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domingo - 01/05/2022 - 13:46h

Reminiscências

Por Inácio Augusto de Almeida 

Sempre às 3h ele começava a tocar o pandeiro. Pandeiro que era seu único amigo. Nunca ninguém o viu a conversar com alguém. Se segredos tinha, os guardava só para si.

Aos sábados fazia as compras que trazia numa sacola de lona.pandeiro

Não era magro nem gordo. Seu nome ninguém sabia. A única coisa que todos sabiam era que tocava pandeiro todas as tardes e que morava sozinho.

Eu era um menino de 6/7 anos que pela manhã frequentava o grupo escolar e que fazia os deveres, logo após o almoço, para ir me distrair ficando na torre da igreja. Igreja que ficava ao lado da casa onde morava.

Subia numa escada tipo caracol e ficava perto do sino de onde avistava toda a cidade, a estrada para Caicó e os morrotes que na minha visão infantil enxergava como montanhas gigantescas, mas que meu pai chamava de serra.

Ali pegava a brisa que amenizava o calor das tardes quentes de Jardim do Seridó. E ali ficava até começar a ouvir o barulho do pandeiro, quando descia e ia pegar a merenda que todas as tardes minha mãe preparava e colocava na grande mesa.

Um dia não ouvi o som do pandeiro e só desci da torre porque minha mãe chamava dizendo ser hora da merenda.

Comendo macaxeira com carne de sol, senti que alguma coisa estava faltando.

Faltava o som do pandeiro.

Falei para minha mãe e pedi para ir até a casa do homem do pandeiro. Ela disse que quando papai chegasse ele iria lá comigo.

A tarde se ia lentamente, preguiçosa até. Torcia para ouvir o som do pandeiro, mas apenas os galos de campina enchiam com seu canto aquele final de tarde.

E antes da noite encher o céu de estrelas, papai chegou.

Depois de muito bater na porta ouvimos o caminhar de alguém arrastando os chinelos.

O olhar do homem mostrava que estava doente. Papai me deixou em casa e foi em busca do único médico da cidade.

Ficamos sabendo, pelo médico, que a “doença” era solidão.

Solidão que se somou a um quadro de desnutrição.

Desnutrição provocada pela falta de apetite.

Eu não entendia bem o que o médico dizia. Achava aquilo tudo complicado.

Coisa de gente grande.

Foi a partir desta tarde que o homem do pandeiro passou a sorrir para mim e a balançar a cabeça, num discreto cumprimento ao meu pai. Mas falar, não falava.

No sábado eu pedi a mamãe para ir à feira tomar caldo de cana e comer pastel. Na verdade, eu queria ver e conversar com o homem do pandeiro.

Ele estava comprando bananas quando me aproximei. Sem falar nada me ofertou uma banana.

Quando lhe perguntei porque morava sozinho, riu. Um riso triste, mas riu.

Repeti a pergunta e dele ouvi ser a vida uma ilusão.

Naquele dia não entendi a resposta que ele deu à minha pergunta.

Falou e foi se afastando, levando consigo a sacola de lona onde carregava as compras e as desilusões.

Esta foi a única vez que eu falei com o homem do pandeiro.

Quando disse a papai o que ouvi, papai riu. Riu e me disse que o tempo me explicaria melhor o que eu agora queria saber.

E os dias se seguiram e todas as tardes eu sendo avisado da hora da merenda pelo som do pandeiro.

Papai se mudou de Jardim do Seridó para São Luís do Maranhão.

O homem do pandeiro já deve estar entre nuvens brancas tocando seu pandeiro. Afinal, 70 anos se passaram do dia em que ele me disse ser a vida uma ilusão.

Lembro do meu pai a me falar que o tempo me mostraria, com clareza, a resposta que ouvi do homem do pandeiro.

Olho para as nuvens brancas e imagino papai e o homem do pandeiro rindo de um menino que teima em continuar uma criança sonhadora.

 Tão sonhadora que ainda escuta o som do pandeiro das tardes quentes de Jardim do Seridó.

 Inácio Augusto de Almeida é escritor e jornalista

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Elano Cantidio diz:

    👏👏👏👏👏

  2. Naide Maria Rosado de Souza diz:

    Que linda Crônica, Sr.Inácio. Parabéns!

  3. Aurineide Pereira de Oliveira diz:

    Só uma palavra: p e r f e i t o!

  4. Ronaldo diz:

    Mais uma linda crônica que o senhor nos oferece para reflexão. Parabéns, Sr. Inácio. Bom dia.

  5. Inácio Augusto de Almeida diz:

    A todos que gostaram da crônica, meu muito obrigado.
    Acabo de escrever IMAGINAÇÃO
    Se a paciência do Carlos Santos suportar, será a crônica do próximo domingo.
    ////
    IIDOSO, 76 ANOS, HÁ MAIS DE 75 DIAS AGUARDA MARCAÇÃO DE UMA CONSULTA OFTALMOLÓGICA PELO SUS EM MOSSORÓ.
    A REQUISIÇÃO ESTÁ NA UBS SINHARIAZINHA BORGES.
    EXISTE ALGUM ÓRGÃO DE PROTEÇÃO AO IDOSO EM MOSSIRÓ.?
    ÓRGÃO DE PROTEÇÃO AOS ANIMAIS EXISTE?
    VEREADOR, DEIXA PRA LÁ…

  6. Antonio Miranda diz:

    Excelente! Parabéns e obrigado!

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