegado ontem a Fortaleza, vindo de Brasília. Como não tinha avião para Massapé, ia ter que encarar o ônibus. Era dono de uma fábrica de calçados etc.

Francisco lembrou-se do avião que avistara de dentro do ônibus.

Antônio reclamava do ar condicionado do hotel onde dormiu.

No Whatsapp de um velho, que também esperava um ônibus, uma música que falava ter a vida duas escadas…

Francisco e Antônio despediram-se com um abraço e cada um pegou seu ônibus.

Inácio Augusto de Almeida é escritor e Jornalista

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domingo - 06/03/2022 - 05:30h

Um mamute contra um jabuti

Por Marcos Ferreira

Pensei em afagar o ditador Vladimir Putin (só pensei) com a denominação O Senhor da Guerra, título da obra do célebre escritor britânico Bernard Cornwell. Mas, reparando direitinho, vejo que ao russo em questão melhor se aplica esta variante: O Senhor da Barbárie. Pois é, eu também, a exemplo da maior parte do planeta, estou puto com Putin. Perdoem o trocadilho. O ex-Esquilo Secreto do KGB está há mais de vinte anos no comando da Rússia e não deve sair tão cedo.

Desde 24 de fevereiro, quando a Ucrânia foi invadida, a matança não para. Falou-se num único e duvidoso cessar-fogo, porém a guerra acumula estragos irreparáveis. Segundo algumas agências de notícias, cerca de dois mil civis ucranianos já morreram nestes onze dias de bombardeios. Por sua vez, Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, diz que nove mil soldados russos foram mortos.

Putin é o líder russo numa guerra que parece muito desigual (Foto: Reuters)

Putin é o líder russo numa guerra que parece muito desigual (Foto: Reuters)

Como se percebe, além das ofensivas militares, está em curso a guerra da propaganda, uma disputa midiática que busca intimidar contendores e sensibilizar o mundo tanto para um lado quanto para o outro. A Ucrânia, especialmente, maldiz a omissão da Otan. Entrementes, como se lutasse uma guerra justa, de igual para igual, a Rússia usa e abusa de sua realidade paralela dos fatos, tentando provar à humanidade que eles são os mocinhos e os ucranianos são homens maus.

Enquanto isso, traiçoeiro e frio como a própria Sibéria, Putin não esquenta a cabeça com pouca coisa. Até porque nem o Sol brilha tanto em Moscou quanto o mais novo melhor amigo do nosso Grande Percevejo, este que até pouco tempo vivia osculando os possuídos do ianque Donald Trump. Ou seja, largou o loiro oxigenado. Agora, portanto, o menino dos olhos do Pateta brasileiro é Putin.

O Grande Percevejo, sem querer ofender as mulheres de vida “fácil”, é um tipo de messalina de luxo que deseja cair nas graças de Putin. Tem um fraco irreprimível por homens poderosos. Seu (dele) deslumbramento perante o bufão Donaldo Trump era algo tão obsceno a ponto de a baba escorrer no canto daquela boca de caçapa. Contudo Trump se deu mal nas urnas e aí o Nosferatu da Casa de Vidro mais que depressa se bandeou para o lado do neoczar e filhote da Guerra Fria.

No Brasil, além do Grande Percevejo, temos uma ala da esquerda sofrendo com uma forte crise de consciência. Até aqui, pelo que eu sei, o presidenciável Lula (para citarmos o líder máximo do Partido dos Trabalhadores) não emitiu uma só nota, sequer uma vírgula, condenando, enfaticamente, a invasão à Ucrânia. Muito menos reprovou o camarada Vladimir. Não com todas as letras.

Não é novidade alguma que as superpotências bélicas e econômicas, sobretudo bélicas, gostam de treinar a pontaria contra nações menores ou militarmente insignificantes. A história do mundo, como aquele jogo de tabuleiro War, está cheia de casos emblemáticos, desde os vikings a George W. Bush. Os Estados Unidos da América, por exemplo, têm grande know-how nessa prática execrável. Que o digam, entre outros, Coreia, Vietnã, Iraque, Afeganistão, Líbia e Somália.

