domingo - 31/07/2022 - 12:02h

Descoberta tardia, absorção acelerada

Por Marcelo Alves

Mais uma vez, volto a tratar da tradição jurídica anglo-americana – o dito common law –, agora para registrar a nossa descoberta tardia da filosofia do direito produzida pela imaginação dos grandes juristas estadunidenses.

De fato, paralelamente à formação do nosso arcabouço jurídico/legal, o desenvolver da nossa filosofia do direito baseou-se em ideias originadas em países da Europa Continental. Grosso modo, duas concepções filosóficas dominaram a filosofia do direito brasileira durante os séculos XIX e XX: as concepções naturalista e positivista do direito.common law - 2

Na primeira, reconhece-se um direito que se baseia na razão, na qualidade do ser humano individual ou coletivo, ou mesmo na relação entre os seres humanos e Deus, que preexiste ao direito positivo, este feito pelos homens ou pelo Estado. Na segunda, que se opõe à ideia de um direito natural, o direito é apenas positivo, no sentido de que é feito pelo homem/Estado, sendo a função do operador do direito, sobretudo, manter a integridade lógica do ordenamento jurídico assim criado.

Todavia, recentemente (nos últimos 30 anos, é certo), os juristas brasileiros têm conhecido e dado vazão, mesmo que inconscientemente, a ideias de escolas tipicamente estadunidenses, como a American Sociological School of Jurisprudence e o American Legal Realism.

A visão de que o direito é, ou deve ser, a maximização das necessidades sociais e a minimização de suas tensões e custos, tal como afirmada pela escola sociológica americana, por exemplo, vem sendo cada vez mais aplicada na justiça criminal brasileira. E mesmo antes de haver um respaldo legal para tanto. Engajados nesse equilíbrio de interesses – e negando a visão tradicional de mera declaração de uma lei penal fixa – muitos promotores e juízes já vinham ponderando em suas manifestações sobre os prós e contras de um longo processo penal. E, ao considerar a pouca relevância do crime cometido, não denunciavam ou absolviam o réu do processo.

Em vários tons, esse tipo de concepção foi sendo absorvida pela lei brasileira, como, por exemplo, no Acordo de Não Persecução Penal – ANPP.

Nos últimos anos, a comunidade jurídica brasileira também tem se debruçado sobre as ideias do realismo jurídico americano, que consiste, em linhas gerais, na adoção de um método empírico de investigação científica em que (i) se destaca a realidade concreta e subjetiva de cada caso, (ii) se reconhece a possibilidade de criação do direito por decisões judiciais, (iii) e mesmo se atribui um papel não decisivo à lei em sentido estrito. E isso vem abalando a doutrina segundo a qual os juízes devem apenas aplicar regras pré-existentes. Argumentam os “realistas brasileiros” que isso sempre foi uma “ilusão”, porque os juízes tomam suas decisões de acordo com suas próprias preferências políticas ou morais e escolhem uma norma adequada como racionalização. Esses realistas exigem, assim, uma abordagem científica que se concentre tanto no que os juízes dizem como no que eles fazem, e no real impacto que suas decisões têm nas mais amplas camadas da sociedade brasileira. É fundamental entender isso para que o direito possa ser aprimorado.

Bom, mas será que a adoção dessas ideias estadunidenses é uma boa para o Brasil?

Não enxergo diferença ontológica entre o direito brasileiro e o dos países da tradição do common law. Em ambos os casos, o direito sofreu forte influência da moral cristã. As doutrinas filosóficas em voga puseram em primeiro plano o individualismo, o liberalismo e a noção de direitos subjetivos. A própria substância do direito – a concepção de justiça que, em ambos os casos, é a mesma – impõe semelhantes soluções para as questões jurídicas em ambos os casos.common law

Ademais, do ponto de vista do pós-positivismo no Brasil (ou de um neoconstitucionalismo) – que traz para o direito questões que se situavam fora das fronteiras do discurso jurídico: política, direitos sociais fundamentais e, sobretudo, uma potencial transformação da sociedade pelo direito –, a fusão do direito brasileiro em uma perspectiva de direito global é ainda mais necessária.

O ordenamento jurídico brasileiro deve dar efetividade às normas constitucionais substantivas, que, por sua vez, protegem valores como igualdade, segurança e celeridade nas decisões judiciais. Diante dessa necessidade, o Estado brasileiro é sempre obrigado a levar em consideração ideias ou mecanismos que melhorem a prestação jurisdicional como um todo.

Mas será que essa absorção, embora tardia, não está por demais acelerada? E, sobretudo, será que esse “transplante” não está carecendo de adaptações a esse organismo vivo que é o Brasil?

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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domingo - 17/07/2022 - 09:42h

O realista escandinavo

Por Marcelo Alves

Em regra, relacionamos a expressão “realismo jurídico” a uma escola desenvolvida nos EUA na virada do século XIX para o XX e, até mais interessantemente, durante os anos 1930. Mas a história do direito registra um segundo realismo, o escandinavo, que teve como expoentes Axel Hägerström (1868-1939), Vilhelm Lundstedt (1882-1955), Karl Olivecrona (1897-1980) e, mais badaladamente, Alf Ross (1899-1979). E é sobre este último pensador que conversaremos hoje.Alf Ross

Alf Niels Christian Ross nasceu em Copenhague, na Dinamarca, em uma família de classe média. Formou-se em direito, na universidade da sua terra, em 1923. Correu pela Europa, especialmente pela Inglaterra, França e Áustria (onde conheceu Hans Kelsen), durante mais de dois anos. Tentou sem sucesso um doutorado na Universidade de Copenhague. Foi trabalhar com o já citado Axel Hägerström na Universidade de Uppsala, na Suécia.

Ali obteve o seu primeiro doutorado em 1929, título que viria também a obter, finalmente, na Universidade de Copenhagen, em 1935. Em Copenhagen, foi professor de direito constitucional e de direito internacional. Além de jusfilósofo e grande nome do realismo jurídico, Ross foi um prático do direito, como consultor a serviço do seu país e juiz da Corte Europeia de Direitos Humanos, em Estrasburgo, na França.

A obra de Ross é vasta e, para além da filosofia jurídica, mergulha nos ramos do direito versados pelo autor. Como não sei dinamarquês, vou citar alguns títulos em inglês: “Towards a Realistic Jurisprudence: A Criticism of the Dualism in Law” (1946), “A Textbook in International Law” (1947), “Constitution of the United Nations” (1951), “Why Democracy?” (1952), “On Law and Justice” (1959), “Directives and Norms” (1968) e por aí vai. Destes, destaco o badalado “On Law and Justice”, que possuo em português, numa edição da Edipro, de 2000, com o título “Direito e Justiça”. Citarei o dito cujo aqui.

Antes de mais nada, é preciso destacar a oposição de Ross – e, de resto, dos demais realistas escandinavos – a uma “metafisica” do direito, no sentido de supervalorização de verdades a priori, sejam elas verdades jusnaturalistas ou positivistas. E a caracterização do fenômeno jurídico com fundamento no que é realmente decidido pelos operadores do direito, inclusive influenciados por fatores psicológicos que todos nós carregamos (e, aqui, enxerga-se uma grande aproximação com realistas americanos da segunda fase).

RETIRO DE “DIREITO E JUSTIÇA” algumas sacadas de Ross. Quanto ao jusnaturalismo, ele chega a tê-lo com uma “prostituta”, que está à disposição de qualquer um. Afinal, para ele, não existe ideologia “que não possa ser defendida por um apelo à lei da natureza”. Quanto ao positivismo, ele desdenha da crença de um infalível “poder do legislador para reformar a comunidade e o direito de acordo com a razão”. Para ele, “a regra jurídica não é verdadeira nem falsa; é uma diretriz”.

E diz: “associativamente às grandes codificações, o legislador, na vã esperança de preservar sua obra, tem proibido, amiúde, a interpretação das normas e que a prática dos tribunais se desenvolva como fonte do direito. (…). Na Dinamarca, depois da aprovação do Código Dinamarquês, em 1683, proibiu-se que os advogados citassem precedentes perante a Corte Suprema. A medida foi rescindida em 1771. Essas proibições drásticas se provaram ineficazes (…)”. Para ele, atribuir valor sagrado à lei (e mesmo a um precedente vinculante), em condições sociais mutantes, seria grave formalismo e uma ofensa ao que se costumou chamar de “equidade material”.

Ross não é nenhum radical, que fique claro. Na verdade, é muito interessante – e salutar – a sua noção de direito e de justiça. Ele reconhece a necessidade de um ordenamento jurídico positivado, com racionalidade e objetividade, que, sem dúvida, dará estabilidade, previsibilidade e igualdade ao direito de determinado país. E afirma que a norma positivada deve ser o fundamento inicial da decisão judicial (até para termos alguma proteção contra as subjetividades do juiz do caso). Mas a norma positivada deve ser aplicada por uma subjetividade/juiz, sejamos “realistas”. E aí que está: como fazer isso corretamente, com equidade? Numa ciência jurídica em que muitos querem se ver livres das “amarras” da lei, Ross prega uma realista objetividade na sua aplicação: deve-se trabalhar com o típico, o normal, na aplicação diária da lei. Sem invencionices que levem a desvios de padrão.

Há normas que apresentam ambiguidades de significado e alcance, permitindo/exigindo do juiz uma maior elasticidade de interpretação. Mas, mesmo nesses casos, o juiz deve prezar pela razoabilidade e experiência dos seus pares. A sua decisão será objetivamente justa quando estiver dentro do típico normal; do contrário, será perniciosamente injusta.

Gosto desse norte realista do direito e da justiça de Ross. Parece-me objetivo e operante.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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domingo - 17/07/2022 - 08:20h

Eu sou, porque nós somos…

Por Marcos Araújo

Apesar do atual uso (e abuso!) de palavras como resiliência, sororidade, solidariedade, tolerância, diversidade, e, por razões de saúde pública, distanciamento e isolamento social, opostos que significam – e ressignificam – o comportamento humano, vale a pena trazer à reflexão a reestruturação social que estamos vivenciando no final deste primeiro quartel do século XXI.

Crianças Xhosa mostram o que é ubuntu - eu sou porque nós somos (Reprodução)

Crianças africanas mostram o que é ubuntu – “eu sou, porque nós somos” (Reprodução)

Tudo que é sólido desmancha no ar, escreveu o filósofo  estadunidense Marshall Berman para criticar a modernidade, e ele tem absoluta razão. Nas últimas décadas, só se falou em energia limpa (solar, eólica e hidráulica), e agora, com a guerra da Rússia x Ucrânia, percebemos que a energia “suja” (carvão mineral e vegetal, energia nuclear, petróleo e gás natural) é quem predomina no mundo.

