quinta-feira - 11/09/2025 - 18:00h
Lançamento

Livro “Historiadores do RN” apresenta biografias potiguares

Capa do livro (Reprodução do BCS)

Capa do livro (Reprodução do BCS)

A editora Biblioteca Ocidente acaba de publicar o livro Historiadores do Rio Grande do Norte, organizado por Gustavo Sobral, Honório de Medeiros e André Felipe Pignataro.

O livro reúne perfis biográficos de historiadores potiguares dos séculos XIX e XX. A obra é a primeira do gênero publicada no Rio Grande do Norte, um marco para a preservação e valorização da memória histórica e intelectual do estado.

Cada capítulo foi escrito por convidados, entre pesquisadores, professores, escritores, estudantes e historiadores, que adotaram diferentes estilos, do acadêmico ao literário, do ensaístico ao tom de homenagem. O resultado é um mosaico de abordagens que reflete também a diversidade dos próprios historiadores retratados.

O livro está disponível para download gratuito no site da editora Biblioteca Ocidente, //revistagalo.com.br/selo-bo/, e também em gustavosobral.com.br. Para quem deseja adquirir a versão impressa, o título pode ser encontrado na loja UICLAP.

Outras publicações dos organizadores

Governo do Rio Grande do Norte, organizado por Gustavo Sobral, Honório de Medeiros e André Felipe Pignataro e Potiguariana IHGRN de Gustavo Sobral e André Felipe Pignataro. Mais informações e acesso gratuito às obras no site gustavosobral.com.br.

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Categoria(s): Cultura
domingo - 07/09/2025 - 17:30h

Manoelito Pereira, ou da arte de aprisionar um instante

Por Honório de Medeiros

Manuelito deixou acervo com mais de 40 mil fotos (Reprodução)

Manoelito deixou acervo com mais de 40 mil fotos; ele em seu estúdio em 1942 (Reprodução)

Alguns anos atrás o antigo Centro Mossoroense promoveu, em Natal, uma exposição com pequena parte do acervo fotográfico de Manoelito Pereira.

Ao mesmo tempo, prestou-lhe uma homenagem através de seus descendentes.

E os mossoroenses, além de outros interessados, puderam constatar seu talento através das fotografias expostas na Capitania das Artes.

Vivo fosse, talvez Manoelito tivesse encarado com ressalvas as fotografias escolhidas para a exposição. Faltaram aquelas que melhor expunham sua arte: os tipos populares, os nus artísticos, a própria cidade.

Sim, porque já naquela época, ou por isso mesmo, ele construiu um legado contemporâneo do futuro – em termos de arte os conteúdos, como o querem alguns filósofos, ditam a forma – jamais o contrário.

Embora seja compreensível a razão do Centro Mossoroense ter escolhido as fotografias de membros de antigas famílias da cidade para o evento, não seria demais a lembrança do caráter paroquiano dessa escolha.

No final das contas a exposição, que pretendia homenagear Manoelito, transformou-se numa homenagem de mossoroenses a mossoroenses através das fotografias expostas.

Assim é que não se via outra coisa, na Capitania das Artes, senão mossoroenses procurando a si mesmo e a seus ancestrais nas imagens.

Um fato no mínimo curioso, para um evento aberto ao público para homenagear a arte – embora também a memória por ele construída – de um artista finalmente e justamente lembrado.

Não importa. De qualquer maneira a homenagem, merecida, foi feita.

E o melhor, do acontecimento, foi chamar a atenção dos próprios mossoroenses para o valor incalculável do acervo doado por sua família a Mossoró.

Não é à-toa a importância que estudiosos de grandes universidades do sul dão ao acervo.

Tornado público, talvez seja mais difícil sua destruição, embora não haja mais como recuperar o muito que se perdeu, ao longo do tempo.

Saliente-se que o valor da obra de Manoelito não reside apenas no aspecto histórico.

