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domingo - 16/10/2022 - 04:20h

A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 18

Arrepiando carreira

Por Marcos Ferreira

Nenhum projétil transfixou o colete, sequer o disparo à queima-roupa contra as suas costas. Jaime sentia na pele e musculatura o impacto daqueles três balaços, sobretudo o que lhe atingiu o dorso. A duras penas, consciente de que os atiradores haviam se evadido, ele mais uma vez se arrastou até o meio-fio, sem forças para se erguer. Decorrido algum tempo, como é comum nessas situações, os vizinhos começaram a aparecer nas portas e janelas de suas casas, curiosos e hesitantes. Comportamento seguido por outros um pouco mais longe.compressa-quente-1

O primeiro a tomar chegada junto a Jaime foi o grandalhão conhecido por Espirro de Gato, a quem Jaime, a exemplo de outros moradores, só conhecia por esse apelido. Portanto, Espirro de Gato foi ao socorro do homem sentado na calçada, escorado numa árvore, sem poder ficar de pé.

— Está ferido?! — indagou Espirro de Gato com os olhos precipitados para fora das órbitas. — Eu vou chamar uma ambulância.

— Não precisa, meu amigo. Só me ajude a ficar de pé e me leve até a minha casa, aquela do portão marrom em frente à padaria.

— Sei onde você mora, senhor Jaime.

— Ok! Então me conduza até lá, por gentileza. Minha esposa é enfermeira e vai cuidar de mim. Não estou ferido. Por muita sorte nenhuma bala perfurou minha carne. Apenas estou machucado pela força dos impactos.

— Ora, você foi atingido por disparos.

— Sim. Porém eu estou usando colete.

— Colete à prova de balas? Por quê?

— Porque venho recebendo ameaças.

— O que o senhor fez para tudo isso?

— É por causa de um livro que escrevi.

— Só por conta disso?… Que absurdo!

— Alguns são mortos por muito menos.

— É uma gente sem Deus, senhor Jaime.

— Pois é. Certas pessoas não toleram que a gente as acuse dos podres, do fedor e dos seus atos corruptos. Refiro-me a certos políticos que se se julgam acima do bem e do mal. Mas isso é uma longa história. Vamos indo.

A essa altura a pequena Padre Mota estava em polvorosa, cheia de curiosos que de início se trancaram em suas casas, assustadiços com o tiroteio tão próximo dos seus portões. Daí a pouco outro morador se aproximou e também deu o ombro para Jaime se apoiar, sustentando-o pela cintura. As pessoas cochichavam nas calçadas, todas sem entender como o escritor saíra vivo daquele atentado, praticamente ileso, exceto pelos hematomas ocasionados nos pontos do corpo onde as balas se choraram contra o colete. Sim, o colete barra os projéteis, a depender do calibre, mas parte do impacto é transferida para a pele. Por muita sorte os pistoleiros não alvejaram, principalmente, a cabeça de Jaime nem os membros inferiores ou superiores. Se houvessem mirado na cabeça, aí sem dúvida o literato vestiria um paletó de madeira.

Em meio às dores e ao ardor dos hematomas, ainda se recordou de conferir, por meio do tato, se o trinta e oito continuava no cós da sua calça. Suspirou aliviado ao constatar que a arma permanecia com ele. Arma esta que, dada a velocidade com que fora rendido pelos sujeitos da picape, findara lhe sendo inútil naquele momento em que os três encapuzados o coloraram sob a mira de pistolas.

Por volta das sete da manhã, Laura encontrou Jaime sobre a cama, curvado, trajando apenas uma bermuda e se contorcendo em dores. Apresentava duas regiões do peito e das costas muito arroxeadas, marcas dos balaços. O hematoma das costas era o mais destacado. Ela tomou um enorme susto. Embora tivesse conhecimento de que o marido trabalhasse no romance A Cidade que Nunca leu um Livro, atividade que ela não dava muita importância, ignorava que tal obra pudesse estar contrariando demasiadamente pessoas poderosas de Mondrongo, abespinhando os humores e a ira dos desafetos de Jaime Peçanha. Para Laura, enfim, o livro não passava de uma história ficcional sem a maior relevância e fadada ao fracasso no meio literário. Pôs-se a examinar o esposo, fez compressas de gelo nos hematomas e disse com alívio:

— Por sorte não atingiu nenhum osso. Ao menos é o que parece. O ideal é tirar um raio-X, para a gente ter certeza de que não houve fratura. As costelas e a espinha dorsal parecem preservadas, mas não posso garantir.

— Nada de hospital, Laura. Eu ficarei bem.

— Iremos no carro do Reginaldo Marinho.

— Não. Eles podem descobrir que estou vivo.

— Meu Deus! O que pretende fazer, então?

— Terei que desaparecer por um bom tempo. Se souberem que estou no hospital, amor, não duvido de que vão até lá acabar comigo.

— Por enquanto, pois, permaneça aqui, trancado. Farei umas compressas de gelo e você vai tomando anti-inflamatórios para as lesões.

— Tenho que falar com o Luciano Aires, que sempre me socorreu em situações difíceis. Vou contar a ele tudo o que me aconteceu. Também vou ligar para o Raimundo Gilmar, que trabalha na Copiadora Expressa, no Centro. Quero encarregá-lo de imprimir três cópias de A Cidade que Nunca leu um Livro e trazê-las para mim, de maneira que eu possa postar nos Correios de Vila Negra.

