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domingo - 08/04/2012 - 09:15h

Conto de um professor arrependido

Por Francisco Edilson Leite Pinto Júnior

Embora, tendo sido alertado por Fernando Pessoa – de que “Se o coração pudesse pensar, pararia”-, faço essas minhas confissões, com ele, com o coração. Até porque, pouco me importa se ele parar neste momento: estou mesmo no meu fim e, por isso, tenho a lucidez, de quem está morrendo, diante de mim.

Ah! Além da lucidez, tenho também a dor. A difícil e incontrolável dor. Não das metástases, que teimam em ganhar a minha corrente sanguínea, atingindo os meus ossos: não é a dor do meu corpo, tomado de células cancerosas, da minha próstata, que me dói. E sim, a dor da minha alma. E como ela dói. Dói por saber que dos meus 65 anos de vida – quarenta dos quais dedicados ao ensino médico-, não consegui cumprir a minha missão: fracassei como professor.

Dizem os gnósticos que “pecar é errar o alvo”… e eu pequei! Pequei por ensinar aos meus alunos, não o essencial… Ensinei-lhes sobre ressecções e reconstruções; sobre qual a melhor incisão; o melhor fio de sutura a ser empregado em cada tecido, etc. etc., mas, deixei de ensinar-lhes sobre a verdadeira essência da medicina – que é a mesma da vida: “amar o próximo, como a nós mesmos!”

Ah! Quantas não foram às vezes que ao chegar, todo engravatado, cheio de empáfia, adentrando nas enfermarias, parecia mais um deus. Alguém que estava acima do bem e do mal. Um ser infalível e, o que é pior, essencialmente frio. Sem sentimentos e muito menos sem compaixão.

Aí, ficava fácil juntar os residentes e doutorandos, em volta do doente, e nem ao menos lhe perguntar o seu nome; de onde ele vinha; se tinha família; se tinha um emprego; quais eram os seus sonhos… Nada. Absolutamente nada importava, a não ser a sua queixa principal, o seu exame físico, nem sempre minucioso e, principalmente, os seus exames complementares.

Como adorava ficar mostrando todas aquelas películas de tomografia, apontando o lugar da doença e dizendo qual a operação seria realizada… Neste cenário de insensibilidade – entre as rivalidades sublimadas de staffs, residentes e doutorandos-, o paciente limitava-se apenas a exercer o seu papel de ator coadjuvante, onde ter um número do leito e um diagnóstico bastaria…

Meu Deus! Quantas não foram às vezes em que dizia: “Não se envolvam com os pacientes! Mantenham-se distante. O nosso papel é chegar, identificar o ‘erro’, consertar e cair fora”. Por isso, é de se entender que mesmo tendo operado mais de 400 casos, por ano, ao longo de todo esse período, não consigo me lembrar de nenhum rosto, dos meus pacientes.

Nunca cheguei a olhar para eles, como seres humanos. Que pena… Afinal, “os olhos são as portas da alma”. É através deles, que poderemos enxergar a tristeza e a aflição do individuo que sofre pela sua doença.

Diz o Eclesiastes que “o sábio tem olhos, mas o tolo caminha na escuridão”. Então eu me pergunto: “Por que fui tão tolo? Por que fui tão cego? Por que via e não enxergava?” Via órgãos doentes; não enxergava pessoas doentes. E essa minha cegueira foi responsável pela formação de várias e várias gerações de máquinas repetidoras de solicitar exames… Não formei médicos, infelizmente…

Certa vez, o escritor Berkeley disse que o gosto da maçã não estava nem na própria maçã, nem na boca de quem a come. Na verdade, para surgir o gosto, é preciso um contato entre elas – a maçã e a boca. O mesmo acontece na medicina. Sozinhos, médicos e pacientes, nunca serão capazes de degustar o verdadeiro sabor, desta maravilhosa profissão. É na interação entre eles, na relação médico-paciente, respeitosa das identidades e dos respectivos nomes, que poderemos provar o melhor de todos os manjares dos deuses: o amor.

Era por isso, que sentenciou Harold Kushner: “Nenhum de nós conseguirá ser verdadeiramente humano em situação de isolamento. As qualidades que nos fazem humanos só emergem através das maneiras pelas quais nos relacionamos com os outros”. Então, para a pergunta de Drummond -“Que pode uma criatura senão, entre criaturas amar?”-, a resposta é sim! E a medicina é antes de tudo um ato de amor. Pena que só agora percebi isso…

Tinha razão Jung quando escreveu que só o médico doente é capaz de curar. Pois, só quando nos colocamos no lugar daquele que sofre, quando assimilamos todas das suas mais terríveis provações – desde a longa espera nos nossos consultórios, passando pela difícil comunicação de um diagnóstico de câncer até uma cirurgia mutiladora… – é que conseguiremos entender o que é ser médico.

Ah! Se as escolas médicas, deste país, começassem a fazer uma autocrítica dos seus projetos pedagógicos (onde cargas horárias extensas, de matérias puramente tecnicistas, fossem substituídas, por momentos, como muito bem retratado, por Samuel Luke Fildes, que teve a lucidez de colocar o médico, simplesmente, ao lado da criança que estava morrendo, para mostrar-nos que “o sofrimento somente é intolerável quando ninguém cuida”, como disse Cicely Saunders).