Se, através das lentes de suas máquinas fotográficas, captou e registrou quase cinquenta anos da vida de Mossoró, muito mais se torna fundamental seu trabalho quando o observamos a partir de uma perspectiva acadêmica e, com os olhos de estudiosos, agradecemos sua contribuição para entendermos a evolução de uma cidade com as características de Mossoró.

Entender como Mossoró avançou no tempo é entender aspectos da história das cidades, do Sertão, Nordeste, Brasil, enfim, de nós mesmos.

Ou seja, o instante que Manoelito aprisionou é, aos olhos do estudioso, um imenso objeto de estudo a ser desvendado e compreendido. Lá estão, à sua espera, congeladas no espaço e no tempo, com arte, imagens que revelam fenômenos históricos, sociológicos, econômicos.

Debruçados sobre eles, assim como se debruçaram outros sobre as pinturas, as estátuas, a arte, enfim, dos antigos, estudiosos construíram a história da humanidade.

Entretanto, mais que alguém desejando fazer o registro de várias épocas, Manoelito construiu arte. Neste aspecto, não se sabe se sua vida imitou a arte, ou o contrário.

Manuelito em seu estúdio, em 1942 (Foto: Web)

Manoelito não fotografava; compunha (Foto: Arquivo)

Como todo artista, estava à frente de seu tempo não só no que diz respeito à arte em si, mas também ao seu estilo de vida.

E parecia compreender essa perspectiva, quando transcendia a diuturnidade das exigências comerciais que lhe eram impostas pela necessidade de sobrevivência compondo fragmentos-imagens de uma beleza sem par, mesmo se somente lhe era solicitado o aprisionamento de um instante específico através de uma fotografia.

Ele não fotografava, compunha. Transformava o árido em fértil, o cinzento em festa para os olhos, o jogo de sombras em arte.

Repousa sobre o meu birô de trabalho uma foto de minha mãe, feita por ele, onde está estampado, com rara felicidade, o melhor de seu talento.

Não podia ser diferente: virou lenda a exigência e rispidez com a qual, mesmo no tumulto de casamentos ou outras festas, produzia as fotografias a ele encomendadas.

E, compondo, reafirmou a crença – pelo menos para uns poucos – de que somente artistas como ele, antenas da raça, ungido dos deuses, conseguem tornar-se eternos.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 24/08/2025 - 07:14h
Mossoró, 1927

Uma trincheira pouco conhecida e o misterioso Júlio Porto

Por Honório de Medeiros

Da esquerda à direita: Raimundo Firmino de Oliveira, Aldemir Pessoa Fernandes, Ezequiel Fernandes, Pedro Fernandes e Raimundo Nonato A. Fernandes, sócios de Alfredo Fernandes & Cia Ltda.

Da esquerda à direita: Raimundo Firmino de Oliveira, Aldemir Pessoa Fernandes, Ezequiel Fernandes, Pedro Fernandes e Raimundo Nonato A. Fernandes, sócios de Alfredo Fernandes & Cia Ltda.

Nos idos de 1925, o adolescente Raimundo Nonato Alfredo Fernandes, então com quinze anos, viu encostar, no terreiro da casa de seus pais José Fernandes Chaves e Maria Adília Fernandes, um Ford 1922 com duas pessoas dentro.

Era Elias Fernandes, que vinha convidá-lo para trabalhar com Alfredo Fernandes, proprietário da empresa do mesmo nome em Mossoró e da lendária residência na Avenida Alberto Maranhão, vizinha, por um lado, à também lendária residência do Coronel Rodolpho Fernandes, de quem era cunhado, e que hoje é a sede da Prefeitura da Cidade de Mossoró, e, pelo outro, à também lendária Igreja de São Vicente de Paula.

Elias e Alfredo Fernandes, primos legítimos de Raimundo Nonato, eram filhos do Coronel Adolpho Fernandes, protagonista do “Fogo de Pau dos Ferros”, em 1919, quando sua família, por ele liderada, expulsou o líder político Coronel Joaquim Correia da cidade.

O Coronel Joaquim Correia jamais voltou a Pau dos Ferros. E o Coronel Adolpho Fernandes era Prefeito (Intendente) quando Lampião atacou Mossoró.