O risco de desabastecimento de combustíveis fósseis obrigou recentemente Joe Biden a se ajoelhar diante do Conselho de Cooperação do Golfo (a união de seis estados do Golfo Pérsico: Omã, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Qatar, Bahrein e Kuwait).

Também em razão da guerra, as nações estão refluindo suas exportações de alimentos e outros bens de primeira necessidade, buscando a autossuficiência. O mundo em breve deixará de ser a “aldeia global”, na expressão do filósofo canadense Marshall McLuhan, pois barreiras nacionalistas estão sendo erguidas rapidamente. Contam-se já aos milhões os refugiados e apátridas…

O pessimismo, a descrença, a depressão e outras patologias psíquicas avassalam a humanidade. Tem muita gente se armando e outro tanto se matando, sem causa aparente. A prática de doomscrolling (o termo se refere à tendência de navegar na internet e redes sociais em busca de más notícias) está disseminada. Um vazio existencial coletivo tomou de “assalto” a alegria e a vida de nossas cidades. Até Paris (e seus bistrôs), que no dizer de Ernest Heminguay era uma festa, ficou sem graça. O Rio deixou de ser lindo, e Roma não pode mais ser chamada “a cidade eterna”.

A regra agora é a desconfiança, prevalecendo a máxima de Paul Léautaud de que “ser inteligente é ser desconfiado, mesmo em relação a si próprio”.  Nem no médico,  que em tempos de outrora segurava sua mão no momento da cirurgia, nem mesmo no Padre, que amparava suas angústias e guardava suas confissões…

Existirá ainda alguma esperança neste mundo cáustico e caótico?  Claro que sim! A experiencia humana ao longo da história tem demonstrado que a sobrevivência da espécie depende da fórmula racional musicada por Tom Jobim na sua canção “wave”: “fundamental é mesmo o amor, é impossível ser feliz sozinho”. Somos todos interdependentes. Ninguém é capaz de viver sozinho, ainda que se noticie uma proposta idiota de um hotel para mínimos em órbita espacial.

É PRECISO revitalizar o sentido etimológico da palavra “Sociedade”, que em termos mais precisos significaria “sócio na metade”. Somos todos “sócios” uns dos outros. Como afirma Durkheim, a sociedade não deve ser um amontoado de indivíduos, mas um sistema organizado deles, numa unidade cultural, solidária, econômica, política e plural.

O sociólogo francês Edgar Morin insistia que “não só os indivíduos estão na sociedade, mas a sociedade também está nos indivíduos”.  O sentimento de pertença a uma comunidade deve ser o instinto de sobrevivência prevalente. Se eu sou “sócio” na “metade” do outro, essa outra metade pode estar passando fome, desempregada, sem escola, sem perspectiva, doente, sofrendo preconceito…

As pessoas devem saber que o mundo não é uma ilha. Eu sou humano, e a natureza humana implica compaixão, partilha, respeito, empatia. Uma sociedade sustentada pelos pilares do respeito e da solidariedade faz parte da essência de Ubuntu, filosofia africana que trata da importância das alianças e do relacionamento das pessoas, umas com as outras.

Na língua Zulu, Ubuntu significa “Eu sou, porque nós somos”. Aos que se dizem cristãos a filosofia do Ubuntu deve ser um frontispício mental, posto que, como enfatizado pelo Papa Francisco, “No diálogo com Deus não há espaço para o individualismo”.

Marcos Araújo é advogado e professor da Uern

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domingo - 10/07/2022 - 09:30h

Diferenças no common law

Por Marcelo Alves

A pedido de amigos, vou voltar a uma temática tratada dia desses, o common law, a conhecida tradição jurídica anglo-americana, desta feita para abordar algumas diferenças entre os direitos dos dois principais países a ela filiados, o Reino Unido e os Estados Unidos da América.

Sede da Suprema Corte dos Estados Unidos (Foto: Web)

Sede da Suprema Corte dos Estados Unidos (Foto: Web)

Como sabemos, a formação dos EUA remonta à fundação, pelos ingleses, nos albores do século XVII, de colônias independentes no chamado novo mundo (a primeira, em 1607, foi a Virginia). E, hoje, com a exceção do estado da Luisiana, o direito dos EUA está identificado com os princípios do common law inglês: conceitos semelhantes do direito e de suas funções, divisões similares quanto aos seus ramos, desenvolvimento de institutos jurídicos idênticos (torts, trust etc.) e um papel fundamental para o precedente judicial, entre outros.

Entretanto, no decorrer da história, o direito americano adquiriu características que o fazem diferir do direito inglês. A existência de uma Constituição escrita e rígida, o princípio da supremacia da constituição, o fato de ser uma federação, a descentralização do Poder Judiciário, a existência de alguns códigos, para citar as mais importantes, são singularidades que de fato fazem o direito americano algo diferente do seu modelo inspirador.

COMPREENDE-SE ISSO BEM quando se faz uma comparação direta entre alguns aspectos dos dois sistemas jurídicos. Victoria Sesma, com o seu “El precedente en el common law” (Civitas, 1995), nos poupa parte desse trabalho: “Em primeiro lugar, a fundamentação do direito do common law (isto é, que o direito está baseado na autoridade não escrita do costume) é rejeitada nos EUA, onde está claro que a Constituição é a fonte fundamental e superior do sistema jurídico dos EUA. (…). Além disso, a Constituição americana prevalece sobre qualquer lei, enquanto que na Inglaterra o poder do Parlamento é ilimitado. Isto tem levado a que (devido à frequente necessidade de interpretação de preceitos constitucionais) os juízes dos EUA tenham enfrentado muito mais que os ingleses problemas de política pública (public policy), em particular no conflito entre direitos inalienáveis (vested rights) e política do estado social (social state policy). (…). Em segundo lugar, os EUA (diferentemente da Inglaterra) têm uma estrutura federal em que há dois sistemas de tribunais: estaduais e federais. Aqui não somente existem jurisdições próprias em cada estado, como também há uma multiplicidade de jurisdições federais ao longo de todo o território dos EUA e não somente na capital federal. A dispersão da organização judicial nos EUA acarreta problemas que não se apresentam na Inglaterra, e se tende a adotar atitudes mais flexíveis a respeito da autoridade das decisões judiciais. Em terceiro lugar, a necessidade de uma sistematização do direito se sentiu antes e mais urgente nos EUA que na Inglaterra, devido à quantidade de material jurídico, que é tanta, que se tornou praticamente inviável administrá-lo”.

Por fim, no que tange aos precedentes judiciais, área de minha expertise, o direito americano possui uma visão bem peculiar. Se bem que a função do precedente seja basicamente a mesma, os conceitos dos institutos sejam os mesmos, ele é mais flexível, mais pragmático e menos conservador que o direito inglês. Como regra, os precedentes devem ser seguidos porque, no interesse da sociedade, o direito deve ser estável e uniforme.

Mas, como consta da decisão da Supreme Court em Hertz v. Woodman 218 US 205 [1910], a regra do stare decisis não é inflexível. Mesmo em se tratando de um precedente a priori obrigatório, os tribunais americanos não se consideram obrigados a segui-lo se ele não prima pela correção e razoabilidade; ademais, a validade de um precedente está condicionada à situação política, econômica e social presente.

As diferenças são justificáveis. Primeiramente, o número de precedentes nos EUA é colossal. Um sistema de Justiça Federal, ao lado de dezenas de sistemas estaduais, faz com que se tenham comumente precedentes contraditórios. E isso dá aos juízes a possibilidade de escolha do precedente mais adequado. Em segundo lugar, a rápida expansão americana implica mudanças políticas e sociais e isso sugere, comparando-se com a conservadora Inglaterra, que a estrita adoção da doutrina do stare decisis seja mais problemática.

Por derradeiro, as questões constitucionais têm um papel crucial nos EUA. A interpretação do direito constitucional – eminentemente político – é caracterizada pela flexibilidade. E essa flexibilidade, na aplicação dos precedentes judiciais constitucionais, contamina, em maior ou menor grau, as outras áreas do direito. Fato!

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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domingo - 10/07/2022 - 08:26h

Momento difícil – perdi o filho e a mãe

Por Ney Lopes

Faleceu na última segunda, 4, a minha mãe Neuza Lopes de Souza, 99.

A causa mortis Covid 19, enfarto agudo do miocárdio, pneumonia e lesão renal aguda.

Enfrento mais um grande choque emocional, após a morte de Ney Junior, em novembro passado.

Dores profundas atingem toda família.depressão, tristeza, solidão, perdas, fim, melancolia

Em época de volta à política, como pré-candidato ao senado, perdi a força e o estímulo de um filho, que era vocacionado e preparado para a vida pública.

Não tenho mais a sua presença, nem as suas palavras de solidariedade, um sentimento que a cada dia parece desaparecer.

Como se não bastasse, falta-me agora também a convivência física da minha mãe, que partiu e se encontrou com Ney Jr.

O funeral dela foi no Cemitério do Alecrim, em Natal sepultada no túmulo onde estão o meu Pai Josias de Oliveira Souza, o irmão Gileno Lopes de Souza e a minha avó, Mafalda de Araújo Souza da Fonseca.

O Alecrim traz recordações, por ser o símbolo da nossa vida familiar.

Lembra fatos vividos há anos, ao lado dela, de papai e irmãos.

Naqueles tempos, muitos sonhos vicejavam na minha mente cheia de fé e confiança em um futuro, que parecia custar a chegar.

O meu pai, Josias, veio do Açu e instalou a alfaiataria Globo, na avenida um.

Morávamos na rua Presidente Quaresma, onde residiam as famílias de Sinval Poti, Dr. Vicente Dutra, Dr. Hildebrando Matoso, Paulo Bulhões, Coronel Jovino Lopes, capitão Gurgel, José Fernandes, o casal Wellington e Etelvina, Marcilio e irmãos, Bráulio da movelaria (pai do escritor e jornalista Alex Nascimento), Miguel do Armazém Estrela, Esaú Vilela, Pedro Costa e outros.

Aos sábados ia na companhia dos meus pais à feira do Alecrim.

Teve razão o cordelista Elinaldo Medeiros, quando recitou à época: “Amigo vou lhe dizer, ouvinte vou te contar. Se arrume, pois, sábado vamos juntos passear, e na feira do Alecrim maravilhas vou te mostrar”.

Aos domingos despertava às quatro da manhã e com a família, assistia à missa na Igreja de São Pedro.

Lá estava aquilo que o notável cronista Sanderson Negreiros chamou de “multidão de personagens”, a maioria composta de congregados marianos, filhos de Maria, fiéis.

No altar, a figura do padre Martinho, falando com sotaque polaco, gestos largos e voz aguda.