Pois bem! É para vocês, meus caros alunos de medicina – que representarão sempre o futuro da nossa profissão-, que escrevo esta minha última lição. Deixo aqui, o relato de quem teve a oportunidade de ter vivido e não viveu. De quem poderia ter amado e ser amado. De quem não soube aproveitar o dom que me foi dado…

P.S. Dedico este texto ao Jornalista Carlos Santos, que como muitos clamam por uma medicina mais humana.

Francisco Edilson Leite Pinto Junior É professor, médico e escritor.

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Categoria(s): Artigo

Comentários

  1. Gilmar diz:

    Muito bom. Resta agora, após esse longo decorrer, uma compensação vicária condicionada à esperança de que, aqueles que estão iniciando a carreira, leve consigo essa recomendação.
    Jovens veterinários, …

    Ps.: Intrigante, se no momento desse “sucesso” profissional: 400 cirurgias anuais, algum colega chamasse a atenção para aquele aspecto essencial que faltava nessa ação – o amor ao semelhante, e que hoje, de forma louvável, mas de coração contrito, o autor o confessa, com certeza, o próprio autor e seus “amigos” iriam dizer, naquela ocasião, que a observação seria de um invesojo, frustrado etc & tal. Nera, não?

    Parabéns pelo texto. O discurso serve para todos nós, jovens e não mais estes!

  2. JÚLIO CESAR SOARES diz:

    Carlos Santos, este texto deveria ser leitura obrigatória nos cursos de Medicina de nosso país. Tenho fé que este texto possa tocar os corações dos futuros médicos, pois a meneira de tratamento médico/paciente descrito durante a leitura é a mais pura verdade em sua grande maioria.

  3. Diego Dantas diz:

    Caro Mestre Edilson,

    Gostaria que soubesse que ao lê-lo, e faço com freqüência, sinto-me novamente na sala de aula, diante de uma das lições magistrais com as quais o Sr.  Brindou-me e aos meus colegas de turma. 
    Lembro-me como se hoje fosse da aula cujo tema abordou estado de choque. Com todo respeito que meus outros mestres merecem,  jamais este tema foi tão bem abordado, nem na pôs graduação. Sendo aquela aula, talvez, um dos motivos para ter escolhido a especialização em medicina intensiva.
    Contudo, recordo também do “desperdício” de mais de uma aula da grade para estudarmos o enredo do filme “Óleo de Lorenzo” (recomendo a todos, principalmente aos medicos e estudantes de medicina). Naquele tempo, o Sr. Já alertava para necessidade de cuidarmos de valores maiores.
    Caro mestre, ao chegar em Mossoro, após atingir o objetivo de tornar-me medico, especializei-me, passei a dar aula no curso medico da UERN, que anima pela qualidade técnica, assumi a direção técnica do HRTM e do recém-inaugurado Hospital da Mulher.
    Ah professor Edilson como tem sido difícil. Dos males individuais, inerentes aos defeitos do projeto humano, como arrogancia, impafia e inveja, aqueles genéricos como mercantilizacao da medicina, a luta entre empregados e empregador tem revelado a face mais danosa de ambos. Lembro daquela famosa frase “o sentimento de vingança e aquele no qual uma pessoa toma o veneno, desejando que o outro se envenene”.
    Permita a vênia de discordar, uma vez entender que o Sr. nao falhou,  pois ainda nao acabou. 
    O momento e de reflexão profunda. 
    Só nao nos pode ser dado o direito de desistir!

    Abraço carinhoso,

    Diego Dantas
    Medico e aluno

  4. Monaliza Trigueiro diz:

    O arrependimento, mesmo que nascido por meio do “sentir na pele” é válido. O mundo e a vida, realmente, dão muitas voltas. O médico em questão coleciona algumas desumanidades, como ele sabe e assume, mas foi digno neste ato. Como falei, merecem reflexão as palavras deste, enfim, ser humano.

  5. Ângela R Gurgel diz:

    Eu sempre acreditei que, independente da profissão, é preciso ver o outro, enxergar a história, os sonhos, os projetos pessoais. A tão badalada “distância” e/ou ão envolvimento sempre me pareceu mais crueldade que caminho. Como tratar o corpo se desconsideramos a pessoa como um todo? Como tratar o “doente” sem conhecer o ser? Parabéns doutro pela coragem de se expor, de reconhecer que poderia ter sido maior e melhor. É preciso ser grande para reconhecer que errou. Espero que esse desabafo alivia a dor da alma, e torço para que as drogas amenizem as dores do corpo. Afetuoso abraço.