A outra pessoa no carro atendia pelo nome de Júlio Porto, e era motorista da família Fernandes. Raimundo Nonato não sabia, mas viajou até Mossoró ao lado do seu primo e de um futuro cangaceiro que teve papel importante nas articulações que suscitaram os ataques a Apodi, em 10 de maio, por Massilon e seu bando, e a Mossoró, em 13 de junho de 1927, dessa vez por ninguém menos que o próprio Lampião.

Atentemos para o detalhe: em 1927 Júlio Porto, natural de Aurora, no Ceará, já conhecia, e bem, Mossoró.

Passam-se dois anos. Estamos em 1927. Junho. No dia 13, Lampião invadiu Mossoró.

No final da rua hoje denominada Dr. Francisco Ramalho, lateral do lado direito da Igreja de São Vicente de Paula, no sentido de quem vai para o centro da cidade, na última residência, residia Ezequiel Fernandes de Souza, sobrinho do Coronel Adolpho Fernandes e sócio da Companhia Alfredo Fernandes Indústria e Comércio.

Nela, a poucos passos da Igreja, montou-se uma tosca trincheira para aguardar os cangaceiros.

Sob a liderança de Ezequiel Fernandes, lá estavam sua esposa Ester(1), que havia dado a luz e padecia de febre puerperal; o chofer de um caminhão da Prefeitura que aguardava condições para retirá-la da cidade, mas que fugiu tão logo aconteceram os primeiros tiros; um freguês da empresa Alfredo Fernandes chamado de “Velho Chico”; e um amigo da família, Maurílio, que lá estava porque tinha raptado Isabel, sobrinha de Afonso Freire e a depositado sob os cuidados dos donos da casa.

As quinze pessoas, no total, recolheram-se em um quarto no centro, no entorno da cama da doente: Ezequiel Fernandes; Pedro Ribeiro, seu primo; seus filhos Laete, Luís e Aldo; Francisco Fernandes de Sena (Chico Sena), seu sobrinho; Isabel; as domésticas Leonila e Esmerinda; as vizinhas Maria Leite e sua filha Laura; Julieta, filha de Delfino Fernandes; Alzenita Fernandes; e Raimundo Nonato, então com dezessete anos.

Os integrantes da trincheira, que se posicionaram no telhado da residência foram o “Velho Chico” e Maurílio(2).

Dessa vez Raimundo Nonato não chegou a ver Júlio Porto, mas o ex-motorista dos Fernandes que fora lhe buscar em Pau dos Ferros talvez tenha estado com os cangaceiros de Lampião e Massilon no ataque a Mossoró. Com certeza já estivera na invasão de Apodi, com Massilon.

O misterioso Júlio Porto, nasceu em Aurora, no Ceará, mesma cidade onde nascera e exercia enorme influência política no Cariri o Coronel Isaías Arruda.

Em 1927 Júlio Porto tinha vinte e três anos de idade. Júlio Porto não era Porto. Seu verdadeiro nome era Júlio Sant’anna de Mello. O “Porto” viera de sua estreita ligação com Martiniano Porto, fidalgote nas terras do Apodi, e inimigo sangue-a-fogo do Coronel Francisco Pinto, líder político da cidade.

Martiniano Porto era relacionado por laços de interesse recíprocos com Tylon Gurgel e Benedito Saldanha(3) – futuro Prefeito daquela cidade -, todos ferrenhos opositores do Coronel.

Tylon Gurgel, por sua vez, era sogro de Décio Hollanda, e Benedito Saldanha, protetor de Massilon Leite no Ceará, fronteira com Apodi, o qual se considerava “afilhado” de seu irmão, o Coronel Quincas Saldanha, a quem chamava de “padrinho”, desde os tempos de sua jagunçada em Brejo do Cruz, quando matou Manoel Paulino de Moraes, José Augusto Rezende (juiz da cidade), feriu Minervino de Almeida (também juiz), e Severino Elias do Amaral, a serviço de um consórcio de coronéis da região.