Ele chegava à Igreja antes do início da missa e sempre estava na porta, cumprimentando a todos.

Após a missa, convidava alguns fiéis para o café da manhã na casa paroquial, ao lado.

Frustrava-me nunca ser convidado.

O Cemitério do Alecrim me traz outras recordações.

Em 1959, perdi o primeiro familiar próximo.

Lá deixei a minha avó materna Idalina, suave, santa, abnegada.

Depois, o meu avô materno Manoel Lopes da Silva Neto.

Em 1980, a figura humana e humilde do meu pai, Josias. 

Sanderson definiu bem o Cemitério do Alecrim, como um lugar onde “os epitáfios esplendem ao sol de verões penitentes e invernos dourados pela lembrança”.

Trago comigo a imagem da avenida um onde morei anos e seus personagens.

O posto do SAPS, situado no centro do bairro, era o Serviço de Alimentação da Previdência Social, criado por Getúlio Vargas para vender alimentos baratos à população.

Diariamente, recebia o encargo de mamãe para entrar em filas intermináveis e comprar o pão.

Na memória, figuras respeitadas como “seu” Álvaro Navarro, Celso Dutra e Wober Pinheiro, donos de farmácia, que amenizavam a dor dos seus clientes, com receitas prontas e eficazes; do “seu” Chiquinho, “seu” Artur e “seu” Juvenal Faria, todos fazendo as vezes dos supermercados de hoje, com varejo e atacado “sortidos”; dos cinemas São Luiz e São Pedro semeando a fantasia fugaz de romances (Casa Blanca; E o Vento Levou), duelos (seriados de caubóis: Rod Cameron e outros) e épicos inesquecíveis (Quo Vadis).

Amanhã, 11, será a missa de sétimo dia.

Um dia de intensa saudade de um passado já tão distante, que continua vivo no coração.

Momentos emocionalmente difíceis estou vivendo.

Somente a crença no reencontro conforta-nos, além da resignação cristã pela manifestação da vontade de Deus.

Ney Lopes é jornalista, advogado e ex-deputado federal

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domingo - 03/07/2022 - 13:44h

Lembranças

Por Inácio Augusto de Almeida

O time tricampeão do Flamengo era Garcia, Tomires e Pavão. Jadir, Dequinha e Jordan. Joel, Rubens, Índio, Benitez e Esquerdinha. Por que decorei o nome de todos os jogadores? Porque Dequinha era mossoroense. E isto fazia com que o menino sonhador que eu era se imaginasse parte daquele grupo.olhos negros, mulher, olhos

Da menina que na janela ficava todas as tardes me lembro muito bem. Lembro até que nunca ouvi uma só palavra pronunciada por aquele anjinho de olhinhos e cabelos negros.

Montava bem a cavalo, com ou sem sela e me imaginava um cowboy mais destemido do que Roy Rogers. Das revistas em quadrinhos gostava de todas e viajava junto com o Zorro e o Tonto.

Colocava talo de jaca com alpiste para pegar passarinho, que logo em seguida soltava por perceber o sofrimento nos olhos do galo de campina ou do canário. Tinha uma baladeira, mas só atirava pedra nas mangas e cajus.

O tempo passa rápido…

Aos poucos fui fazendo amizades no colégio. Wanderley, Lobato, Antônio. Wanderley virou bancário e Lobato dono de farmácia. Do Antônio nunca mais tive notícia.

Iolanda foi a namoradinha do primeiro beijo. Mocinha de saia azul e blusa branca como normalista que era.

Aí chega a verdade da vida e tenho que trabalhar de dia e estudar de noite.

Vejo a Iolanda casando. Passei a namorar Georgeteh. Naquela idade o coração suporta bem as dores de amor. Casei, tive filhos que cresceram e seguiram seus caminhos. Hoje restam lembranças, doces e amargas.

Saudade tenho do tempo de lateral esquerdo do Graça Aranha de São Luís do Maranhão. Eu me julgava um Nilton Santos. Daquela época, lembro bem de num programa de calouros, as rádios tinham programas de auditório, ter cantado ALGUÉM ME DISSE, anasalando a voz para parecer Anísio Silva, o cantor sucesso da época.

Que ninguém diga que eu não tentei.

Nesta tarde ameaçando chuva, flashs de momentos divertidos. Mas não esqueço dos momentos duros, difíceis. Imagino se me fosse permitido voltar para tudo viver novamente.

Eu aceitaria ou recusaria? Não sei.

Não sei porque acredito que vivemos para seguir em frente na escala evolucional e o passado pertence ao passado. Até seria bom reviver momentos significativos do meu passado. Momentos que enchem meu coração de saudade.

Lembro que assim aconteceu com meus pais e fico a pensar ser a vida uma reprise com variações mínimas, quase imperceptíveis. Basta ver que vivemos mais para os filhos do que para nós mesmos.

Melhor não aceitar recomeçar e entender que o maior encanto da vida é caminhar.

Hoje preso numa cama, vítima de uma maldita ou bendita artrose, certeza tenho de que a morte não me assusta. Estas malditas dores e mais acreditar que a morte não é o fim, afastaram de mim todo o medo da passagem que em breve acontecerá.

Mas, se eu estiver enganado e a morte for o fim? Se apenas escuridão existir? O que farei?

Um eterno ronco será a minha resposta a esta brincadeira sem graça do Criador.

Bendita artrose que me permite voltar ao passado e fazer estas reflexões. Maldita artrose que tanta dor me causa.

E assim constato que a vida é céu e inferno a um só tempo.

Fecho os olhos e em vão procuro a estrela em que a menina de olhinhos negros se escondeu.

Inácio Augusto de Almeida é escritor e Jornalista

Crônica dedicada ao professor Odemirton Filho

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domingo - 26/06/2022 - 12:40h

Bendita compreensão

Por Inácio Augusto de Almeida 

Tem dia que não bate uma saudade. Nem forte nem fraca. Simplesmente não bate saudade alguma. No peito, aquela agulhada no coração, provocada por lembranças que teimam em se fazer presentes. Lembrança, fotografia, fotógrafo, lambe-lambe

Sabe que não é saudade o que lhe incomoda, pois entende ser saudade a lembrança de momentos bons, alegres e com os quais todos sonham, numa hipotética volta ao passado.

Novamente viver? Sabe ser impossível. A vida não é uma fita de vídeo.

O que mexe com ele são as lembranças que não ficaram como saudades.

Lembranças que, às vezes, comportam-se como um duro promotor, de dedo apontado para seu peito, gritando erros cometidos há anos. Erros não esquecidos, e que teimam em atormentá-lo com cobranças cabíveis por conta de loucuras cometidas e que, quando repassadas, vê, com total clareza, o quanto foi insensato, procedendo de maneira tão condenável aos olhos de agora.

Num instinto de defesa, grita que jamais procedeu de forma intencional quando agia daquela maneira, agora entendida como tresloucada.

Lembra de tanta coisa. E de tantas coisas ri, enquanto o promotor, com olhos esbugalhados e com uma baba escorrendo pelo canto da boca, teima em aparecer com cobranças já prescritas.

O tempo tudo cura. Cura quando lhe mostra o quanto mudou daqueles dias para cá. E dia a dia, através do processo natural de amadurecimento, passou a entender que o ele de hoje é outro totalmente diferente.

Foram mudanças lentas, progressivas, imperceptíveis, mas tão profundas que às vezes não se reconhece de imediato e pensa até mesmo ser uma outra pessoa.

E assusta-se ao tentar imaginar como será o amanhã. Chega até mesmo a sentir medo do novo eu, que fatalmente surgirá.

Tem agora consciência de não ser possível mudar o que está em constante mutação…

Aprendeu, pelo sofrimento, que sabedoria sem humildade é como piscina sem água. E, principalmente, que não se adquire sabedoria através da cultura, mas do dia a dia. Lembra-se de Patativa do Assaré e de Cora Coralina a produzirem cultura fazendo uso de um palavreado simples, bem diferente da linguagem rebuscada, utilizada por intelectualóides que mascaram o vazio do amontoado de palavras, escrevendo de uma maneira que obrigaria até Champollion ao uso de dicionário.

Fazem isto para parecer coisa de algum valor as baboseiras que escrevem. Acha tudo isto um sarro. Ou é um medíocre a buscar um academicismo do qual está distante anos luz?

Hoje, prefere repartir o pouco conhecimento com todos a se isolar para posar de intelectual.  Faz, assim, a opção pela generosidade mental.

Aprendeu que a vida é compartilhar. O resto é frescura de egoístas de corruptelas, condenados ao esquecimento.

As lembranças amargas já não lhe provocam tantas dores. Entende perfeitamente que a maneira equivocada como procedeu foi determinada por conhecimentos limitados. O meio lhe encheu de falsos valores. E o maior deles foi achar que felicidade era TER.

TER e ostentar, achava ser o suficiente para mostrar-se um vencedor.

Hoje, vê corruptos agindo desta maneira, e ri. Ri ao constatar que quanto mais pobre o meio social de origem, maior a necessidade de ostentação…

O tempo é capaz de transformar egoístas em generosos. Mas isto só acontece com os que não ficam estáticos e compartilham conhecimento, num alegre jogo de dar e receber, só possível aos de espírito generoso.

Tudo isto avalia, e se convence de que os erros cometidos resultaram da imaturidade de um tempo que foi vivido de forma compatível ao ser que ele era naquela época. E que não podia ser diferente do que foi.

Será que daqui a alguns anos este mesmo sentimento de culpa não irá surgir e um outro promotor vai aparecer no seu imaginário para lhe acusar dos atos praticados hoje?

Será que este incansável acusador se fará presente até o último dia de sua vida?

Vida que nada mais é do que mudanças constantes.

Melhor deixar estes questionamentos de lado, procurar esquecer as lembranças e se refugiar nas saudades.

As saudades são sempre doces …

Inácio Augusto de Almeida é escritor e jornalista

Crônica dedicada ao Pe. Sátiro.

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domingo - 19/06/2022 - 11:36h

Do que você deve desconfiar quanto ao Direito

Por Honório de Medeiros

1) O Direito não é uma ciência.

Somente crê que o Direito é uma ciência quem não conhece filosofia da ciência ou defende sua cientificidade com propósitos indignos.Gato preto de olhos azuis

O corolário desse postulado é que cai por terra, assim, o uso do “argumento da autoridade” na defesa de interpretações cabotinas.

2) O Direito não tem qualquer relação com o Justo.

Como não se sabe o que é o Justo, ou a Justiça, não se pode afirmar, em qualquer circunstância, que o ordenamento jurídico seja um instrumento para a obtenção da justiça.

3) O ordenamento jurídico é um instrumento do Estado, não da Sociedade.