Outra coisa que me revira o estômago é a hipocrisia em escala planetária. Pois os Estados Unidos, autoproclamados xerifes do globo terrestre, casam e batizam, pintam o sete e bordam o oito, fazem o mundo de gato e sapato e a suposta União das Nações Unidas (ONU) apenas faz vista grossa. A tal Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é mais inútil ainda; não faz patavina.

Em 2003, quando os americanos explodiram Bagdá, capital do Iraque, matando sete mil civis apenas no primeiro dia de bombardeio, tais organizações inúteis não fizeram coisa alguma. Ao todo, ao longo daquela sangrenta operação intitulada “Choque e Pavor”, entre homens, mulheres e crianças, os soldadinhos carniceiros do Tio Sam assassinaram quase um milhão de civis. Abomino inteiramente a invasão russa à Ucrânia, no entanto não vi àquela época tanta comoção como agora.

Ao contrário da Rússia, se estou correto, os Estados Unidos nunca sofreram nenhum tipo de sanção por invadirem outras nações. Nunca foram acusados pela ONU por crimes de guerra. Muito menos, como ora se dá com a Rússia, foram banidos do sistema de transações financeiras. Americanos jamais foram expulsos de universidades, ou a Fifa os puniu, excluindo-os de uma Copa do Mundo.

Em 1994, enganada por um certo Memorando de Budapeste, a Ucrânia concordou em entregar à Rússia cerca de mil e seiscentas armas nucleares oriundas da extinta União Soviética. Isso em troca de um frágil tratado de paz e da promessa de que a Rússia jamais invadiria a Ucrânia. Ninguém, entretanto, exige, nem ao menos sugere, o desarmamento nuclear dos Estados Unidos e da Rússia. Juntos, só esses dois países possuem armamento nuclear para destruir o planeta dezesseis vezes.

— Saddam é mau! — gritava o Tio Sam.

Hoje, após a tragédia da Segunda Guerra, que deixou um rastro de setenta milhões de mortos, o mundo se converte outra vez num barril de pólvora. Isto é, num gigantesco paiol de armas nucleares sob o comando, repito, do mais novo melhor amigo do Pateta brasileiro. Noto que a invasão à Ucrânia, volto a dizer, quem sabe por ser o continente europeu, parece sensibilizar mais a humanidade.

Naquele 1º de setembro de 1939, quando a Alemanha nazista invadiu a Polônia, a Segunda Guerra Mundial foi oficialmente declarada. Nesse momento, com as tentativas diplomáticas desprezadas por Hitler, os britânicos e os franceses decidiram tomar as dores da Polônia e se opuseram militarmente ao Führer. Assim, sob a liderança da Inglaterra e da França, formou-se o grupo conhecido por Aliados, que posteriormente contaria com o apoio dos Estados Unidos e da então URSS.

Os Aliados, como se sabe, fortaleceram-se com a adesão de vários outros países, entre os quais estava o Brasil. Portanto, entre 1939 e 1945, os Aliados combateram, além do poderoso exército alemão, os chamados países do Eixo, cujos integrantes de primeira hora foram Itália e Japão. Aquela, a meu ver, por causa da índole maléfica e genocida de Hitler, foi uma guerra inevitável e justificável.

Digo justificável devido ao fracasso da diplomacia. O Holocausto precisava ser interrompido com a máxima urgência. Hoje em dia, entretanto, em pleno Século XXI, é inadmissível, intolerável, que ainda aconteçam ataques covardes como esse implementado pela gigantesca Rússia contra a pequenina Ucrânia, um duelo em que o segundo tem mínimas condições de se defender e contra-atacar, enquanto o primeiro veste impenetrável armadura e se encontra armado até os dentes.