Júlio Porto foi um dos elos de ligação entre os inimigos políticos dos Coronéis Francisco Pinto e Rodolpho Fernandes, com o Coronel Isaías Arruda, pelo fato de ser de Aurora(4). Ele está presente em momentos cruciais ligados à invasão de Apodi e Mossoró.

"Bronzeado prestou depoimento (Foto: reprodução)

“Bronzeado prestou depoimento (Foto: reprodução)

Em seu depoimento à polícia, Bronzeado corrobora essa versão, ao afirmar que:

“trabalhava com o senhor José Cardoso, que mora em uma fazenda do senhor Izaias Arruda chefe de Missão Velha e do qual o Cardoso é primo. Estava ali trabalhando quando chegou a ordem do senhor Izaías de seguirem para Apody, afim de fazerem o ataque já conhecido, a convite do senhor Décio Hollanda, morador em Pereiro. Ele e outros não queriam seguir, mas foram obrigados. O portador da carta de Décio fora o conhecido ‘chauffeur’ Júlio Porto, também bandido, que aqui morou”(5).

Júlio Porto conhecia Mossoró, portanto, como ninguém. Raul Fernandes nos relata o seguinte, em A MARCHA DE LAMPIÃO(6):

“Joanna Bezerra da Silva, conhecida por Doca, deu-nos uma entrevista interessante: Morava em Mossoró. Empregada doméstica da casa de José de Oliveira Costa (Costinha Fernandes), comerciante, sócio da firma Tertuliano Fernandes & Cia. Disse que Júlio Porto fora por último chofer de caminhão da referida firma. Meses antes do assalto a Apodi, desaparecera de Mossoró. Vez por outra aparecia à noite, muito apressado. Entrava pelo portão do fundo do quintal da casa, pedia café à Doca e sumia. Aconteceu chegar vestido à moda de cangaceiros. Dizia ser o traje onde trabalhava”.

Sendo de Aurora, Ceará, com certeza Júlio Porto sabia quem era José Cardoso, proprietário da Fazenda “Ipueiras”, parente e aliado do Coronel Isaías Arruda. A ele, quem sabe, apresentou Décio Hollanda, genro de Tylon Gurgel, amigo e correligionário de Martiniano Porto e Benedito Saldanha. Disse a Décio Hollanda, representante do grupo político contrário aos Coronéis Francisco Pinto e Rodolpho Fernandes, talvez, que José Cardoso era o homem certo para se chegar ao Coronel Isaías Arruda e, através dele, a cangaceiros e jagunços a serem comandados por Massilon.

É possível que Júlio Porto não tenha participado do ataque a Mossoró, embora estivesse na invasão de Apodi. Essa é a opinião de Calixto Jr, no excelente VIDA E MORTE DE ISAÍAS ARRUDA(7):

“Depois do assalto (a Apodi), tendo regressado a Aurora, Júlio Porto retorna à casa de Mundoca Macêdo no Angico, a quem vendeu por 95$000 um rifle e cinquenta balas que lhe havia sido cedido para a empreitada. Efetuada a venda, retirou-se para Juazeiro do Padre Cicero, onde viria a matrimoniar-se, ainda em 1927. Lançando mão de algum dinheiro que a esposa possuía, montou carpintaria nas proximidades da atual rua do Cruzeiro, onde trabalhou por uma temporada até ser preso”.

Uma vez preso e recambiado para Apodi, como visto, e liberto por Roldão Maia, o assassino do Coronel Chico Pinto, então carcereiro, sumiu no oco do mundo…

(1) Ester Fernandes não resistiu à doença e faleceu quatorze dias depois, no dia 27 de junho, cercada pela família.

(2) Tudo aqui é contado conforme o livro RAIMUNDO FERNANDES, ANTEPASSADOS E DESCENDENTES, da lavra de Inês Maria Fernandes de Medeiros, com alguns acréscimos.