Tanto o é que pode se voltar contra a Sociedade. Quando a Sociedade dobra o Estado, como nas revoluções, cai o ordenamento jurídico.

4) O ordenamento jurídico é um instrumento de opressão.

Em todos os tempos e lugares o ordenamento jurídico é um instrumento de opressão do Estado sobre a Sociedade, entretanto vale o dito: ruim com ele, pior sem ele, havendo democracia.

5) O ordenamento jurídico reflete a estrutura de poder das elites dominantes, a correlação de forças políticas existentes em um determinado momento histórico.

Muito embora decisões esporádicas que contrariem o sistema político dominante possam surgir, elas dizem respeito a espasmos isolados que não comprometem sua lógica interna e externa de manifestação dos interesses das elites políticas dominantes.

6) A norma jurídica constitucional, ou os princípios constitucionais, por ser abstrata e difusa, quando da sua interpretação, refletirá ainda mais claramente a correlação de forças políticas existente em sua circunstância específica.

7) Não há qualquer parâmetro científico que possa nortear uma interpretação de normas ou princípios jurídicos. Os parâmetros existentes são puramente retóricos.

8) Os juízes, promotores, advogados, policias, enfim, os serventuários da Justiça são servidores do Estado, não da Sociedade e consolidam, ao agirem, enquanto correia de transmissão, sistemicamente, a repressão estatal.

9) Muito embora o Estado emerja da Sociedade, pode se voltar contra o ambiente social – e o faz – no qual foi concebido.

10) O ensino do direito positivo, com raras e honrosas exceções, ensina o manejo da norma jurídica, sem permitir o desenvolvimento das condições críticas necessárias para domina-lo, quanto aos seus fundamentos e finalidades, assegurando assim, a manutenção e reprodução do status quo.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 19/06/2022 - 09:02h

A formação no foro

Por Marcelo Alves

Common law (a tradição anglo-americana) e civil law (a tradição romano-germânica ou continental) são as duas grandes famílias jurídicas do Ocidente, cada qual com origem e desenvolvimento próprios. Apesar da progressiva interação entre elas, não se pode ainda negar a realidade de tal dicotomia.pilares-del-tribunal-supremo-de-estados-unidos-18072771

Isso implica um modo diferente de enxergar o direito pelos juristas – e, sobretudo, pelos seus “operadores” – de uma e outra família. Como diz José Luis Vasquez Sotelo (em “A jurisprudência vinculante na common law e na civil law”, que consta do livro “Temas atuais de direito processual ibero-americano”, Forense, 1998), “o direito do common law tem tido sempre para os juristas do continente europeu um aspecto misterioso, por sua falta de Códigos e de grandes leis e por estar baseado na experiência”.

Por sua vez, “é conhecida a expressão que alude a que, se um jurista inglês se aventurasse na região da filosofia jurídica do Continente, se acharia como um estrangeiro em um país estranho, com homens que lhe falam um idioma desconhecido (…)”. Há um certo exagero aí, reconheçamos, sobretudo nos dias de hoje, com a globalização e interação digital que vivemos. Mas algumas diferenças eram e ainda o são, em boa medida, curiosas.

Darei dois exemplos quanto ao modo de pensar e à formação dos juristas do common law.

Quanto ao modo de pensar, sobretudo no passado, era bem nítida a distinção entre o operador do direito do common law e o do civil law. Naquele, os operadores do direito (juízes, advogados etc.) consultavam quase que exclusivamente os precedentes judiciais; neste, a legislação. E não há dúvida de que, ainda hoje, o modo de pensar do juiz do common law é diferente do modo de pensar do juiz do civil law. A Inglaterra continua sendo o principal exemplo disso, como expõe Sotelo:

– “Quando um jurista inglês estuda a solução aplicável consultando metódica e conscientemente as coleções de precedentes, após encontrar a solução, ele se pergunta se aquele ponto de vista terá sido modificado por alguma lei, consultando para isto o conjunto da Legislação. Um jurista de civil law busca, no Código ou na lei, a solução para o caso em questão. Um jurista do common law somente vê, na lei, as possíveis exceções à solução dada pelos precedentes vinculativos. Disso, ademais, resulta uma consequência importante: os statutes ou leis em sentido estrito, já que são regulamentações de exceção, devem ser interpretadas restritivamente”.

E quanto aos EUA, registra Eduard D. Re (em “Stare Decisis”, artigo publicado na Revista Jurídica, n. 198, abr. 1994) que Benjamin N. Cardozo (1870-1938), célebre Justice da Suprema Corte, disse: “a verdade é que muitos de nós, criados nas tradições do common law, encaramos a legislação com uma desconfiança que podemos deplorar, mas não negar”. E que Harlan F. Stone (1872-1946), outrora Chief Justice (Presidente) afirmou, sobre essa desconfiança, que “os tribunais do common law têm dado relativamente pouco reconhecimento à legislação, enquanto ponto de partida para formação de suas decisões, se a compararmos à força que emprestam aos precedentes”.

Outrossim, e até mais curiosamente, os grandes juristas do common law, em regra, tiveram sua formação no foro e não nas universidades. A maior prova disso é que, dentre os “antigos”, os maiores tratadistas do direito inglês foram exatamente os grandes juízes. Basta lembrar Bracton (1210-1268), Edward Coke (1552-1634) e William Blackstone (1723-1780), este sempre reverenciado, quando se fala do common law, por sua obra “Commentaries on the law of England” (1765-1770). Quanto ao direito americano é impossível falar dele sem mencionar juízes como John Marshall (1755-1835), Oliver Wendell Holmes Jr. (1841-1935) e Benjamin Cardozo, entre outros.

Aliás, lembra Sotelo que Roscoe Pound (1870-1965) quis expressar “a contraposição entre os dois sistemas afirmando que, enquanto o Direito anglo-americano é um Direito dos Tribunais, cujos oráculos são os Juízes, o do Continente é um Direito de Universidades, cujos oráculos são os Professores. A diferença metodológica pode ser representada claramente contrapondo-se um ‘Direito de Juízes’ a um ‘Direito de Catedráticos’”.

Bom, vocês poderiam me contrapor citando o próprio Roscoe Pound, que foi um professor. E um gigante. Ou mesmo Lon Fuller (1902-1978), Herbert Hart (1907-1992), Jonh Ralws (1921-2002) ou Ronald Dworkin (1931-2013). Mas esses últimos foram sobretudo filósofos e não “operadores” do direito. E são mais modernos. Quase de hoje. E as coisas mudam, sabiam?

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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domingo - 19/06/2022 - 06:28h

“Os donos das calçadas”

Por Marcos Araújo

Início da década de 70, no século passado, Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho compuseram a música “o dono das calçadas”. A letra, segundo os autores, destinava-se a emoldurar a vida de Nelson Gonçalves, à época o mais célebre intérprete da boemia. O desejo dos autores era retratar a ocupação e a reinação dos boêmios nas calçadas dos bares, um espaço singular dos botequins cariocas.calçada, sombra

Fora da simbologia poética, para que servem as nossas calçadas? No plano urbanístico, qual utilização tem sido dada a este importante espaço em nossas cidades? Qualquer ser vivo responderia de pronto: servem para abrigo de lanchonetes improvisadas, quiosques fixos para venda de materiais importados e falsificações chinesas, lixões de entulhos, estacionamentos privados para automóveis, pontos de camelô, trailer com ótica ambulante, e até oficinas de carros. Em diversos setores da nossa cidade, as calçadas funcionam para tudo, menos para a mobilidade dos pedestres.

A precariedade da infraestrutura urbana conta com a adversidade da apropriação ilegal do espaço público, tomada por esses clandestinos “donos das calçadas”. Sem boemia. Acho extremamente grave a omissão dos gestores públicos com a privatização dos passeios públicos (as calçadas). Em Mossoró, suprimiram do pedestre o direito de andar nas ruas do centro. Mesmo em avenidas mais amplas, como a Rio Branco e João da Escóssia, placas de “estacionamento privativo” são apostas nas vias públicas. E ainda com a ameaça do veículo ser “guinchado”, caso seja estacionado em frente a uma dessas lojas. O uso é “exclusivo para clientes em compra”.

Isto me faz lembrar um episódio pessoal com um juiz do trabalho já falecido, conhecido pela sua intolerância e grosseria. A Justiça do Trabalho em Natal funcionava na Av. Hermes da Fonseca. Em plena via pública, havia uma pintura no asfalto com a inscrição “estacionamento privativo para os Juízes”. Eu, um jovem advogado à procura de confusão, estacionei no local. Fui advertido por um dos servidores para que retirasse o veículo, senão seria rebocado.

Achei um desaforo e estabeleci uma longa discussão, com o servidor e depois com o magistrado, sobre a indevida apropriação do espaço público. Adverti-os de uma possível prática de improbidade, de uma representação ao Ministério Público e da convocação da imprensa, apenas para ser deixado em paz. Meu carro ficou por lá, sob impropérios e protestos da autoridade questionada.

Por aqui e alhures, os pedestres são os maiores excluídos da mobilidade urbana. Imaginem a dificuldade dos cadeirantes e das pessoas com reduzida capacidade de locomoção. O mau estado de preservação das calçadas e obstáculos que impedem o trânsito livre e seguro dos pedestres é considerado crime. O Código de Obras do Município de Mossoró, no art. 131 diz que “Os passeios públicos (calçadas) são bens públicos de uso comum do povo, de acesso livre, não podendo ser impedidos do trânsito de pedestres.”

O artigo 68 do Código Nacional de Trânsito proíbe qualquer utilização de calçada que impeça o trânsito livre dos pedestres. Também é frisado que os equipamentos urbanos nas calçadas não podem bloquear, obstruir ou dificultar a caminhada dos pedestres. Tudo em vão! Letra morta da lei.

O problema é de “ECF”, uma sigla para resumir a falta de Educação, Conscientização e Fiscalização. Este último seria o principal mecanismo modificador da realidade das calçadas de Mossoró. Que a Prefeitura faça o seu trabalho, já que a nossa educação e a nossa consciência assim não permitem. Fiscalizar também é educar.

Enquanto as providencias não são tomadas (sem muitas esperanças!), melhor voltar a Nelson Cavaquinho, o menestrel da Mangueira. Nelson era um ser desprendido das coisas e dos anseios materiais, vivendo de forma simples e intensa. Dentre as suas mais belas composições, elejo “A flor e o espinho”, em parceria com Guilherme de Brito e Alcides Caminha.

Para o poeta Manoel Bandeira essa música tem a frase mais bonita da música popular brasileira: “tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”.

Para sobreviver, Nelson compunha e depois vendia a letra da música para jovens cantores, uma prática comum nas primeiras décadas do século passado. Um dia, Cartola, seu parceiro em uma canção, estava em um bar escutando um samba de um novo compositor, quando reconheceu aquela música, e disse:

– “Ô meu amigo, esse samba é meu! Eu fiz esse samba com o Nelson”.