O povo ucraniano, embora o seu presidente também não seja flor que se cheire, não merece tamanha atrocidade. Penso no que diria e sentiria a nossa Clarice Lispector, uma das maiores escritoras brasileiras, que na verdade era ucraniana, ao ver pela televisão toda a lástima que seus compatriotas têm enfrentado, o terror imposto por Vladimir Putin, o mais novo melhor amigo do Pateta brasileiro.

Creio que a esta hora, porventura estivessem vivos, entre outros importantes escritores daquele país, os mestres Dostoiévski e Tolstói também condenariam esse covarde massacre do mamute Rússia sobre o jabuti Ucrânia. Enquanto isso, na Sala de Injustiça, ONU e Otan assistem à barbárie de camarote.

Marcos Ferreira é escritor

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domingo - 27/02/2022 - 13:20h

Fim de tarde

Por Inácio Augusto de Almeida 

Neste fim de tarde de nuvens carrancundas e de pouca chuva, tarde que se vai preguiçosamente, num nunca acabar, apenas um silêncio profundo toma conta deste quarto no qual permaneço há tanto tempo que perdi a conta dos meses ou anos que deitado vivo.

Vivo, porque a minha cabeça mergulha vez por outra no passado, mas quase sempre está buscando o amanhã. Fim de tarde - Guarulhos-SP

Não, não quero o ontem. Desejo, como desejo o amanhã.

Um cachorro late e me leva a questionar se existe mais solidariedade e respeito entre os animais do que entre nós.

Lembro da história do cachorro que ficou semanas à beira do túmulo do seu grande amigo esperando a sua volta.

Recordo-me de um enterro, onde filhos do falecido olhavam os relógios receosos de perderem algum compromisso por conta da demora no sepultamento.

Preciso afastar estas lembranças que ferem meu coração e busco no Tik-Tok alguma piada para contrabalançar a minha tristeza.

Um “humorista” conta, rindo, que tocaram fogo num mendigo e que a pedra de crack disse estar vingada.

A plateia explode em risos e palmas.

Eu me assusto.

Penso que rir e fazer rir com o tocar fogo num ser humano nos leva ao último degrau da degradação humana.

Pergunto para mim, em voz baixa, porque em vez de aplaudirem, não vaiaram tamanha idiotice? E descubro a razão para a não vaia, para a não indignação.

Perdemos totalmente a noção de valores. Amizade, fraternidade, solidariedade e amor ao próximo viraram pieguismo, coisa comum aos fracos.

Importa mais a indiferença, o desamor, a ambição, o sempre ter mais e mais para, tendo mais, mais ter e TER. E assim cada vez mais ser e SER.

Descubro-me a censurar os que estão rindo de uma piada e constato o quanto sou pior quando, sabendo do furto praticado pelos corruptos, por covardia, calo.

Calo. E mais, rastejo. Rastejo quando me levanto na igreja para os canalhas, cedendo os primeiros lugares.

E aos vermes me nivelo quando, no restaurante, entra um patife e aplaudo de pé, para aparentar alegria pela chegada do monstro que furta a Educação das crianças e a Saúde dos velhos.

Furta desviando o dinheiro da Merenda, Uniforme e Transporte Escolar.

Furta desviando o dinheiro das cirurgias e dos medicamentos.

Monstro que pouco se importa com o sofrimento do seu semelhante.

Qual a diferença entre tocar fogo num mendigo e deixar faltar insulina e outros medicamentos para se apropriar do dinheiro?

Qual a diferença entre tocar fogo num mendigo e negar Educação aos jovens, encaminhando-os assim para as veredas da criminalidade onde a vida é curta?

Estarreceu-me uma plateia rir de tocarem fogo num mendigo.

Assusto-me quando constato não me indignar com o genocídio causado pela corrupção.

Nem eu nem ninguém se toca para o quanto somos covardes.

