Por Marcelo Alves
Na Europa, em especial na França, já de algum tempo, há quem denuncie aquilo que eles chamam de abuso das “notações” – leia-se a prática de se classificar ou dar nota a tudo –, por consumidores/clientes, em sites de diversas empresas (a Uber, por exemplo) ou mesmo em plataformas virtuais para tanto direcionadas (a exemplo do TripAdvisor).
Alega-se que esse tipo de notação tem “infernizado” a vida dos trabalhadores das empresas avaliadas. As notas dadas, marcadamente subjetivas, têm ensejado reduções de salários, suspensões de contrato de trabalho ou mesmo demissões com justa causa, entre outras penalidades. “Boicotem esse sistema abjeto”, é o que já pedem as organizações em prol dos trabalhadores.
Ademais, na selva virtual de hoje, as inúmeras plataformas especificamente direcionadas para a notação têm sido um inferno não só para os trabalhadores. Basta irmos ao Google e encontraremos profissionais liberais – médicos, por exemplo – bem ou muito mal “notados”. E especificamente quanto ao Golias da Web TripAdvisor, muito em razão dos chamados “serial-noteurs” (de boa ou má-fé), este tem se tornado uma ameaça “insuportável” às empresas/profissionais de hotelaria e de restaurantes, na França, mas também no mundo inteiro.
Novamente estudando na Aliança Francesa de Natal, por intermédio do nosso livro/método de francês “Défi 5”, tive acesso a um texto do Concierge Masqué da revista Vanity Fair francesa, em que se grita “Morte ao TripAdvisor”, uma plataforma que, veiculando as “chantagens mesquinhas” dos clientes de restaurantes e hotéis – muitas vezes em busca de um jantar ou um pernoite como recompensa –, transformou-se numa “ditadura de Jecas Tatu”. Texto forte.
A moda da notação/classificação está se espalhando perigosamente. O tal Concierge Masqué até especula sobre uma exigência do governo chinês de uma notação recíproca entre seus concidadãos, algo que “não iria desagradar a todos neste minúsculo mundo”. Nessa toada, aliás, é interessantíssimo o episódio “Nosedive” da badalada série de ficção científica britânica “Black Mirror”. Na estória, as pessoas são reciprocamente notadas/classificadas em um aplicativo do tipo Instagram, com avaliações de 0 a 5. Graças às notas/classificações de outrem, a pessoa pode conseguir tudo na vida… ou nada. E aí temos a confirmação da máxima de Jean-Paul Sartre (1905-1980) – “O inferno são os outros”.
Embora isso ainda possa ser tido como um tipo de distopia, acho que não estamos muito longe desse “abominável mundo novo”. Por exemplo, na Internet, outro dia, dei de cara com mais de um quiz que prometia apontar a minha “real” posição política, se “de esquerda ou de direita”. No geral, fui classificado como “de centro”, mas, por ser a favor da proteção do meio ambiente, “com ideias de esquerda”. Ainda acho que proteger o meio ambiente é um dever universal, cósmico.
Para os mais diversos fins, até de amizade ou relacionamento, as pessoas já estão hoje notando/classificando os outros como de “direita” ou de “esquerda”. E laços são completamente rompidos. Aliás, tenho um amigo querido, já fanático por natureza, que pedestremente nota/classifica a tudo e a todos com base na posição dos assentos da Assembleia Revolucionária Francesa, fato histórico que ele desconhece por completo.
Sentado num já imaginário “Muro de Berlim”, esgoela delírios destros e canhotos. Em meio a qualquer assunto, sai com “esse cara é um esquerdista fdp”, “isso é coisa da esquerda”, “na direita não tem isso não” e por aí vai. Outro dia, curioso, eu perguntei a ele se “quem toma suco de maracujá é de direita ou de esquerda”. Gostaria de saber, sob esse critério, de que lado da sua revolução imaginária eu estaria.
Marcelo Alves Dias de Souza é procurador Regional da República, doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – ANRL
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