domingo - 06/07/2025 - 08:38h

O Efeito Casulo – Dia 6

Por Marcos Ferreira

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS)

Arte ilustrativa com recursos de Inteligência Artificial para o BCS)

Daqui, enquanto preparo um pouco de café para reunir as ideias, neste momento escassas e preguiçosas, ouço vozes e gargalhadas na rua. Em meio às quais, com sons díspares, escuto também o ladrar agudo de dois cães pequeninos de minhas vizinhas das casas à esquerda deste domicílio. São precisamente quatro horas e vinte e cinco minutos desta tarde de sábado abafada e barulhenta.

Fui até o muro dianteiro e fiquei observando, através dos cobogós, o vaivém dos transeuntes, carros e motocicletas. Visão precária, limitada, óbvio. Vi apenas pessoas estranhas; nenhum conhecido. Passou uma idosa caquética de braços com uma moça de vinte e poucos anos, quiçá neta da velha. Cogitei abrir o portão, ficar na calçada durante um tempinho, talvez acenar às vizinhas, contudo desisti de colocar a cara fora. A esta altura não desejo mais confraternizar com ninguém. Não me agrada ser visto por quem quer que seja. Voltei, fui tomar um banho.

Então, com uma caneca de café à direita desta escrivaninha, apresento-me redigindo coisinhas assim banais, deveras enfadonhas. Eu próprio me sinto, além de enfermo, um elemento banal, ordinário. Escrever, entretanto, é uma das pouquíssimas atividades que consigo realizar com o mínimo de eficiência. Meus começos com a escrita só foram possíveis graças à leitura de trabalhos de um vasto número de autores a que tive acesso. Meu contato com as letras, todavia, foi um bocado tardio. Ainda analfabeto com onze anos, fui matriculado em uma escola e comecei a desasnar. Tive um baita choque quando, na primeira série, descobri que podia ler.

Enfim, por competência da professora Maria do Carmo, deixei de ser cego. Nunca mais parei. Além das leituras em sala de aula, lia tudo que me aparecesse. No caminho de ida e volta do colégio, soletrava o que meus olhos alcançassem: letreiros de lojas, mercearias, mercadinhos, bares, oficinas de bicicleta, de carros, de motos, padarias, farmácias, etc. O meu interesse pela leitura era um deslumbramento absoluto, uma espécie de fome ancestral. Essa fome foi transferida para todo tipo de obras. Com o passar dos anos, naturalmente, fui me tornando mais seletivo.

Não estou com saco para deitar nomes de livros nem de seus respectivos autores. Minha permanência em escolas foi muito fragmentada; nunca tive essa consciência de que a educação formal seria redentora em minha vida. Porém, apesar da ausência em sala de aula, o micróbio da literatura tomou conta do meu coração e espírito justo pelo contato com títulos e escritores nacionais quanto estrangeiros.

Fiquei desconcertado, maravilhado ao ler, por exemplo, “São Bernardo”, de Graciliano Ramos. Li e reli ao menos os quatro romances do Velho Graça. “Angústia” é extraordinário, hipnótico. “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado, foi outro alumbramento naqueles meus quinze para os vinte anos de idade. Nessa mesma época tive a sorte de conhecer Fiódor Dostoiévski. O russo da gélida São Petersburgo, mestre dos psiquiatras, é um escafandrista da psique humana, o gênio maior entre todos os ficcionistas.

Isto é só a minha opinião. Haverá quem discorde; tipos outros podem ser apresentados como superiores, indivíduos da estatura de um Leon Tolstói e Marcel Proust, ambos artistas de méritos invulgares. Mas há pouco afirmei que “estou sem saco para deitar nomes de livros nem de seus respectivos autores”. Morre agora essa tentadora exemplificação. Aliás, finda-se aqui meu relato de hoje.

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Leia também: O Efeito Casulo – Dia 5

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Julio Rosado diz:

    Marcos. meu amigo literato, hoje ‘O efeito casulo’ me lembrou Tolstói. Assim, o seu protagonista tem feito: fala das coisas de seu dia a dia dando-lhes um caráter universal. E não há nada mais plural do que a vida. Me parece que, paradoxalmente, Fernando vive os seus momentos mais criativos e, também, reflexivos.

    • Marcos Ferreira diz:

      Meu caro Júlio Rosado,
      Com sua sensibilidade artística, seu estofo literário, você acaba de me fazer sentir com novo ânimo para continuar com esta narrativa acerca das agruras do personagem Fernando Barros. Contar com um leitor do seu nível é um privilégio. Muito obrigado por sua agudeza na leitura e incentivo no comentário. Uma semana abençoada para você, poeta. Muita saúde, paz e inspiração na sua brilhante escrita.
      Forte abraço.

  2. Bernadete Lino diz:

    A hora da retrospectiva: lembrando o que foi e o que não teve tempo de ser e fazer. O lamento pelo que deixou pelo caminho. A hora da verdade sem chance de correção. Uma reflexão: façamos hoje. O amanhã é uma incógnita.

    • Marcos Ferreira diz:

      Querida amiga Bernadete Lino,
      Muitíssimo grato por sua leitura e depoimento. Suas palavras são sempre ricas de inteligência, sabedoria e sensibilidade. Que bom saber que, domingo após domingo, estamos juntos neste ilustrado espaço do BCS – Blog Carlos Santos. Desejo uma semana com muita saúde, paz e bênçãos para você e sua família.
      Beijos.

  3. FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO diz:

    Caro Marcos, guardadas as devidas proporções, temos um pouco de identidade e coincidências em nossa formação, sobretudo no que pertine nossa relação com o que chamamos de literatura. Pois, sou filho de pais, não obstante bastante inteligentes, praticamente analfabetos, egresso de escola pública interiorana (Frutuoso Gomes), praticamente adulto fui ter contato com a literatura clássica daqui e de alhures.

    Daí sempre repetir que me pareço um pouco com aquele Vaqueiro do livro POUCAS E BOAS – SANDERSON NEGREIROS, aquele Vaqueiro que de tanto ouvir intelectuais na varanda das fazendas em que laborou, passou a repetir palavras ditas difíceis e bonitas.

    Em resumo, minha quase compulsão em direção à curiosidade lato sensu, me levou ter um certo vício chamado leitura, por conseguinte, vislumbrar um mundo literário rico e diversificado, pois a leitura não se resume decifrar palavras, mas, sobretudo trilhar caminhos de descobertas pessoais e de conhecimento do mundo.

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