  6. Terencio barros diz:

    Antes tarde do que nunca

    Nao acredito que o sr. Tenha fracassado como professor, acredito que tenhamos fracassado como alunos, pois como aluno eu tinha o direito de errar, duvidar, questionar e nada disto eu fiz, simplesmente absorvi todo aquele conhecimento pois acreditava que era o que me bastava, veja bem, eu aluno medico nao conseguia, nao queria e nao podia(nao conseguia pois nao tinha humildade, nao queria pois, sou melhor do que os outros, nao podia, pois nao sou um fraco) respeitar os meus colegas, respeitar sim, pois quando eu humilho, construo comentarios maldosos, ridicularizo, meu colega, pelo simples fato dele nao se enquadrar dentro dos padroes que foram ditados para um aluno medico, eu estou faltando com o respeito a pessoa humana que nao entra dentro de normas ditadas por seres que, em seus devaneios entenderam aquilo como certo, imagine entao respeitar um doente, que em teoria esta abaixo de mim. Abaixo de mim sim. pois nao sou eu um semi-deus?(padroes e ditames do curso medico). Lembre-se de hitler, mao tse- tung, stalin, que determinaram padroes e aos que nao se enquadravam nestes, foram condenados as camaras de gas, campos de concentracao, ou exterminio em praca publica, foram milhoes de pessoas mortas( judeus, negros, ciganos, homossexuais, desafetos politicos). O sr nao errou, apenas seguiu os ditames, a programacao que lhe foi imposta, a lavagem cerebral, que lhe foi colocada durante o curso medico, a qual se entranhou em seu ser. Aqueles que tentam sao condenados ao ostracismo, tanto pelos professores como pelos colegas. Na verdade meu querido professor(querido pois lhe estimo muito) o grande problema esta na condicao humana, pois o homem eh mal, se odeia, e odeia ao proximo.

  7. maria olimpia alves de m diz:

    Não há muito o que falar. É uma co confissão corajosa. Vale a pena repassar.

  8. Edna Lopes diz:

    A reflexão cala fundo a qualquer profissional, seja na área da saúde , da educação, da assistencia ou de qualquer campo do humano e dos demais seres que habitam este planeta.Não concordo com o “fracassou”.É bom rever os passos que damos, até quando julgamos e admitimos que errqmos!Nossa atitudes de educadores educam também nos péssimos exemplos que, possibilitam reflexões como esta, que ressignificam percursos.Abraços, Paz e Luz, aqui das Alagoas!

  9. Larissa Gabrielle diz:

    Seria bom se fosse reproduzido feitos aquelas mensagens que a gente recebe nas ruas, nos hospitais, nas faculdades, nas clínicas, nas esquinas. Seria bom se todos lessem e sensibilizassem. Melhor texto do fim de semana.

  10. Graça Sabino diz:

    Simplesmente BRILHANTE!

  11. Haida Oliveira diz:

    Após ler o texto hoje, no Diário de Natal, enviei a mensagem abixo ao Dr. Edilson:
    Prezado Professor e caro Doutor Edilson,

    não nos conhecemos pessoalmente, mas li seu conto por conhecê-lo através da fala de meu filho, Thiago Bruno Assis de Oliveira, hoje médico cirurgião-geral e que passou por suas mãos na Liga do Câncer.
    Apenas pelo título de seu conto não o leria, afinal, todo professor tem muito do que se arrepender. Li quando vi seu nome. O seu nome me chamou a atenção e me induziu a lê-lo, pois eu o conheço pelas citações de meu filho e pela admiração que ele tem pelo senhor, pelo seu trabalho e por sua postura e relação com o paciente, o que contraria sua crença, segundo ficou nítido em seu conto. Quero ter o enorme prazer em contrariá-lo nisto e espero que muitos o façam também.
    Hoje meu filho tem uma bela relação com seus pacientes, não apenas ética, mas de respeito e de sentimentos mais humanitários e lhe afirmo que o senhor foi um dos que contribuíram para essa formação. Acredite: o senhor foi e é um bom referencial para o meu filho e, acredito que para outros médicos também. Não se culpe pelos que não assimilaram seus ensinamentos, estes sempre existirão.
    O sofrimento nos torna melhor, mas oro para que Deus esteja com o senhor e alivie sua dor física e lhe dê o conforto espiritual para superar este momento.

    Saúde e paz!

    Um abraço em meu nome em nome de meu filho

    Haida Oliveira

  12. Cynthia Barbosa diz:

    Serve de lição não só para os médicos, mais para todos os profissionais da área da saúde

  13. FRANCISCO diz:

    Realmente só um médico DOENTE para atender com presteza e atenção aos pacientes, sobretudo, nos hospitais públicos onde eles consideram o serviço ,pago pelo indivíduo, como um favor, pois, 99,9% deles nem olham para o paciente que tanto o venera e endeusa.

  14. Genner Barbosa do Nascimento diz:

    Sem palavras!!!! Não por não saber escreve-las, mas, simplesmente, porque tentar comentar um texto tão COMPLETO como esse seria o mesmo que finalizar a contagem do Pi. Impossível.
    Apenas posso dizer que trata-se de um texto que orienta, que abre os olhos, modifica a alma e a arrebata! O restante ele fala por si só.
    Professor Edilson, um homem sensato!
    Um dia o chamarei de “Oh capitão, meu capitão!” (Sociedade dos poetas mortos)

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