O sambista assustado, respondeu:

– “Eu comprei esse samba dele”.

Dias depois, ao encontrar Nelson em Mangueira, Cartola o interpelou:

– “Nunca mais serei seu parceiro, pois nós fazemos um samba juntos e você vende para os outros”.

Muito calmo e solicito, com aquela voz rouca que lhe era peculiar, Nelson respondeu:

– “Cartola, eu só vendi a minha parte da música. A outra parte é sua.”

Com base nesta historinha, aproveito para perguntar aos ocupantes das calçadas: se as calçadas são “patrimônio” dos pedestres, quem lhes vendeu a parte que me cabia?

Marcos Araújo é professor e advogado

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domingo - 12/06/2022 - 13:48h

O reflexo de Deus

Por Inácio Augusto de Almeida 

No quintal, olhando os primeiros frutos ainda não maduros da mangueira plantada quando cheguei, anos atrás, para morar nesta casa de quintal grande, neste bairro afastado, vi o que Deus faz e dificilmente notamos.frutos de mangueira, manga

Um simples caroço de manga transformado numa frondosa árvore com centenas de frutos a mostrar o milagre da multiplicação.

Olhando os frutos vi a grandeza maior e compreendi o quanto havia de beleza nas coisas que nos passam despercebidas.

Meu espírito viajou e sentiu-se na presença do Criador.

E me perguntei se um simples caroço de manga se transforma numa enorme mangueira, se qualquer semente, mesmo sem exigir cuidados, brota, cresce e mostra que a vida continua florescendo em toda a sua plenitude, por que então duvidar que o filho amado do Pai não consiga rebentar em nova vida e crescer, agigantar-se no renascer?

Os sinais de que continuaremos a jornada evolutiva estão em todos os lugares. Basta olhar com o coração.

Infelizmente não observamos com maior cuidado as estações do ano. Mas, mesmo com toda nossa desatenção, conseguimos ver que as folhas caem no verão e a vida se faz presente na primavera.

Isto apesar dos nossos olhos estarem sempre focados em futilidades. É a viseira do pragmatismo a nos deixar cegos para as coisas grandes e verdadeiramente importantes.

Tudo é belo, lindo, maravilhoso. A única coisa feia é o nosso olhar quando o afastamos do coração.

Veja um rio apenas com os olhos e certamente verás somente sujeira. Olhe este mesmo rio com o coração e ouvirás o zoar das cachoeiras, a beleza das corredeiras e a tranquilidade das calmarias. E mesmo o rio estando sofrendo a falta de amor do homem pela natureza, quando olhamos com o coração a poluição passará despercebida.

Um dia, quando eu não sei, nos convenceremos de que nossas angústias e medos são originados pelo desejo de sempre TER e SER cada vez mais e mais. Não colocamos limites para nossas ambições.

Ainda não nos convencemos que a felicidade está no FAZER. É o fazer o bem que nos permite crescer e nos coloca mais perto de Deus.

Já sabemos que nenhum bem faz mais bem ao coração do que o bem do amor. Então, vamos fazer o bem com amor e deitar por terra todas as dúvidas que nos assaltam quando da caminhada que empreendemos em busca da perfeição.

Perfeição que nos aproxima mais e mais de Deus.

Somos viajantes e nosso destino é o encontro maior.

O encontro com nosso Pai.

Volto a olhar as lindas mangas balançando por força da brisa vespertina deste dia tão lindo de céu azul anil e nuvens branquinhas como flocos de algodão que acabaram de brotar.

Como ter medo do renascer?

Inácio Augusto de Almeida é escritor e Jornalista

*Crônica dedicada à Sra. Sandra Rosado.

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domingo - 12/06/2022 - 08:04h

O acesso, literalmente

Por Marcelo Alves

Como já tive a oportunidade de dizer sobre “O processo” de Franz Kafka (1883-1924), há várias interpretações sobre este romance jurídico inacabado, que é, sem dúvida, uma das obras-primas da literatura alemã e da ficção em prosa do século XX. Sendo o absurdo existencial a tônica da sua narrativa, sendo a trama permeada pela loucura ou pelo absurdo, as interpretações sobre o seu leitmotiv são as mais variadas.O processo de Kafka - Livro

Já se disse ser ele uma meditação/análise/crítica sobre a burocracia estatal, sobre o totalitarismo, sobre Deus, sobre estados psicológicos, sobre a desesperança e a alienação do homem moderno, sobre a própria vida de Kafka e por aí vai. Cada uma dessas sacadas destacadamente ou tudo junto e misturado, o que deixa a coisa ainda mais, digamos, “kafkiana” (e me desculpem o gracejo).

Coisa parecida se dá especificamente com a parábola “Diante da Lei”, que está no capítulo 9 de “O processo”, como um dos núcleos do disputado romance, e na qual ao homem do campo é recusada – ou é autorrecusada, quiçá –, nas “portas” da Justiça, a “entrada na Lei”.

Para exemplificar algumas dessas interpretações sobre “Diante da Lei”, cito Modesto Carone em “Lição de Kafka” (Companhia das Letras, 2009): “no caso desse célebre texto de Kafka, a parábola pode sinalizar que o homem conhece seu objetivo, embora não conheça o caminho para ele, pois desvia a atenção dos fins para a existência do obstáculo, que se torna, ele próprio, a meta exclusiva dos seus esforços”.

Ademais, uma “outra abertura possível para o núcleo de significado da peça kafkiana é que o homem do campo se sente impelido pelo desejo de chegar à lei ou à justiça. Nesse aspecto, o personagem pode ser concebido como a representação de uma necessidade reprimida ou alienada que, acompanhando a curva da parábola, se vê fadada ao fracasso”.

Por fim, de forma mais concreta, “analisando mais de perto a perspectiva histórica do relato, o texto reflete tensões sociais – por exemplo as que existem entre os indivíduos que ‘têm sede de justiça’ e as autoridades que se negam a atendê-los.

Por esse prisma, o sarcasmo kafkiano, que é disfarçado mas corrosivo, se dirige contra uma hierarquia de instâncias fechadas típica da burocracia (principalmente a austro-húngara) com a qual Kafka, o advogado das causas trabalhistas, conviveu, e na qual certamente se inspirou. O longo caminho dessa burocracia (que se estruturou no Império pela mão forte da rainha Maria Teresa, descrita como o ‘maior homem da Áustria’) é a manifestação visível de um poder autocrático, que na narrativa impossibilita ao homem do campo exercer o seu direito”.

Tendo a ficar com as interpretações mais “pé no chão”, como a última das citadas acima. Com as menos complexas, trabalhando à moda da “Navalha” de Guilherme de Ockham (1288–1347), para ser chique. “Diante da Lei” seria um libelo poético contra as burocracias policial e judicial e, em especial, uma denúncia sobre a ausência de acesso à justiça e a impotência – autoinfligida, talvez? – do cidadão em relação a essa falta. Um retrato da absurdez dos processos judiciais, agora “kafkiana” desde o nascedouro, porque mostra a interrupção do acesso dos mais vulneráreis à “Lei” ainda na “porta” do aparelho judicial. Mas seria também um panfleto ou, mais ousadamente, um chamamento à ação? Provavelmente. De toda sorte, sob os prismas sociológico e jurídico, tudo mostra um Kafka conhecedor dos caminhos e das agruras dos jurisdicionados de então.

As coisas mudaram bastante desde os tempos de Kafka, é verdade. São cem anos no meio. No Brasil, por exemplo, sobretudo pós Constituição de 1988, tivemos vários avanços no que diz respeito ao acesso à justiça. Os mecanismos de tutela coletiva do tipo ação civil pública, os juizados especiais, a própria gratuidade da justiça para quem não possa arcar com seus custos, o incremento da Defensoria Pública, a mediação e a arbitragem como meios céleres para solução de conflitos de interesses, entre outras coisas, nos deixam sempre animados.

Mas será que o essencial mudou? Mudou suficientemente? O sistema judicial brasileiro – e de resto, dado o hermetismo característico, quase todos os sistemas judiciais – é ainda algo estranho ao povão. Faltam informações e condições materiais para uma litigância de sucesso. E ainda hoje lutamos contra “porteiros” mudos ou insensíveis. Kafka foi vanguardista a seu tempo. E também premonitório de problemas que ainda hoje enfrentamos quanto ao acesso à justiça, sobretudo para os mais necessitados, homens do campo ou da cidade.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República e doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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domingo - 22/05/2022 - 12:18h

O portal

Por Inácio Augusto de Almeida 

Céu azul sem uma nesga de nuvem a anunciar uma linda noite de estrelas brilhantes.

Tinha acabado de voltar e já fechava os olhos na tentativa de ir mais cedo para além do horizonte.

Lembrou-se da primeira vez que chegara àquele local… subir, escada, tênis, progresso,

De longe avistou uma grande igreja encimada com duas torres. A estrada de chão batido cercada de mato nos dois lados e o aviso da luz de combustível alertando ser preciso abastecer. Só então percebeu que o carro era diferente do seu e não sabia para onde estava indo.

Bem em frente da enorme igreja pessoas conversavam e crianças brincavam.

No ar um cheiro de felicidade.

Surpreso e alegre ficou quando pessoas a quem nunca antes tinha visto apertavam sua mão. Esqueceu até ali estar para colocar gasolina no carro.

Caminhando chegou a um casarão e certo ficou de que ali já estivera quando reconheceu a grande e bonita rede branca.

Subiu e do andar superior avistou um grande vale, onde cordeiros branquinhos se misturavam com a relva verdinha formando um lindo quadro. Ao fundo um lago.

Seus pensamentos viajavam e mergulhou em devaneios mil.

Tudo lhe pareceu tão diferente do descrito por Dante Alighieri…

Uma mão pousou no seu ombro e reconheceu a inconfundível voz do Lopes.

Lembra-se de ter ficado frente a frente com o Lopes, mas não ter visto o rosto do amigo. Apenas sentia sua presença.

Por estar gostando tanto do lugar acabou esquecendo da gasolina.

E muitos outros amigos viu, mas não se lembra de nenhum rosto.

Apenas sentia a presença de todos e entendeu porque enxergamos mais com o coração.

Sabia ter Lopes há muito feito a travessia e por lá ficado. Mas isto só percebia quando estava cá.

Pensou porque todos não iam logo para lá e ouviu de um amigo que só depois de cumprido o ciclo vital. Tolice querer antecipar a passagem.

Entendeu existir um mundo sem ambições, mundo de virtudes. Mundo só alcançável através do aperfeiçoamento nesta preparação para a travessia definitiva.