O cachorro volta a latir. Certamente para me lembrar que os bons sentimentos existem no mundo animal.

Quando voltaremos a recuperar parte da nossa dignidade?

Quando voltaremos a ouvir o latido de um cachorro sem questionar nossos valores?

Quando estaremos preparados para receber Jesus Cristo podendo olhar bem dentro dos olhos do Salvador?

Quando voltaremos a ser nós mesmos?

Inácio Augusto de Almeida é escritor e Jornalista

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domingo - 27/02/2022 - 10:04h

A terceira via

Por Marcelo Alves

Quando fui fazer doutorado (PhD) no Reino Unido, em 2008, o jusfilósofo Ronald Dworkin (1931-2013) andava por lá. Era professor no University College London – UCL. Era muito badalado. Recordo-me de haver ido xeretar uma de suas palestras. Ele faleceu na amada Londres, de complicações de uma leucemia, não muito tempo depois. Uma pena.

jusfilósofo Ronald Dworkin (Foto: Terrence Spencer//Time Life Pictures/Getty Images)

Jusfilósofo Ronald Dworkin (Foto: Terrence Spencer//Time Life Pictures/Getty Images)

Dworkin nasceu em Worcester, Massachusetts, nos EUA. Estudou nas universidades de Harvard (bacharelado e doutorado) e de Oxford. Coisa de primeira qualidade. Foi assessor no Judiciário americano. Advogou em Nova York. Foi professor na Yale University. Sucedeu a H. L. A. Hart (1907-1992) na cátedra de filosofia do direito da Oxford University. Pontificou lá por 30 anos. Foi finalmente professor na New York University e no University College London, além de ter dado cursos em outras universidades mundo afora.

Filósofo, jurista e constitucionalista, Dworkin foi muito atuante no debate público no mundo anglo-saxão, em jornais e em publicações especializadas. Mas Dworkin é sobretudo o autor de alguns clássicos da ciência do direito. “Taking Rights Seriously” (1977), “A Matter of Principle” (1985), “Law’s Empire” (1986), “Sovereign Virtue: The Theory and Practice of Equality” (2000) e “Justice for Hedgehogs” (2011) são os mais célebres. É fácil encontrá-los, com os títulos “Levando os direitos a sério”, “Uma questão de princípio”, “O império do direito”, “A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade” e “A raposa e o porco-espinho: justiça e valor”, em edições honestas da Martins Fontes.

A obra de Dworkin é variada. É até difícil de compreendê-la e, muito mais, de resumi-la. Mas podemos apontar dois núcleos.

O primeiro está na sua defesa de uma justiça distributiva, materialmente igualitária, desenvolvendo um veio que vinha de Aristóteles (384-322 a.C.) e chegava no seu conterrâneo John Rawls (1921-2002). Vai longe Dworkin nessa busca de uma igualdade material. De fato, o princípio da igualdade perante a lei, como um dogma político e jurídico, é ouro. Mas ele não pode ficar apenas no plano normativo. Tem seu lugar, talvez o de maior destaque, na solução materialmente igualitária de casos concretos na vida em sociedade.

E assim chegamos ao segundo aspecto da filosofia de Dworkin. Um jusnaturalismo moderado. Ou, como li em “Little Book of Big Ideas – Law” (A & C Black Publishers Ltd., 2009), de Robert Hockett, “uma terceira via”, entre as visões positivistas e jusnaturalistas.

Metodologicamente, Dworkin trabalha sua teoria do direito “como uma teoria acerca de como os juízes decidem os casos concretos”.

Para decidir, os juízes devem considerar o que está na lei e nos precedentes judiciais. Parece óbvio e assim o diz Dwokin em “Levando os direitos a sério” (Martins Fontes, 2002): “as teorias da decisão judicial tornaram-se mais sofisticadas, mas as mais conhecidas ainda colocam o julgamento à sombra da legislação. Os contornos principais dessa história são familiares. Os juízes devem aplicar o direito criado por outras instituições; não devem criar um novo direito”. E aqui temos uma visão positivista do direito.

