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domingo - 19/07/2020 - 05:26h
Especial III

História de beatos e messianismo no RN lembra Canudos

Movimento na Serra de João do Vale causou preocupação e foi desfeito à força policial no século XIX

Por Tárcio Araújo (para o Blog Carlos Santos)

Durante o século XIX a presença de beatos e conselheiros era comum no interior do Nordeste. A miséria reinante e a ausência de referências religiosas em lugarejos mais longínquos, contribuíam para o surgimento de líderes espirituais de feição popular.

Movimentos messiânicos e sebastianistas eclodiam por toda parte, atraindo sertanejos pobres e analfabetos, com a promessa de um salvador que os libertaria do flagelo da vida e do sofrimento humano.

No sertão exaurido, assolado por secas, sem assistência alguma de governos e explorado por coronéis (latifundiários e donos da terra), o homem comum se via obrigado a se insurgir contra o sistema. Dois caminhos eram possíveis: ou se pegava em armas e abraçava o cangaço ou se valia da cruz e seguia um líder messiânico pela caatinga a dentro.

Missões religiosas ocorriam pacificamente, mas que foram combatidas com rigor pelo governo (Ilustração de Adriano Pinheiro)

Foi assim na Serra do Rodeador (1819) e na “Pedra Bonita” (1836), ambos em Pernambuco. Em Canudos na Bahia (1893-1897); e até meados do século XX, entre os anos de 1926 a 1937, com o ajuntamento do Caldeirão do Beato José Lourenço no Crato-CE.  Todos com desfecho trágico, vasto derramamento de sangue e milhares de mortes.

O Rio Grande do Norte também vivenciou seu momento de messianismo na história, apesar do fato ser pouquíssimo conhecido. O cenário foi a serra de João do Vale (área localizada entre os municípios de Jucurutu, Campo Grande, Triunfo Potiguar e Belém do Brejo do Cruz-PB, a 130 quilômetros de Mossoró e 275 de Natal.), em 1899.

Canudos havia caído dois anos antes.

No interior potiguar, o personagem central dessa epopeia é o religioso Joaquim Ramalho do Nascimento, (Beato Joaquim Ramalho), nascido em 1862.  Um líder carismático que atraiu mais de mil devotos para a Chã do Cajueiro, onde morava. Como ele realizou tal feito? É o que vamos relatar agora!

Câmara Cascudo resgatou história que seu pai teve participação direta (Foto: reprodução BCS)

A vocação religiosa de Joaquim Ramalho surge ainda na infância, influenciado por leituras como a bíblia, a ‘Missão Abreviada’ dos padres capuchinhos e a obra de Alan Kardec. Teria sido educado e alfabetizado por um antigo professor que morou na região.

Era assíduo às missas na então Vila do ‘Triumpho’, hoje, Campo Grande.  Acólito do padre local, aos domingos descia a serra para a celebração. Cresceu tendo o catolicismo como doutrina, mas também adepto do espiritismo kardecista.

Joaquim Ramalho estava com 32 anos, homem feito e casado, quando falece aos 80 anos, o padre da então Vila do ‘Triumpho’, Manuel Bezerra Cavalcante.  A morte do velho vigário deixa uma lacuna na comunidade. Neste período em diante, Joaquim Ramalho se aprofunda nos estudos do ‘Kardecismo’. Passa dias em meditações prolongadas. Era um homem circunspecto, parecia estar se preparando para uma “missão divina”.

Fenômeno

Passados 04 anos da morte do vigário velho, Joaquim Ramalho se apresenta com revelações místicas ao contemplar os finais de tarde no alto da serra.  Tem crises de convulsões, cai ao chão e entra em transe ao pôr do sol.  Passa a cantar ladainhas e proferir sermões com grande eloquência e autoridade. Ao retornar da vertigem dizia não se lembrar de nada.

O fenômeno se repetiu por tardes seguidas, e no curso das epifanias celebrou missas na sua própria casa, numa espécie de hibridismo religioso. Ao tempo em que as pessoas já o viam como novo pregador daquela região. “A notícia alastrou-se como um relâmpago.  De todas as tocaias da serra, homens e mulheres correram a ver o prodígio.  Vieram presentes.  Vieram   adeptos”, rlatou Câmara Cascudo em artigo de 1924 denominado ‘Os Fanáticos da Serra de João do Vale’.

Durante as celebrações as pessoas se reuniam em volta de uma mesa de flores e uma esteira de palha com lençol branco onde Joaquim Ramalho proferia o sermão e dava conselhos aos devotos à sua volta.

O escritor João Ramalho registrou em seu livro ‘O Beato da Serra de João do vale’, que em questão de meses a localidade se constituiu num ajuntamento de romeiros. “Dos brejos da Paraíba, do Agreste e do Sertão deste Estado e do Ceará, afluíram à serra de João do Vale, levas e levas de romeiros, para assistir as missões e os prodígios do santo homem. E até do interior de Pernambuco veio gente em romaria”.