Olhou para o céu azul e riu.

Sabia não ter apenas sonhado. Sabia, mas precisava ter certeza absoluta. Certeza não se tratar de um simples sonho.

Deitou e relaxou. Aos poucos a igreja com suas duas torres, a grande praça e o casarão. Tinha conseguido o domínio da passagem. Era como se estivesse de posse da chave do portal.

Entendeu ser agora possível ir e vir quantas vezes quisesse.

Procurou pelo Lopes, mas não o encontrou. Começou a perguntar pelo velho amigo e ninguém sequer ouviu suas perguntas. Começou a entender que ali eles é que falavam quando queriam.

Sentiu-se um telefone que só podia atender, mas nunca chamar.

Notou a presença de Lopes e alegrou-se por não mais se sentir só na multidão. E Lopes foi direto ao assunto.

Explicou-lhe que a passagem definitiva só acontece no momento certo e que os apressados erravam o caminho e ali não chegavam. E lhe aconselhou, agora que tinha a certeza da existência de local tão maravilhoso, a dedicar o tempo que ainda faltava para a passagem definitiva a se melhorar mais e mais, porque, lá como cá, existiam várias escalas.

Antes que conseguisse dizer alguma coisa, Lopes continuou e perguntou se tinha percebido a presença de Teresa de Calcutá ou de Dulce. De Lampião ou de algum corrupto.

Imediatamente voltou e, deitado na cama, riu.

Riu e chorou.

Riu de felicidade por ter visto o outro lado.

E chorou por ter desperdiçado tantas oportunidades de se melhorar.

Olhou, não para o céu azulado e sem nuvens, mas para o teto do quarto onde um marimbondo buscava encontrar a janela para se livrar das limitações.

Inácio Augusto de Almeida é escritor e Jornalista

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domingo - 22/05/2022 - 10:50h

Livros e cidades

Por Marcelo Alves

Seja viajando profissionalmente, seja como turista ocasional, uma coisa que faço há tempos (aliás, fazia, quando viajava deveras) é relacionar o país ou a cidade para a qual estou indo com uma obra literária, de ficção ou não, e lê-la ou relê-la, antes ou mesmo durante a minha viagem.

Foto de New York (Reprodução)

Foto de New York (Reprodução)

Para mim, alguns livros tornaram-se a história, a cara e a alma de certas cidades. As leituras fazem o viajante, posso dizer neste caso. “Amor a Roma” (1982) de Afonso Arinos de Melo Franco, “Paris é uma festa” (“A Moveable Feast”, 1964) de Ernest Hemingway e “Os anos 20” (“The Twenties”, 1975) de Edmund Wilson, respectivamente sobre Roma, Paris e Nova York, estão nesse grupo. Vou mais longe: eles criaram no meu espírito uma imagem quase sensorial dessas grandes metrópoles. É gostoso. Recomendo muitíssimo.

Sempre fiz isso de forma amadora. Aleatória. Com a obra de referência (ou de preferência) que estivesse ao meu alcance. E, lembremos, a literatura é infinita. Mas agora achei algo “profissional”. Uma ferramenta digital chamada “Books Around America”, da Crossword-Solver.com, que, em relação aos EUA, a partir do código postal ou da cidade pesquisada, permite descobrir livros cujas tramas se passam ao derredor de onde se vive (se você vive nos EUA, por óbvio) ou para onde se viaja (se estamos falando de turistas literários).

Já andei xeretando o “Books Around America”. E achei livros sobre algumas das minhas cidades de sonho e consumo nos EUA. Acerca da histórica Boston, encontrei “The Scarlet Letter” (1850), de Nathaniel Hawthorne, sobre os quais, livro e autor, eu até já escrevi. Da universitária Princeton (NJ), achei “The Rule of Four” (2004), de Ian Caldwell e Dustin Thomason, indicadíssimo para quem se vê resolvendo mistérios no ambiente de uma gigante instituição de ensino.

De Los Angeles, topei com “The Big Sleep” (1939), de Raymond Chandler (1888-1959), o meu escritor noir preferido (e que me desculpe o grande Dashiell Hammett). “Interview with the Vampire” (1976), de Anne Rice, mostra as ruas de uma Nova Orleans que devaneio não tão diferentes da atual cidade de festas e crenças.

E, claro, tem a gigante Nova York, cidade, mas também o Estado, com tantos títulos, entre eles “The Great Gatsby” (1925), de F. Scott Fitzgerald, para mim a quintessência da riqueza e da Era do Jazz americanas. Mas isso são apenas as minhas preferências. Há muito mais. Afinal, se a citada NY é colossal, a literatura, como já dito, é infinita.

Para ilustrar ainda mais, vou fazer uso de uma estória/história passada em uma belíssima cidade do sul dos EUA: Savannah, no estado da Georgia. O livro é “Midnight in the Garden of Good and Evil” (1994), de John Berendt. É um “romance não ficcional”, pois baseado em fatos reais. Basicamente, narra a história de um colecionador/negociante de arte, acusado e julgado pelo homicídio de um garoto de programas, tido por seu amante.

Um “romance jurídico”, portanto.

Mas o livro é também, explicitamente, um retrato da linda Savannah e do profundo sul dos EUA. Foi e é best-seller do New York Times ou de tantas outras listas do gênero.

O livro foi transposto para o cinema em 1997. O roteiro é mais ou menos fiel ao livro e à história original (de boca em boca, cada um acrescenta o seu fuxico). Mesmo título, com direção de Clint Eastwood e estrelado por craques como Kevin Spacey, John Cusack e Jude Law. E gente da própria cidade, famosos ou não, figuram no filme.

De toda sorte, aqui, a cidade ganha dimensões superlativas. O filme foi rodado quase inteiramente na Savannah de alamedas e mansões, incluindo a Mercer House, registros de um passado, glorioso e trágico, ainda não inteiramente findo.

Curiosamente, ainda hoje me recordo do dia em que comprei o DVD do filme, em Cambridge (UK), porque estava numa promoção dos diabos. E recordo-me da vontade de conhecer o sudeste dos EUA, Savannah, Charleston, Richmond e por aí vai. Tive a oportunidade e confirmei suas belezas. Aliás, não só eu. Dizem que, após “Midnight”, o livro, o turismo em Savannah cresceu exponencialmente. A literatura é boa em todos os sentidos.

Bom, às vezes essa minha mistura ler e visitar não dá certo. Paciência. Entre ler e poder, a distância é enorme. C’est la vie. Por enquanto, aliás, seja pelo rescaldo da pandemia ou pelas moedas estrangeiras nas alturas, a gente vai só sonhando com essas terras distantes. Paradinhos, lendo livros, assistindo a filmes ou xeretando essas ferramentas interativas curiosíssimas.

Marcelo Alves Dias de Souza é procurador regional da República e doutor em direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

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domingo - 22/05/2022 - 09:30h

A noite, os mosquitos e a lua

Por Honório de Medeiros

Foto de Honório de Medeiros, paisagem nordestina,Fui visitar Seu Antônio de Luzia, lá no Feijão, Sítio “Canto”, Serra da Conceição, rumo quebrado para a Serra do Camará.

João, seu filho, João de Antônio de Luzia, a quem eu encontrei, antes, na Pedra do Mercado, me preveniu: “tá falando muito pouco e escutando demais.”

“Por quê?”

“Sei não. Eu pergunto o que é e ele, sentado naquela cadeira de balanço, estira a mão para cima e sacode os dedos como se estivesse espantando mosca.”

Seu Antônio estava lá no mesmo lugarzinho de sempre, cadeira de balanço, na calçadinha de sua casa de tijolos crus, olhando o tempo, cumprimentando os passantes com um balançar de cabeça para cima e para baixo.

“Boa tarde, Seu Antônio, como vão as cousas?”.

“Boa tarde!”.

Mandou, com um gesto, que eu tomasse assento na outra cadeira de balanço.

Então eu me danei a falar e ele só olhando, escutando e calando.

Lá para as tantas, me fiz de atrevido e perguntei: “o Senhor perdeu o gosto de falar?”

Ele ficou calado um tempão, pigarreou e disse: “tem muita gente sabendo de tudo, falando muito; eu, quanto mais vivo, menos sei das coisas.”

Parou, pigarreou de novo, tomou um gole de café, cuspiu no chão de barro, e rematou: “O pouco que sei é o que eu faço com as mãos: cortar um capim, debulhar um feijão, pegar um balde d’água no poço…”.

Mais não disse. Mais não perguntei.

Ficamos os dois, cismarentos, enquanto a tarde ia e a noite chegava.

A noite e os mosquitos. A noite, os mosquitos e a lua, que já se atrevia.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura do Natal e do Governo do RN

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domingo - 15/05/2022 - 11:38h

Imaginação

Por Inácio Augusto de Almeida 

Viajar na máquina do tempo é um sonho acalentado pelo ser humano há muitos e muitos anos. E este desejo tem sido alimentado cada dia de maneira mais intensa por religiões e pela indústria cinematográfica.

Desconhece o homem que tem dentro de si a máquina do tempo?a-maquina-do-tempo-h-g-wells-livro-resumo-resenha-1895-700x361

Se é possível voltar no tempo, visitar o passado?

Basta fechar os olhos, ativar a memória, e o transporte à época desejada acontece instantaneamente. Nossa memória é a passagem para o passado.

Imagine-se criança, com seu primeiro brinquedo. Brinquedo que agora vê e que Papai Noel trouxe. Depois você viaja e está frente a frente com sua primeira professora, aprendendo o ABC e a contar nos dedinhos da mão.

Viu como é possível voltar ao passado?

Mas nunca cometa a loucura de querer voltar, fisicamente, para reencontrar as pessoas e as coisas que fizeram parte do seu passado.

Tudo vai lhe parecer muito diferente, mesmo sem nada ter mudado.

Fiz essa experiência revisitando locais da minha infância e juventude. A única coisa que consegui foi destruir ilusões que acalentei por tantos anos. Já não encontrei a professora que me ensinou as primeiras letras. Apenas vi fotos que me foram mostradas por um neto dela. A enorme sala onde ficava, com os coleguinhas, ainda estava lá. Só que de enorme não tinha nada. Era apenas um pequeno cômodo da casa que meus olhos infantis viram como uma enorme sala.

Procurei a casa onde morei e constatei que a alta calçada onde eu andava de velocípede, na verdade não passava de uma calçada de pequena altura. Ri do medo que sentia de cair da calçada com meu velocípede.

Todos as fantasias iam desabando, mas a decepção maior aconteceu quando procurei e encontrei a primeira namorada.