Esses originais serão enviados para três editoras do Rio de Janeiro e de São Paulo. Da parte de Luciano, espero que me deixe ficar num apartamento que ele possui em Vila Negra. Ao menos até a poeira baixar. Isto se baixar. Do contrário, Laura, terei que largar Mondrongo em definitivo. Estou envolvido em coisas que você nem imagina. Mas tudo em minha defesa. Reagi às agressões que sofri nos últimos tempos. Tudo unicamente para me defender.

— Como essa coisa chegou a tanto, Jaime?

— Para lhe ser sincero, nem eu mesmo calculei que pudesse acabar nisso. Confesso que subestimei a capacidade de intolerância e truculência desse pessoal. Gente como Rato Branco e seus comparsas, além do prefeito Wallace Batista e de Leonardo Jardim, presidente da Câmara de Vereadores. De quebra, como se não me bastasse, ainda tenho que lidar com o sebista pau-mandado Antoniel Silva.

Ali sobre a cama, quando Laura pousou a bolsa de gelo no hematoma das costas de Jaime, ele se contraiu e soltou outro gemido. Ela pediu que ele aguentasse firme, pois era preciso que o gelo adormecesse a área arroxeada.

— Feche essa janela e acenda a luz, por favor — pediu ele. — Se estiver quente para você, ligue o ventilador. E as outras janelas e as portas da frente e da cozinha estão todas trancadas? Receio que eles venham me matar aqui dentro de casa. Não duvido nem mesmo de que façam algum mal a você apenas por estar na minha companhia. Essa gente é ruim, não vale nada, é perigosa. Por isso tenho que ir embora daqui o quanto antes. Você não está segura perto de mim. Já ligou para o Reginaldo Marinho? Espero que o se primo me leve até Vila Negra. São cerca de oitenta quilômetros.

— E o seu revólver? Não deu tempo de puxar?

— Nada. Quando pisquei eu já estava rendido.

— Você só não morreu por muita sorte, Jaime.

— Sim. Poderiam ter atirado na minha cabeça.

— Você deve sua vida também a esse colete.

— Exato. É o colete que o Claudione me deu.

Quase oito e meia. Laura circulava a bolsa de gelo sobre a região arroxeada da pele, especialmente nas costas de Jaime. De quando em quando ele se contraía e solicitava que ela fizesse isso com a mão um pouco mais leve.

— Atenda seu telefone. É Raimundo Gilmar.

— Ótimo! Contarei o que houve e passarei as instruções sobre a impressão dos originais. Ao todo serão apenas três cópias. Assim, Laura, após Gilmar imprimir e encadernar tudo, irei embora de Mondrongo amanhã mesmo. Isto, claro, se o seu primo Reginaldo Marinho for me deixar em Vila Negra.

— Quando você pretende retornar, Jaime?

— Não sei. Talvez apenas após o meu livro ser publicado por alguma editora do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Se Reginaldo não puder me levar até Vila Negra, então pedirei a Luciano que faça isso. Até porque o apartamento é dele e não conheço Vila Negra direito. Trata-se de uma cidade um pouco maior que Mondrongo. Certamente eu teria alguma dificuldade de localizar o apartamento.

— Então, meu querido Jaime, vá com Deus.

— Ultimamente o Altíssimo não tem andado muito comigo. Sei que fiz por merecer. O Todo-Poderoso parece ter me virado as costas.

— Não pense assim. Você acabou de levar três tiros e continua vivo. Acredito que foi o Pai que lhe protegeu. Quem mais o salvaria?

— Eu penso que foi tão somente o colete.

— Que homem de pouca fé é você, Jaime.

A seguir ele fechou os olhos, abaixou a cabeça, cruzou os dedos e pôs as mãos na fronte. Era como se fizesse uma prece silenciosa.

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Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Amorim diz:

    Bom, muito bom. O filme de sempre.
    Nós conseguimos “ver ” a cena.
    Parabéns Nobre Poeta.
    Um abraçaço

  2. Raimundo Gilmar da Silva Ferreira (Gilmar) diz:

    Muitos escritores desafiam o sistema, denunciam os desmandos, afrontam os poderosos e incomodam muito. Nós regimes democráticos, corre-se o risco de sofrer retaliações e levar até chumbo quente no peito. O grande mal são os pseudos democrátas e seus milicianos sempre dispostos a calar o pensamento crítico. Te cuida, Jaime.

  3. Bernadete Lino/ Caruaru-PE diz:

    Jaime está cada vez mais enrolado! Se for pra arriscar um palpite, não acredito que continue escapando! Uma hora vai ter que ir pro paletó de madeira. Que vida intensa, hein? Mas os heróis da história, normalmente, são poupados. Continuo curiosa!

  4. Odemirton Filho diz:

    O nosso Marcos Ferreira continua a nos brindar com os capítulos do seu livro.
    Avante, amigo.

  5. RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES diz:

    Talvez essa saída de Mondrongo seja benéfica para o distinto personagem… Mas, como será que ele vai pagar pelo que fez?

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