(3) Do pesquisador Marcos Pinto, acerca de Décio Hollanda, Benedito Saldanha, e Tylon Gurgel, recebi a seguinte correspondência eletrônica, em 23 de janeiro de 2012:

“Encontrei um fato por demais interessante no inquérito/processo que apurou o ‘FOGO DE PEDRA DE ABELHAS’.

Consta por testemunha firme e valiosa que DÉCIO HOLLANDA comprou, no começo do ano de 1925, duas mil balas de rifle e mandou esconder em local que o Capitão Jacintho não conseguiu localizar. Agora, veja a coincidência: dois anos (1927) depois consta que Lampião recebeu um suprimento de duas mil balas de rifle quando se preparava para atacar Mossoró. 

Ora, se esta munição não foi gasta nem apreendida pelo Capitão Jacintho, é a mesma que Décio conduziu, em caixões muito bem disfarçados, “escanchados” em lombos de burro, segundo octogenários que ainda hoje comentam o episódio em Felipe Guerra.

Estou alinhavando um novo artigo que terá o seguinte título: “CANGAÇO NO OESTE POTIGUAR – DO FIO DA NAVALHA AO FIO DA MEADA. Vou provar por A mais B a proteção dada ao cangaceirismo por parte dos desembargadores FELIPE GUERRA e HORÁCIO BARRETO e do Juiz de Direito JOÃO FRANCISCO DANTAS SALES, que recebia abertamente, em sua casa em Apodi, Décio Holanda, Tylon Gurgel e Benedito Saldanha.

JOÃO DANTAS SALES foi transferido, “a pedido”, para Acari, em 25 de maio de 1925, por instâncias do Governador José Augusto, que convenceu o então Presidente do Superior Tribunal de Justiça Estadual, atual TJE.

Acrescente-se que HORÁCIO BARRETO era sobrinho de JUVÊNCIO BARRETO, que veio de Martins para Apodi em 1915, à convite de MARTINIANO DE QUEIRÓZ PORTO, para fixar residência e cerrar fileira na oposição à família PINTO comandada por Tylon Gurgel e seu genro Décio Hollanda. 

O Dr. José Fernandes Vieira também traficou influência em favor do seu sogro Martiniano Porto, sendo certo que, em 1925, o aconselhou a ir residir em Pau dos Ferros. 

Observo que os dois mil cartuchos que foram comprados por Décio Hollanda, o foram em Mossoró, em 1925. 

Lembrei-me de outra particularidade: o Desembargador Horácio Barrêto era sobrinho da esposa (Alexandrina Barrêto) do Governador do Rio Grande do Norte, Joaquim Ferreira Chaves, que deu apoio oficial à perseguição policial a Joaquim Correia e aos Ayres em Pau dos Ferros, em 1919. Horácio e Felipe Guerra foram indicados e nomeados desembargadores por Ferreira Chaves em 1919. 

Felipe Guerra foi candidato e eleito Deputado Estadual em 1934 na chapa dos “Pelabucho” na qual constava, ainda, Benedito Saldanha”.

(4) Leiamos um auto de interrogatório de Júlio Porto no qual ele informa que é cearense e, também, que o guarda que lhe deu fuga, jagunço do Coronel Benedito Saldanha, foi o mesmo Roldão Maia que anos depois assassinaria o Coronel Chico Pinto:

“Auto de perguntas feitas a Julio Sant’Ana de Melo, vulgo Júlio Porto.