Se o dito acima é o ideal, ele nem sempre é possível. Dworkin afirma que as regras do direito “são quase sempre vagas e devem ser interpretadas antes de se poder aplicá-las aos novos casos. Além disso, alguns desses casos colocam problemas tão novos que não podem ser decididos nem mesmo se ampliarmos ou reinterpretarmos as regras existentes.

Portanto, os juízes devem, às vezes, criar um novo direito, seja essa criação dissimulada ou explícita”. Dwokin fala em buscar a “melhor interpretação moral”, o “melhor para a comunidade” e, ao fazê-lo, os juízes devem agir estabelecendo normas que, “em sua opinião, os legisladores promulgariam caso se vissem diante do problema”. E aí está o seu viés jusnaturalista.

Todavia, para Dwokin (e temos o semipositivista), “é muito comum que o legislador se preocupe apenas com questões fundamentais de moralidade ou de política fundamental ao decidir como vai votar alguma questão específica. Ele não precisa mostrar que seu voto é coerente com os votos de seus colegas do poder legislativo, ou com os de legislaturas passadas”.

Um juiz não deve mostrar esse tipo de independência total. Ele deve associar sua decisão às decisões que outros juízes tomaram no passado. A força da sua decisão deve estar baseada não só na sua “sabedoria”, mas, também, na “equidade” de tratar casos semelhantes do mesmo modo.

E, dito tudo isso, temos um Dworkin tanto terceira via como igualitário. Grande nome.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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domingo - 27/02/2022 - 08:46h

É o tempo

Por Odemirton Filho 

“Batidas na porta da frente é o tempo; eu bebo um pouquinho pra ter argumento”. Assim diz um fragmento da linda canção (Resposta ao tempo) composta por Aldir Blanc e Cristóvão Bastos, cantada na bela voz de Nana Caymmi.

O tempo está passando. Eu me volto para o passado. Observo o que fiz. Mas, principalmente, o que não fiz. Faltam argumentos para contestar o tempo. Ele, o tempo, é implacável. Por que deixei de viver? Por que não fiz aquilo que me deu na telha? Talvez seja tarde. Ou não. Sempre há tempo quando se quer.

O tempo caminha a passos largos. A minha infância foi até onze anos de idade. Vejam só: onze anos! A partir dos doze anos a pessoa é considerada adolescente; aos dezoito, adulto, porque já responde civil e penalmente pelos seus atos.

Eu sei. O que determina a idade é o espírito e a vontade de viver, embora com o tempo a gente sinta o peso das pernas. Mas eu creio que sorri pouco. Chorei menos ainda. Deixei que a vergonha prendesse minhas lágrimas. Agora, nem aí!

Eu era pra ter brincado mais com os meus filhos; era pra ter tomado mais banho de mar na minha Tibau. Eu era pra ter aproveitado mais a companhia dos meus pais. Ter escutado as suas histórias de vida. Os seus sonhos; os seus medos. Felizmente, ainda há tempo.

Hoje, eu não deixo de aguar as plantas do meu quintal. Acho bonitas as rosas do deserto. E espero que desabrochem. Tomo meu café; uma dose de cana ou de uísque. Viajo pra onde a minha grana permite. Quando não permite, viajo nos meus pensamentos.

E o tempo vai passando, passando. E eu ainda acho que não aproveito cada segundo como deveria. Fico preso nas obrigações e preocupações do dia a dia. E tenho saudade do que não vivi, como se diz por aí.

Diz-me o tempo: sorria; chore; ame.

Sim, o tempo furtou a minha juventude. Mas, doutro lado, deu-me a oportunidade de rever conceitos; atitudes. Se não aproveitei, e não aproveito, a culpa é minha. Só minha. O tempo me ensinou tantas coisas, repassou-me valorosas lições. Às vezes, porém, penso que aprendi tão pouco.