Na minha imaginação estava muito viva a menina de olhos negros, tranças longas de cabelos castanho claro e riso bem aberto na janela todas as tardes. E vi-me frente a frente a uma esbelta e risonha senhora, com grossos óculos, cabelos curtos, brancos e com um bisneto no braço. Rindo nos abraçamos. E eu a me perguntar em que estrela estava a minha namorada…

Saí arrependido de ter voltado.

Voltado para quê?

Para destruir a bela imagem que carreguei por tantos anos? Para me convencer que nossos destinos eram paralelos?

Não sei. Sei que de tudo ficou a certeza que tinha cometido a loucura de destruir a mais bela fantasia da minha vida.

O presente está aqui e agora. Basta abrir os olhos e o coração. Dispensável qualquer máquina. Por que além de abrir os olhos, abrir também o coração?

Os olhos enxergam tão pouco… O essencial só conseguimos ver com o coração.

Se virarmos a máquina do tempo para o futuro, podemos sonhar, dar asas à nossa imaginação. E, mesmo juntando desilusões, são os sonhos que nos motivam a continuar vivendo. Você pode encontrar um homem sem dinheiro, mas você jamais encontrará um homem que não acalenta sonhos.

A máquina do tempo existe!

Ela está dentro de nós.

Inácio Augusto de Almeida é escritor e Jornalista

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 15/05/2022 - 04:00h

Café novinho na casa velha

Por Marcos Ferreira

Acordo a esta hora (pouco mais de meia-noite) e não tenho expectativa alguma de retomar o sono. Parece que as substâncias prescritas pelo Dr. Dirceu Lopes se foram na “festa de espumas” de que nos fala Vinicius num de seus sonetos. É isso, dei uma baita mijada e acho que os antipsicóticos foram juntos. Até mesmo o Rivotril e o Haloperidol. Este último escalado para combater minha psicose (medo) de ir ao banheiro à noite (pois meu banheiro é fora da casa) e topar com um leão.xícaras, café

Imaginem uma coisa dessas! Doido é doido! Agora, já com as mãos devidamente lavadas, penso naquela turma do Canal BCS (Blog Carlos Santos) e no miolo de pote que alguns de nós volta e meia engordamos sobre tomarmos um café novinho nesta casa velha. Odemirton Filho promete trazer bolachas da padaria Meçalba, Carlos Santos (ex-homem dos suspensórios) empenha outras iguarias.

Por último, para a minha honra e felicidade, quem vem se balançando para visitar este humilde domicílio é ninguém mais, ninguém menos que o senhor Rocha Neto. Exato! O homem do irresistível Prato de Ouro. Imaginem vocês eu aqui em casa com uma trinca dessas de reputados extratos da sociedade mossoroense.

Primeiramente, para não passar maior embaraço, eu terei que adquirir (sem ter de onde tirar) uma grana para comprar um jogo de cadeiras X com a clássica mesinha de centro.

Para fechar o quarteto, já contanto com as cadeiras X e duas de plástico que possuo, não poderia faltar o leitor Amorim, a quem só conheço por meio das suas (dele) interações enquanto leitor comentarista. Depois disso é torcer que não seja uma tarde de chuva, tendo em vista que este meu cafofo possui duas amplas áreas de chuva — uma entre a sala única e a cozinha e outra situada num quarto.

Nesta casa velha, então, com banheiro externo e teto chuvar, piso e paredes no estilo queijo suíço, tomaríamos um café novinho e de alta qualidade sob a testemunha pendular das picumãs e ao som do passaredo no quintal.

Temos ainda minha gatinha Pitucha, que no último dia 6 completou quatro meses, a assistir a tudo ressabiada, com uma ou mais pulgas atrás da orelha. Sim, vez por outra Pitucha usa das garras da patinha traseira para se coçar. Talvez seja meramente cacoete.

Outro ilustre leitor que me faria falta aqui, passando a formar um quinteto, seria o amigo e gramático (dos bons!) João Bezerra de Castro, patrimônio intelectual e afetivo que me foi presenteado pelo poeta Francisco Nolasco. A propósito, em data recente, Francisco Nolasco apareceu-me para uma rápida visita. Não podia se demorar, pois ele alegou ter deixado o menino no fogo e o leite chorando.

Nesta minha pequena cafeteira (Nolasco é testemunha) produz-se um dos melhores cafés de Mossoró. A casa é estiolada, mas a rubiácea é um luxo. De quebra, escuta-se, baixinho, um pouco de blues. Se a visita não curte blues, escuta assim mesmo.

Posso até oferecer um pouco de Chopin, Korsakov, Stravinski, Dvorak, embora, assim como o poeta Aluísio Barros em relação aos seus galos tenores, eu já tenha sido acusado de torturar meus vizinhos com esses “sons esquisitos”.

Outrora esta casa, em condições menos depauperadas, já contou com uma mesa tomada por ilustres extratos da sociedade moscovita. Desde médicos, juízes, engenheiros, músicos, jornalistas, artistas de um modo geral, políticos, sindicalistas e até um ex-vice-prefeito sangue bom, além, claro, de muitos espécimes da fauna literária. Mas, como o tempo contra tudo atenta, essa nata picou a mula.

Alguns, decorridos uma porção de anos, voltaram a me frequentar, e aqui eu os recebi e recebo com efusiva bonomia e bem-querença. Outros mais seguem carrancudos, de cara fechada, trocando de calçada quando me encontram no passeio público, entretanto lhes devoto compreensão.

São os extraviados, passam longe deste endereço periférico, contudo não os posso julgar. São pessoas de bem, tipos de coração admirável e com qualidades que não me cabe passar uma borracha.

Bom, agora é hora de jogar a toalha. O segundo Rivotril está mostrando sua força. É uma temeridade seguir redigindo. Perdoem os eventuais equívocos de ortografia, sintaxe e digitação. Meus reflexos de revisor foram para o brejo. Como eu disse outro dia ao João Bezerra de Castro, um revisor não pode se dar ao luxo de ler palavras, tem que ler silabadas. Os dedos tropeçam. As pálpebras me pesam.

Que venha o café novinho na casa velha!

Marcos Ferreira é escritor

Leia também: A hora azul da escrita de Marcos Ferreira.

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Categoria(s): Crônica
domingo - 08/05/2022 - 11:42h

O sonhador

Por Inácio Augusto de Almeida 

Anoitece em Mossoró e caminhando para casa, após um dia de trabalho no balcão de uma loja, minha atenção é despertada por um menino vivo, esperto.

Vi o menino na praça do PAX e logo imagino que não fita morrote, mas se entrega a devaneios olhando fotos do Himalaia.Book.

Irrequieto, denota ser possuidor de uma inteligência incomum. Seu desassossego chamou a minha atenção.

Caminhando, carregando na cabeça a figura daquele garoto, apresso o passo pois ainda tenho o colégio onde alterno história com geografia.

Depois de muito falar de oceanos, continentes, Tiradentes e Celina, retorno para o merecido descanso.

Noite carrancuda, sem lua e sem estrelas, apenas nuvens que trazem o agradável cheiro de chuva.

Vejo populares em volta de um corpo coberto com folhas de jornal. Aproximo-me por força do impulso que sentimos para testemunhar tragédias.

Olho e fico estarrecido.

Era o garoto irrequieto.

Ouço comentários de que tentara furtar a bolsa de uma mulher e um passante sacou do revólver e fez vários disparos. Um senhor gordo olhou e rindo disse que bandido bom é bandido morto.

O filete de sangue não trazia a lua para o chão, porque lua não havia na noite escura que, para mim, se tornou mais escura.

Outro dia, mais uma vez o balcão da loja.

Lembro dos meus alunos e busco uma maneira de fazer mais do que falar de continentes e fantasiar histórias criando heróis de mentirinha.

O menino estirado na calçada era como se fosse todos os meus alunos.

No noticiário um imbecil a dizer que tinham dado baixa no CPF de um drogado…

Droga, sempre a maldita droga a desgraçar nossos jovens.

O que fazer para afastar os jovens desta peste?

O esporte se mostrou incapaz de sozinho distanciar a garotada do vício maldito. A especulação imobiliária varreu os campinhos de futebol. Nos colégios quadras esportivas ociosas porque administradores não investem um centavo para estimular o esporte.

Como afastar os jovens das drogas sem contar com apoio do poder público?

Teresa de Calcutá me surge com aquele sorriso e os olhinhos cheios de amor.

Leitura, leitura, desperte nos jovens o gosto pela leitura.

Assustei-me. Tinha certeza de ter visto a Santa e ter escutado a sua voz mansa e amorosa. E antes de perguntar como despertar nos jovens o gosto pela leitura ouvi que criação de concurso literário bastaria. Que os prêmios eu buscasse consegui-los pedindo ou até esmolando.

Ela viera para me mostrar o caminho.

Naquela noite, ao invés de aula, pedi aos alunos que escrevessem uma história qualquer.

Surpreendi-me com a criatividade dos estudantes.

Resolvi fazer um concurso literário entre meus alunos e prometi prêmios em livros que compraria para os melhores colocados.

Não sabia onde arranjar dinheiro para os livros. Sabia que tinha despertado naqueles jovens o gosto pela leitura. E isto me dava uma enorme tranquilidade. Senti ser verdade que nenhum bem faz mais bem ao coração do que o bem do amor.

A notícia se espalhou e de todos os lugares livros chegavam.

E foi a partir da ideia do sonhador, inspirado por Santa Madre Teresa de Calcutá, que nas escolas de Mossoró as crianças foram despertadas para a leitura.

No ano seguinte a Secretaria de Cultura assumiu a realização do concurso literário em todos os colégios de Mossoró. Logo a seguir as faculdades passaram a ter concurso literário.

E assim surgiu a semana da literatura em Mossoró. Mossoró que passou a ser reconhecida como a Capital da Cultura.

O sol forte batendo no meu rosto despertou-me.

Inácio Augusto de Almeida é escritor e Jornalista

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - Sal & Luz - Julho de 2025
domingo - 08/05/2022 - 06:38h

Pingos da infância

Por Odemirton Filho 

“Uma noite de tempestade, o vento sacode as telhas, faz tremer portas e janelas. A chuva tamborila no telhado, fustiga as vidraças. Relâmpagos clareiam o quarto, trovões rasgam o silêncio”(…). (Fragmento do livro Olhai os Lírios do Campo, de Érico Veríssimo).

brincando na chuva,Nos últimos dias a chuva tem caído com força nesta terra de Santa Luzia e em algumas cidades no nosso sofrido Rio Grande. O inverno será dos bons, com as benções de Deus, pois os açudes e reservatórios sangrando trazem esperança ao sertanejo.

A chuva cai como nas biqueiras dos meus tempos de menino, ali, nas ruas Tiradentes e José de Alencar, no centro de Mossoró, quando molhava a minha infância.  Hoje, eu vejo a chuva cair, e sobram lembranças. Às vezes, faz até um friozinho em Mossoró, já pensou?