A essa altura a serra de João do Vale se torna um santuário místico religioso. Os ritos e liturgias eram constantes e as pessoas não paravam de chegar. Em seus relatos, Câmara Cascudo ainda reitera a influência da devoção empregada por Joaquim Ramalho: “Dia e noite ecoava pela serra as ladainhas, as litanias, os responsos, novenas, uma infinidade de exercícios religiosos”.

A revista Mobral de 1984 também aborda uma passagem do movimento em seu ápice: “As oferendas se multiplicavam. Gente vinha em peregrinação de léguas e léguas de distância. Eram tantos os presentes que nem o chiqueiro comportava mais. Barracas surgiram ao redor do templo doméstico”.

Não há relatos de milagres, apenas a empatia do povo com a pregação do beato que de maneira especial se portava como líder religioso. “O que havia era a palavra de caridade, reconfortante àquela gente desvalida. Sua pregação magnetizava as massas. Dizia ele falar pela boca do Padre Manuel Bezerra”. Conta o escritor João Ramalho. Seria um caso de mediunidade?

Gente da serra, da fé… gente que conta a história

Severina Ramalho (sobrinha-bisneta do beato) 65; Alzira Silva (moradora que acredita em milagres do beato), 71; escritor João Ramalho (falecido há poucos dias) tem livro sobre movimento e Seu' Virô ( avó foi beata), 90 (Fotos: Adriano Pinheiro e Francinildo Silva)

Câmara Cascudo relata que em abril daquele ano, “Joaquim Ramalho era o senhor em trinta léguas derredor”, bem como sua pregação penetrara os sertões em santas missões populares. “Ganharam terreno.  Desceram por toda a zona do Paraú.  Agora, em certos dias, com velas acesas, vagarosamente, a multidão descia para terços e novenários em lugarejos vizinhos, cantando benditos”.

Diferentemente do Conselheiro de Canudos, Joaquim Ramalho não contestava a República, nem tocava em política. Sua vocação era meramente devocional.  Andava pelas estradas com seus seguidores visitando sertanejos pobres.

Em suas incursões, rezava missas a céu aberto, batizava e dava comunhão, confessava fiéis e concedia extrema-unção aos enfermos. Era um sacerdote sem o aval da igreja, “resgatando” vidas em sofrimento.

O CARÁTER SACRO DE JOAQUIM RAMALHO era um entendimento comum entre os sertanejos.  É o que assinala Câmara Cascudo: “Cangaceiros afoitos, vaqueiros destemidos, ajoelhavam, rezando, batendo no peito, olhos baixos quando, estático e absorto em contemplações superiores, Joaquim Ramalho passava, abençoando-os”.

E a multidão de devotos era cada vez maior. Em Agosto daquele ano, já havia para mais de mil seguidores habitando a serra de João do Vale. “Com o passar dos dias, um arraial crescia enquanto a vida ia se desorganizando ao redor. Lavradores e vaqueiros largavam o serviço para andar cantando, com uma vela na mão, acompanhando Joaquim Ramalho. Vestido num chambre branco de chita”, descreve Cascudo em ‘Os Fanáticos da Serra de João do Vale’.

O receio de que aquele movimento poderia eclodir numa revolta aos moldes de Canudos, passou a incomodar os chefes políticos da época. Outra insatisfação era a queda de rendimentos das lavouras com a perda de mão de obra. Lavradores deixaram as fazendas para seguir a vida religiosa no alto da serra e viver da própria plantação.

Apesar de que, segundo os registros históricos, Joaquim Ramalho nunca empreendeu uma organização social. O ajuntamento se dava de forma espontânea e  aleatória, na medida em que os sertanejos foram assentando.

Denúncia e fim do movimento

Os coronéis e senhores de terras, Tito Jácome, Luiz Florêncio e Vicente Veras, com fins de debelar o movimento, denunciaram Joaquim Ramalho ao então governador da província, Joaquim Ferreira Chaves Filho (primeiro governador do RN eleito pelo voto), sob acusação de subversão da ordem pública, prática de curandeirismo e baixo espiritismo.

Ferreira Chaves: ordem cumprida (Foto: reprodução)

Em agosto de 1899, com a ordem de prisão em mãos, o tenente Francisco Justino de Oliveira Cascudo (pai do folclorista Câmara Cascudo) e chefe de policiamento do interior, mais 22 soldados da Polícia Militar, devassaram a serra de João do Vale, queimaram palhoças, derrubaram o altar, rasgaram a esteira e prenderam seguidores. Outros mais atentos conseguiram escapar do cerco policial ao se esconderem nos socavões da serra.

O beato e seu acólito Sabino José, mais um grupo de devotos, entre eles a cega Justina, estavam em ‘santas missões’ celebrando uma missa na fazenda pitombeiras, quando foram surpreendidos pela tropa. Alguns homens tentaram reagir, mas o beato interveio e entregou-se pacificamente. Joaquim Ramalho era tido como pessoa pacata e bondosa, não queria luta. Não era adepto da violência. Vivendo no meio da força, não a quis empregar”, pontuou Cascudo.