Aliás, um dia desses eu recebi uma mensagem do nosso artesão das palavras, Marcos Ferreira. Era uma citação de Dostoiévski:

“Somos assim: sonhamos o voo, mas tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio. Porque é só no vazio que o voo acontece. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Mas é isso que tememos: o não ter certezas. Por isso trocamos o voo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram”.

Resposta ao Tempo

Batidas na porta da frente
É o tempo
Eu bebo um pouquinho pra ter
Argumento

Mas fico sem jeito calado, ele ri
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar
E eu não sei

Num dia azul de verão
Sinto o vento
Há folhas no meu coração
É o tempo

Recordo um amor que perdi
Ele ri
Diz que somos iguais
Se eu notei
Pois não sabe ficar
E eu também não sei

E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro
Sozinhos

Respondo que ele aprisiona
Eu liberto
Que ele adormece as paixões
Eu desperto

E o tempo se rói
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Pra tentar reviver

No fundo é uma eterna criança
Que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder
Me esquecer

Respondo que ele aprisiona
Eu liberto
Que ele adormece as paixões
Eu desperto

E o tempo se rói
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Pra tentar reviver

No fundo é uma eterna criança
Que não soube amadurecer
Eu posso, e ele não vai poder
Me esquecer

Pois é. Eu vejo o tempo correr, mas fico preso em uma gaiola.

Eu acho que “o tempo sabe passar, e eu não sei”.

Ou talvez “eu seja uma eterna criança, que não soube amadurecer”.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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domingo - 27/02/2022 - 07:50h

Toca Raul!

Por Erasmo Carlos 

Vi nas redes sociais que Ed Mota, sobrinho do cantor e compositor Tim Maia, havia feito algumas críticas muito pesadas a Raul Seixas (veja AQUI). Na oportunidade não procurei saber maiores detalhes. Hoje, assistindo ao canal Foro de Moscow, fiquei mais a par do assunto.

Ed Mota e Raul Seixas (Fotomontagem: Blog Tio Colorau)

Ed Mota e Raul Seixas (Fotomontagem: Blog Tio Colorau)

Raulseixista que sou desde os 11 anos de idade, sinto-me na obrigação de meter o bedelho no assunto, esclarecendo algumas situações, ditas tanto por Ed Mota, como pelos apresentadores Bruno Barreto e William Robson.

De início, desconheço qualquer “falha de caráter” de Raul Seixas, muito pelo contrário. Quando começou a carreira, como produtor da CBS, Raul Seixas impulsionou o sucesso de nomes como Odair José, Diana, Renato & seus Blue Caps, Roberto Ribeiro, Leno e Lília, Jerry Adriani e Baltazar. Inclusive, os maiores sucessos dos dois últimos foram escritos por Raul Seixas: “Doce, Doce Amor” e “Se Ainda Existe Amor”, respectivamente.

Quem se propuser a mergulhar nas obras dos artistas citados, bem como de outros do portfólio da CBS naquele período, final dos anos 60, encontrará várias canções escritas por Raul Seixas, que sempre teve o reconhecimento de todos eles. Tanto é que muitos tentaram ajudá-lo nos últimos anos de vida, como Jerry Adriani e Odair José.

A única história desabonadora envolvendo a conduta de Raul Seixas foi na ditadura militar, e tudo indica ser um boato. Alguém chegou a dizer que ele havia dedurado o seu parceiro, Paulo Coelho, o que nunca foi provado. Nem o escritor, que já foi instigado a tratar do assunto, acredita que isso tenha acontecido.

Outro equívoco é imaginar que as canções de Raul Seixas foram escritas por Paulo Coelho. De fato, eles fizeram muitas músicas em parceria, como “Al Capone”, “Tente Outra Vez” e “Medo da Chuva”. No entanto, o “mago” nem foi o maior parceiro do cantor, título este que cabe a Cláudio Roberto, com quem Raul escreveu dois de seus maiores clássicos, “Maluco Beleza” e “Cowboy Fora-da-lei”, além de dezenas de outras canções.

