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domingo - 30/10/2022 - 14:26h

Maranhão – Capítulo XII

Por Inácio Augusto de Almeida 

O domingo amanhecera radiante. Maurílio passara em frente ao Grêmio 1⁰ de Janeiro, mas não entrara. Lá dentro estavam os carteadores. A turma do bilhar nunca comparecia pela manhã. E como o Grêmio aos domingos só funcionava até o meio-dia, o médico resolveu ir papear nos abrigos da João Lisboa, como sempre fazia quando não ia ao Olho d’Água, a exemplo de metade da população de São Luís. cerveja-e-corrida

Nas manchetes dos jornais espalhados pela calçada de forma ordenada, leu que Jânio Quadros prometia varrer a corrupção do país. Riu, discretamente, intimamente, riu. A dúvida era se ria de Jânio ou de si mesmo. Mas tinha certeza de que alguém estava pensando que alguém era ingênuo.

Enquanto atravessava a rua, olhou que, nos relógios da coluna, os ponteiros marcavam dez horas em ponto. Nas escadas da Igreja, algumas pessoas papeavam.

– Maurílio, Maurílio!

Era Conversinha com aquele seu jeitinho insinuante e agradável. Sentiu que não escaparia de algumas cervejas.

– Viu as manchetes, Conversinha?

– A do O INDEPENDENTE eu fiz.

– E você acredita que ele consiga?

– Há, há, há.

– Tá rindo de que?

– Da sua pergunta, há, há, há.

– Você é mesmo um gozador.

– Eu? Ou você é que tá querendo zombetear.

– Vai uma cerveja?

– Claro, claro.

A garapeira do velho Guará estava fechada. Ele nunca a abria aos domingos. Quem gostava disto era o Pelado, pois assim podia ir dar o seu mergulho nas águas quentes da Ponta d’Areia. Durante toda a semana Pelado era o incansável servidor de caldo de cana e pão semolina. Mas aos domingos, ninguém o afastava da praia.

– Veio tomar cerveja, Maurílio, ou tá querendo caldo de cana? Você não para de olhar a garapeira.

– Sabe, Conversinha, eu às vezes ainda me surpreendo com a solidariedade que existe entre os pobres. Você sabe que o Pelado, o Pelado do Guará.

Fez uma pausa. Engoliu um pouco de cerveja, como se quisesse recompor-se.

– Vai, continua. Eu sei quem é o Pelado. Todos em São Luís conhecem-no.

Com este conhecem-no do Conversinha, numa conversa de beira de balcão regada a cerveja numa manhã de domingo, Maurílio trocou o ar sério, quase sorumbático, por um meio riso.

– Pois bem. O Pelado, um homem pobre, inculto, é capaz de atos fraternos, de atos solidários, coisa que muita gente que vive papando hóstias, pessoas ditas cultas, não são capazes de fazer.

– Maurílio, limpar hostiários não significa estar com Deus. E estes tipos a que você se referiu como ditos cultos, na realidade são cultos. Muito cultos. Só que sensibilidade, amor ao próximo, bondade, não são coisas que se aprende lendo. Franz Kafka, Niccoló Machiavelli, Michel de Montaigne ou Bernardo de Almeida, todos eles colocaram em suas obras a importância da solidariedade, da fraternidade, do amor. Mas isto não depende de quem escreve. Estes sentimentos são inerentes aos puros, aos de bom coração. Não, não se adquire estes valores através da cultura. Eles brotam de dentro, do fundo do coração.

Maurílio olhava para Conversinha de maneira respeitosa. Sabia das traquinagens que o jornalista fazia, dos “traços” que dava em alguns poderosos e vaidosos. Mas sabia também da bondade existente na alma daquele homem de menos de metro e meio de altura.

Você tem razão, Conversinha. Enquanto o Pelado arrisca o emprego, a sobrevivência, para dar dois pães a quem só tem ficha pra um, por saber que ali está a primeira e talvez a única refeição de pobres meninos de rua, tipos ricos e cultos negam uma moeda a pedintes famintos.

– Maurílio, o domingo está bonito, a cerveja bem gelada e já vai para quase dois mil anos que Cristo foi pregado numa cruz. A injustiça social vem desde que começou o mundo. Eu já estou é para fundar o PIS.

– PIS, Conversinha?

– Sim, Maurílio. O Partido da Injustiça Social. Uma coisa que já existe há tanto tempo, que todo mundo diz combater e que continua existindo, só pode ser uma coisa muito forte, forte e boa para quem a pratica. E já tenho palavras de ordem. Veja: pela exploração do homem pelo homem. Pela desigualdade social. Por aumento nas taxas de juros. Pela criança fora da escola. Por uma anistia ampla e irrestrita a todos os deslizes do colarinho branco.

– Deslizes, Conversinha?

– Deslizes, sim, Maurílio. Pobre é que comete crime. A turma do colarinho branco fica só no deslize. Deixe-me continuar, ou você não quer saber o restante do programa do nosso partido?

Esforçando-se para controlar o riso, Maurílio conseguiu dizer:

– Nosso, não. O seu partido.

– Meu ou nosso, vamos em frente. Por igrejas alternativas mais fortes e em maior quantidade. Pela manutenção dos privilégios e criação de novas seitas. Pela acentuação da divisão de classes. E como ponto inegociável do nosso programa: a defesa do direito adquirido! Neste não admitimos que ninguém toque. Ninguém!

– Maurílio ria a não mais poder. Chegava mesmo a curvar o corpo. Os seus olhos ficaram cheios de lágrimas, talvez de tanto rir ou, quem sabe, de constatar que tudo aquilo que o Conversinha falava acontecia realmente todos os dias e ninguém se tocava. Olhou para o Conversinha com uma enorme simpatia. Taí a razão de gostar daquele jornalista falante. E quando pensava em dizer alguma coisa, sentiu uma mão pousar no seu ombro.

– Na cervejinha, hein, Doutor. Vai ver o Conversinha já lhe fez dar boas risadas.

– Ainda não, Lopes. Hoje ele está mais para o trágico do que para o cômico.

ACOMPANHE

Leia tambémMaranhão – Capítulo I;

Leia tambémMaranhão – Capítulo II;

Leia tambémMaranhão – Capítulo III;

Leia tambémMaranhão – Capítulo IV;

Leia tambémMaranhão – Capítulo V;

Leia tambémMaranhão – Capitulo VI;

Leia tambémMaranhão – Capítulo VII;

Leia também: Maranhão – Capítulo VIII;

Leia tambémMaranhão – Capítulo IX;

Leia tambémMaranhão – Capítulo X;

Leia também: Maranhão – Capítulo XI.

Inácio Augusto de Almeida – Boêmio/Sonhador

(Continua no próximo domingo)

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Categoria(s): Conto/Romance

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