Aliás, dia desses eu li uma crônica de Antônio Maria. “O bom Maria”, como chamavam seus amigos, dizia que, quando criança, brincava com os seus carrinhos na chuva. Ao contrário do cronista, eu “andava” de bicicleta e ficava com a roupa toda “ensopada”. E feliz. Muito feliz.

Naqueles tempos, para mim, inexistiam problemas. Tudo era motivo para brincadeira. Curtia a minha infância com minhas irmãs, primos e amigos. Não tínhamos medo dos raios e trovões. Meu pai, de vez em quando deixava o trabalho de lado e nos acompanhava nesses banhos de chuva, e eu achava “massa” vê-lo alegre como nós, crianças.

Lembro-me de uma bela crônica de Paulo Menezes, colaborador do “Nosso Blog”, que nos deixou no ano passado. Narrou o cronista que seu pai ficava sentado na calçada da casa, escutando um rádio de pilha, à espera dos raios cortarem o céu do sertão.

Pois é, uma chuvinha faz bem, mas falta-me a coragem dos meus tempos de criança. Aqui ou acolá me arrisco a tomar banho no meu quintal, e fico igual a pinto no lixo. Vez ou outra, saboreio um café ou uma dose de uísque para esquentar a alma, vendo a chuva cair, porque, com os pingos d´água, vem à memória os meus tempos da infância.

Diria o saudoso Paulo Menezes:

“Tempos bons. Saudades. Muita”.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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Categoria(s): Crônica
terça-feira - 03/05/2022 - 15:46h
Grato

Quinze anos do Blog Carlos Santos

blog_Carlos_Santos_#1_brand_usage_#2_created_by_logasterEsta é a postagem oficial de numero 55.976 do Canal BCS (Blog Carlos Santos). Com ela, o registro de uma data bastante especial para mim, criador e editor do Canal BCS (Blog Carlos Santos) – Jornalismo com Opinião.

Completamos hoje (terça-feira, 03), 15 anos no ar de forma diária, contínua, com escassas paralisações.

Nossa estreia foi no dia 3 de maio de 2007, após experiência de um ano em página experimental no sistema Blogspot (veja AQUI), o Carlos Santos Online.

Por pura coincidência, hoje também é o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa e aniversário de minha Santa Mãezinha (in memoriam), Dona Maura. Coincidências que parecem arranjos divinos.

Muito a comemorar, é verdade. Contudo, prefiro agradecer. Em especial a você, webleitor. A todos os colaboradores, comentaristas, homens e mulheres de boa vontade, de fé; àquela força inexplicável que não permitiu que eu desistisse.

Muito obrigado.

Abaixo, uma crônica postada no dia 3 de maio de 2007 (veja AQUI), há 15 anos, quando tudo “recomeçou”:

De tempo, vida e caravelas

Quero lhes falar sobre o tempo. Virtual? Talvez.

Quero lhes falar sobre a vida. Fugaz? É possível.

Quero lhes falar sobre o recomeçar. Posso, sei.

Falo da crença no possível, despojado do retrovisor da existência e evitando ser apenas trapo humano, moendo e remoendo gente e fatos.

Medo? Muitos. Ainda bem. Tenho-os pulsantes, como necessários sacrários do porvir, bússolas da sobrevivência.

Neste ambiente universal, intangível e imaterial, ganho corpo. De novo. Os propósitos são abstratos: cumprir minha sina-paixão. Transpirar, existir, resistir. Ombrear-se a outros que têm minhas crenças, mas respeitando o contraditório. Estimulando-o até.

Sou filho de uma porção menor, mas nem por isso tacanha ou acovardada. Nada além de um indivíduo normal, que labuta. Estranho, talvez, por não ser parte de uma maioria incomum.

Este novo endereço eletrônico não revela nada de especial. Não o trato como avanço. É mais um passo no eterno caminhar, sem o pânico de olhar para trás. “Antes de tudo há que lutar! As caravelas mandei-as queimar, para não terdes a veleidade de voltar” (Hernán Cortés ).

Obrigado pela visita. Seja bem-vindo.

Vamos recomeçar?

Acompanhe o Canal BCS (Blog Carlos Santos) pelo Twitter AQUI, Instagram AQUI, Facebook AQUI e Youtube AQUI.

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Categoria(s): Comunicação / Crônica
  • Art&C - PMM - Sal & Luz - Julho de 2025
domingo - 01/05/2022 - 13:46h

Reminiscências

Por Inácio Augusto de Almeida 

Sempre às 3h ele começava a tocar o pandeiro. Pandeiro que era seu único amigo. Nunca ninguém o viu a conversar com alguém. Se segredos tinha, os guardava só para si.

Aos sábados fazia as compras que trazia numa sacola de lona.pandeiro

Não era magro nem gordo. Seu nome ninguém sabia. A única coisa que todos sabiam era que tocava pandeiro todas as tardes e que morava sozinho.

Eu era um menino de 6/7 anos que pela manhã frequentava o grupo escolar e que fazia os deveres, logo após o almoço, para ir me distrair ficando na torre da igreja. Igreja que ficava ao lado da casa onde morava.

Subia numa escada tipo caracol e ficava perto do sino de onde avistava toda a cidade, a estrada para Caicó e os morrotes que na minha visão infantil enxergava como montanhas gigantescas, mas que meu pai chamava de serra.

Ali pegava a brisa que amenizava o calor das tardes quentes de Jardim do Seridó. E ali ficava até começar a ouvir o barulho do pandeiro, quando descia e ia pegar a merenda que todas as tardes minha mãe preparava e colocava na grande mesa.

Um dia não ouvi o som do pandeiro e só desci da torre porque minha mãe chamava dizendo ser hora da merenda.

Comendo macaxeira com carne de sol, senti que alguma coisa estava faltando.

Faltava o som do pandeiro.

Falei para minha mãe e pedi para ir até a casa do homem do pandeiro. Ela disse que quando papai chegasse ele iria lá comigo.

A tarde se ia lentamente, preguiçosa até. Torcia para ouvir o som do pandeiro, mas apenas os galos de campina enchiam com seu canto aquele final de tarde.

E antes da noite encher o céu de estrelas, papai chegou.

Depois de muito bater na porta ouvimos o caminhar de alguém arrastando os chinelos.

O olhar do homem mostrava que estava doente. Papai me deixou em casa e foi em busca do único médico da cidade.

Ficamos sabendo, pelo médico, que a “doença” era solidão.

Solidão que se somou a um quadro de desnutrição.

Desnutrição provocada pela falta de apetite.

Eu não entendia bem o que o médico dizia. Achava aquilo tudo complicado.

Coisa de gente grande.

Foi a partir desta tarde que o homem do pandeiro passou a sorrir para mim e a balançar a cabeça, num discreto cumprimento ao meu pai. Mas falar, não falava.

No sábado eu pedi a mamãe para ir à feira tomar caldo de cana e comer pastel. Na verdade, eu queria ver e conversar com o homem do pandeiro.

Ele estava comprando bananas quando me aproximei. Sem falar nada me ofertou uma banana.

Quando lhe perguntei porque morava sozinho, riu. Um riso triste, mas riu.

Repeti a pergunta e dele ouvi ser a vida uma ilusão.

Naquele dia não entendi a resposta que ele deu à minha pergunta.

Falou e foi se afastando, levando consigo a sacola de lona onde carregava as compras e as desilusões.

Esta foi a única vez que eu falei com o homem do pandeiro.

Quando disse a papai o que ouvi, papai riu. Riu e me disse que o tempo me explicaria melhor o que eu agora queria saber.

E os dias se seguiram e todas as tardes eu sendo avisado da hora da merenda pelo som do pandeiro.

Papai se mudou de Jardim do Seridó para São Luís do Maranhão.

O homem do pandeiro já deve estar entre nuvens brancas tocando seu pandeiro. Afinal, 70 anos se passaram do dia em que ele me disse ser a vida uma ilusão.

Lembro do meu pai a me falar que o tempo me mostraria, com clareza, a resposta que ouvi do homem do pandeiro.

Olho para as nuvens brancas e imagino papai e o homem do pandeiro rindo de um menino que teima em continuar uma criança sonhadora.

 Tão sonhadora que ainda escuta o som do pandeiro das tardes quentes de Jardim do Seridó.

 Inácio Augusto de Almeida é escritor e jornalista

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Categoria(s): Crônica
domingo - 01/05/2022 - 09:24h

Além do horizonte

Por Odemirton Filho

Olhava o horizonte sentada numa jangada na beira do mar. Estava sozinha. Pensava no ontem, naquilo que viveu. Ou, melhor, no que não viveu.

Os dias passaram rápidos, nem viu o tempo voar. Sobre os seus ombros carregava o peso da vida. Sim, era uma mulher realizada, tinha um bom marido, lindas filhas e belos netos. Mas, ainda assim, queria mais. Embora estivesse aposentada, queria viver, bem vivido, o tempo que ainda lhe restava de vida.  horizonte, mar

Tinha dentro de si, às vezes, uma profunda solidão. Sua alma, de vez em quando, era uma ilha. Precisava habitar a sua vida com novas experiências. Quem sabe, enveredar na arte de escrever colocando no papel os sentimentos d´alma; rabiscos de saudades e lembranças.

Lembrou que por muitos anos acordou de madrugada para preparar o café do marido e das filhas, arrumando-as para irem ao colégio. Ficava o dia inteiro ocupada com afazeres domésticos; mal tinha tempo para se olhar no espelho e ajeitar os seus longos cabelos pretos.

O tempo passou. As meninas crescerem, constituíram família, cada uma seguiu o seu rumo. O marido se aposentou. Chegou a sua vez de fazer o que sempre sonhou: escrever. Em alguns cadernos, com as folhas amareladas pelo tempo, tinham alguns escritos que foram feitos ao longo da vida.

Lembrava que a vida passava rápido como o vento. A infância passou, a adolescência correu, e só restaram a maturidade e as lembranças de uma infância acolhida e de uma juventude repleta de sonhos.

O que passou, passou. Agora, sentia a brisa batendo no seu rosto, e observava a natureza, a qual nos mostra o canto dos pássaros; a beleza do mar. Sem pressa, contemplava o que um dia passou despercebido. Estava ali, sentada em uma jangada, olhando além do horizonte.

“Nós imaginamos que assim que somos arrancados do nosso caminho habitual tudo acaba, mas é apenas o começo de algo novo e bom. Enquanto houver vida, haverá felicidade. Há muito, muito diante de nós”, diria um famoso escritor russo.

Odemirton Filho é bacharel em Direito e oficial de Justiça

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Categoria(s): Crônica
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