Muitas composições Raul Seixas escreveu sozinho, como “Ouro de Tolo”, “Metamorfose Ambulante”, “Mosca na Sopa” e “Trem das 7”, pra ficar apenas no início da carreira.

De outro modo, não há no repertório de Raul Seixas uma só música escrita unicamente por Paulo Coelho.

Costumo dizer que sou capaz de cantarolar entre 20 e 25 músicas de Raul Seixas numa roda de conversa e os presentes conheceram todas elas, mesmo que um ou outro não seja fã. Poucos artistas brasileiros conseguem reunir tantos sucessos.

Ed Mota tem quantos, apesar de seu tão alardeado talento musical? Eu lembro de “Manuel” e “Colombina”, tem outra?

Sobre um disco de referência do cantor e compositor baiano, posso apontar “Krig-ha, Bandolo!” (1973), considerado o 12º melhor disco do Brasil segundo a lista dos 100+ da revista Rolling Stone Brasil, e o 5º melhor na eleição do jornal Estado de S. Paulo, em 2012.

Como todos os artistas, Raul Seixas teve momentos altos e baixos na carreira. No seu caso, os baixos foram motivados pelo vício em drogas, especialmente bebidas alcoólicas, o que acabou por leva-lo à morte em 1989, aos 44 anos.

Raul Santos Seixas é um dos maiores nomes da música brasileira de todos os tempos, o pai do rock nacional, com enorme reconhecimento no meio. É uma unanimidade. Não me recordo de outro artista que tenha desmerecido seu trabalho e seu caráter.

O que muitos fazem, é lamentar que uma pessoa tão talentosa tenha perdido a guerra para o álcool.

Ed Mota, o gênio que conseguiu rimar “Manoel” com “Céu”, é uma voz solitária.

#TocaRaul!

Erasmo Carlos é editor do Blog Tio Colorau

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segunda-feira - 21/02/2022 - 10:26h
Ditaduras

A natureza procura os seus

Por François Silvestre

Esse é um brocardo do Sertão profundo; sertão de pau a pique, de catingueiras e mofumbos. Os afins afinam-se naturalmente. encaixe, quebra-cabeça, encontro, aliança, contrários, preto e branco, união

Os “jornalistas” de miçanga criticam as ditaduras. Verdade? Não. Depende de que lado da Rosa dos Ventos esteja o ditador. De minha parte, eu condeno todas.

Fidel Castro perdeu o bonde da História ao não institucionalizar democraticamente a necessária e histórica Revolução Cubana. Transformando-a numa ditadura dinástica, tão brutal quanto costumam ser todas as ditaduras. A Venezuela também.

Os “jornalistas” de que falo também dizem isso. E criticam Lula por manter afinidade com esses regimes. Crítica honesta? Não. Eles gostam das ditaduras de Direita.

Agora mesmo defendem Bolsonaro que faz um périplo ridículo de apoio aos ditadores do peito. Ao ditador da Rússia, antigo agente da KGB, a polícia secreta da ditadura soviética. Ao ditador da Hungria, caçador das “bruxas” e dos “desvios” de costumes. Ao ditador da Arábia Saudita, assassino de jornalistas, que mantém a própria mãe em cárcere privado, por ela defender a liberdade das mulheres. Misógino que guarda afinidade com o colega Bolsonaro.

Esses “jornalistas” de que falo abandonaram o jornalismo, que já praticaram, e hoje são apenas vendedores de opinião. Afinados pela natureza, que os aproximam e os unem. Tudo devidamente muito bem pago. 

A natureza procura e acha os seus.

Acompanhe o Canal BCS (Blog Carlos Santos) pelo Twitter AQUI, Instagram AQUI, Facebook AQUI e Youtube AQUI.

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