Foi levado à cadeia pública de Mossoró, tiveram as cabeças raspadas. Sabino José por ser mestiço, ainda levou uma surra por “obra de misericórdia”, como apontam os registros históricos. Já Joaquim Ramalho que era branco, não sofreu agressão.

Ambos submetidos ao interrogatório, foram obrigados a negar o movimento em troca da liberdade, mesmo que mantê-los presos tenha se tornado inconsistente, pois as acusações não prosperaram. Não pregavam contra a república, nem impuseram resistência à força policial. Concluiu-se que não havia crime.

Assinaram compromisso legal de jamais retomar atividades de cunho religioso entre o povo sertanejo e foram liberados dias depois.

Sabino José desapareceu e nunca mais se teve notícias. Enquanto Joaquim Ramalho, como era casado e tinha família, retornou à sua casa ficando meses incomunicável. Foi levado por parentes até a presença de padre Cicero Romão em Juazeiro do Norte no Ceará, onde se confessou e recebeu uma benção do “Santo do Horto”.

Joaquim Ramalho estava envergonhado por não poder mais exercer sua vocação religiosa como queria. Ao retornar de Juazeiro, não mais regressa à serra. Vai morar no sertão, na fazenda Malhada Vermelha em Campo Grande, onde cria a família na agricultura.

Continuou servindo a religião, desta feita de forma oficial. Foi nomeado membro do Apostolado da Oração da Paróquia de Nossa Senhora Santana naquela cidade. Frequentava a missa aos Domingos, uma vez por mês e assim permaneceu por 26 anos. Nunca mais falou sobre o movimento messiânico.

Livro de João Ramalho é o único que trata do movimento (Reprodução BCS)

Como de costume, caminhava taciturno e solitário por 20 quilômetros da fazenda onde morava até a igreja matriz. Num desses trajetos, nas imediações da serra do Cuó, foi picado por uma cobra cascavel e sem assistência médica não resistiu aos efeitos do veneno. Faleceu no dia 26 de Março de 1925, aos 63 anos de idade.

O escritor João Ramalho resumiu em seu livro a importância do movimento histórico e a figura do beato para os sertanejos pobres daquela região:

–  “Foi ele assim o precursor de uma doutrina mística, buscando através da contemplação, ir até o profundo do seu ser, para retornar ao seu estado natural, agora como um homem sábio, filósofo, bondoso, orientador e catequizador a quantos desejassem ouvi-lo em nome de Deus”.

Esquecimento histórico

Desconhecido da historiografia, pouco se escreveu sobre esses acontecimentos. Talvez a intenção da elite letrada da época fosse mesmo deixar o evento cair no esquecimento.  Somente em 1924 Câmara Cascudo publica o livro ‘Histórias que o Tempo Leva’, e dedica um capítulo ao registro dessa narrativa, com o título “Os Fanáticos da Serra de João do Vale”.

O texto é baseado nos relatos do pai do próprio autor, o tenente Francisco Justino Cascudo, responsável pela tropa que dispersou os devotos e prendeu Joaquim Ramalho.

Entre 1938 a 1940, as edições da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte reproduzem o ensaio de Cascudo sobre o movimento messiânico.

Em 09 de Fevereiro de 1941, com a colaboração do pesquisador Hugolino de Oliveira, sobrinho do beato, Câmara Cascudo volta a publicar um novo artigo, desta vez no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro.

Em 1973, Tarcísio Medeiros abordou o fato em seu livro “Aspectos Geopolíticos e Antropológicos do Rio Grande do Norte”.

Em 1984 a Coleção Livro Reportagem do MOBRAL relata o protagonismo de Joaquim Ramalho na Serra de João do Vale.  E por fim em 1998, o escritor João Ramalho dissecou o evento com mais profundidade em seu livro “O Beato da Serra de João do Vale”.

Atualmente, professores, estudantes e pesquisadores do curso de história da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) estão debruçados sobre esse movimento messiânico como objeto de estudo.

Documentário trata do tema

Documentário foi produzido em 2019 e ainda será lançado, mostrando história do messianismo na serra (Foto: Everton Maia)

Em 2019, gravamos na própria serra de João do Vale o documentário ‘Messiânicos’, com participação de moradores, historiadores locais e descendentes do beato Joaquim Ramalho.  A pandemia do coronavírus impediu o lançamento nesses primeiros meses de 2020, adiando essa pretensão.

Depois de 121 anos, será a primeira obra audiovisual com resgate dessa memória.  Uma iniciativa que temos alegria de compartilhar com os moradores da serra, estudiosos, historiadores, pessoas de todos os matizes sociais que se interessam pelo tema.

Leia também:

Serra de João do Vale, um destino a ser descoberto no RN;

Serra de João do Vale tem marcas de disputas coloniais.

Veja trailler do documentário “Messiânicos”:

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Categoria(s): Reportagem Especial

Comentários

  1. Jeferson D'Avila diz:

    Muito obrigado pelo material. Não sabia sobre esse movimento.
    Abraço!!!

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