Aos vinte e dois dias do mês de maio do ano de mil novecentos e trinta e três, nesta cidade de Apodi, município do mesmo nome, Estado do Rio Grande do Norte, em o salão da cadeia pública desta cidade, aqui presente o cidadão Osório Martins de Moura Brasil, Delegado de Polícia deste município, comigo escrivão abaixo assinado, presente o preso Júlio Sant’Ana de Melo, vulgo Júlio Porto, pela mesma autoridade lhe foram feitas as seguintes perguntas: Qual o seu nome, prenome, idade, estado, profissão, naturalidade, profissão, residência e se sabe ler e escrever? Respondeu chamar-se Júlio Sant’Ana de Melo, vulgo Júlio Porto, com vinte e nove anos de idade, solteiro, motorista, natural do Estado do Ceará, filho de Manoel Sant’Ana de Melo e Francisca Maria da Conceição, residindo nesta cidade, sabendo apenas assinar o nome. Perguntado como fugiu da prisão, quem o auxiliou e porque voltou? Respondeu que em o dia vinte do corrente mês, cerca de dezenove horas, com um pedaço de pau, abriu a prisão em que se achava e abrindo o portão, saiu pelo interior da cadeia; que se tinha alguma praça o guardando na ocasião em que saiu da prisão, não viu; que saiu na carreira na procura de Mossoró, onde destinava-se; que chegando no lugar chamado “Mato Verde”, e depois de subir a serra, resolveu voltar, chegando hoje nesta cidade, cerca de nove horas; que não teve quem o auxiliasse a fugir da prisão, bem assim quem o aconselhasse a fugir; que saiu como um doido quando saiu, pois estava bastante ébrio; que passou em casa de Arnóbio Câmara, despediu-se da mulher deste e saiu às carreiras; que Arnóbio não estava em casa quando passou por lá; que da casa de Arnóbio saiu pela estrada afora em busca de Mossoró; passou em casa de uma mulher conhecida por Preta, despediu-se da mesma e seguiu viagem; que no Sítio ? mais ou menos, nas proximidades da casa de José Honorato de Moraes, vulgo Zeca ?, pressentiu que ia a sua procura uma força; que ocultou-se dentro do mato e viu quando a força passou, reconhecendo serem uns soldados; que na tarde do dia em que fugiu andava só uns soldados da força do Tenente Virgílio Barbalho, e chegando em casa de Amália de Tal, os mesmos soldados tomaram um pouco de aguardente e deixaram um bocado em um copo para o respondente; que tomou o aguardente e saiu logo embriagado não sabendo o que ia fazendo; que quem trancou o respondente na prisão no dia em que fugiu foi o guarda Roldão, isso por lhe terem dito. E como nada mais disse…”

Trincheira na cada de Rodolfo Fernandes (Foto: Reprodução)

Trincheira na cada de Rodolfo Fernandes (Foto: Reprodução)

(5) O CANGAÇO NA IMPRENSA MOSSOROENSE; PIMENTA, Antônio Filemon Rodrigues; Tomo II; Coleção Mossoroense; Série “C”; nº1.104; 1999; Mossoró.

(6) 4ª. Edição; Nota 9 ao Segundo Capítulo.

(7) CALIXTO JÚNIOR, João Tavares; Fortaleza: Expressão; 2019.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
domingo - 03/08/2025 - 09:48h

Ao redor do buraco, tudo é beira

Por Bruno Ernesto

Traíra em açude seco (Foto: Bruno Ernesto)

Traíra em açude seco (Foto: Bruno Ernesto)

Um dos pontos esquecidos sobre o chamado “período do banditismo”, que eclodiu nos sertões profundos do Nordeste brasileiro no final do século XIX e que se intensificou até a década de 1940, foi a paradoxal relação entre o santo e o profano.

O protoreligiosismo sertanejo, com suas rezas incisivas, especialmente de proteção e fechamento do corpo, com alguma pouca incursão no sincretismo religioso, mas acentuada correlação entre a injustiça terrena e a salvação divina, foi a gênese do que se renova hoje no Brasil, sob outra tutela e cosmovisão, porém com mesmo proselitismo e interesses econômicos, sempre subjacentes.

Religiosidade nos grotões do sertão Nordestino sempre foi um fenômeno endêmico, peculiar, e de uma mistura mística difícil de compreender, e que deixou marcas indeléveis.

Nos tempos revoltosos do sertão, a mão que pedia a bênção e debulhava o terço, era a mesma que erguia o punhal, puxava o gatilho ou apertava a carne.

A religiosidade primitiva, se assim podemos dizer, guarda inúmeras facetas. O perdão nem sempre se conquista com a fé.

Lembro muito bem a colocação do escritor Honório de Medeiros, autor da importante obra “Histórias de Cangaceiros e Coronéis”, que destaca que o coronelismo foi o braço forte desse movimento, com nomes que até hoje reverberam entre nós, porém com pouca correlação de poder econômico e paralelo daquele tempo, como Veras, Maias, Saldanhas e tantos outros.

A religiosidade sempre foi esteio do povo, especialmente no meio da miséria econômica. Que o diga Cícero Romão.

O poder da palavra é exponencialmente maior do que o da força bruta, ainda que essa também lhe sirva.

No caldeirão nordestino daquele tempo, podia se dizer que, ao redor do buraco, tudo é beira. ‎

Bruno Ernesto é advogado, professor e escritor

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Categoria(s): Crônica
  • Art&C - PMM - Climatização - Agosto de 2025
domingo - 03/08/2025 - 08:50h

Seu Lula Nogueira

Por Honório de Medeiros

Reprodução de foto do autor da crônica

Reprodução de foto do autor da crônica

Ali e acolá, em livros que somente alguns leem, seja porque deliberadamente os procuram, seja por um desses acasos da vida, me deparo com seu nome.

Está posto em um pé-de-página, ou em algum parágrafo.

Recentemente, ao reler a literatura norte-rio-grandense acerca da saga lampiônica em Mossoró – Raul Fernandes e Raimundo Nonato da Silva – lá estava seu nome, “en passant”, como teria dito, trazendo expressões próprias do jogo de xadrez, que tanto amava, para o cotidiano.

Foi exatamente o jogo de xadrez que me levou a conhecê-lo. Eu e vários de minha geração, a quem ele pacientemente ensinou a jogar.

Tínhamos em torno dos oito anos e nosso mundo era muito simples: brincar no Colégio Diocesano, brincar no patamar da Igreja de São Vicente, brincar em casa nas raras vezes em que a rua nos era proibida.

Assim como brincar de aprender a jogar xadrez nas tardes provincianas de Mossoró, anos sessenta, na pequena casa onde Lula Nogueira – “Seu” Lula – vivia sozinho com o filho solteirão – uma figura misteriosa a quem quase nunca víamos e acerca de quem falávamos aos sussurros.

“Seu” Lula morava nessa casinha branca que tinha uma área de entrada diminuta, porta e janela dando imediatamente para a salinha de visita e jantar, ao mesmo tempo. Do lado esquerdo de quem entrava dois quartos: o primeiro, com janelão para a rua, era o seu; o outro, do filho.

A sala emendava com uma pequena cozinha dela separada por uma mureta onde pontificava um filtro de água de cerâmica e um varal de madeira de empilhar pratos, meio escondidos por um pano.

Tudo muito normal, tudo muito comum, não fosse uma mesa oficial de xadrez colocada perpendicularmente à janela da sala para aproveitar a luz do sol, na qual ficavam postados, desde sempre, livros e revistas argentinas acerca do jogo, além de majestosas e manuseadas peças tipo “Stauton”, para os embates enxadrísticos.

Embora possa lembrar de “Seu” Lula conversando na nossa rua, principalmente na roda de “Seu” Napoleão, onde o escutei, entre perplexo e admirado, certa vez, afirmar enfaticamente que somente morreria após a passagem do ano 2000, tais incursões eram raras.

Certo, mesmo, era passar em frente à sua casinha, fosse manhã ou tarde, e encontra-lo defronte ao tabuleiro de xadrez, mão esquerda com dedos polegar e indicador apoiando a cabeça, cigarro esquecido embora aceso entre os dedos médio e anular, enquanto a mão direita movia as peças para cima e para baixo, para um lado e para o outro, ou na diagonal, na tentativa de criar ou solucionar problemas enxadrísticos que já haviam lhe granjeado reputação nacional.

Podia, também, ser o caso de estar, simplesmente, reproduzindo uma partida de xadrez de grandes mestres internacionais.

Depois eu, como os outros, fui embora. O mundo nos esperava. Entretanto, nunca esquecemos – aqueles que fomos seus alunos – nosso professor de xadrez.

A ele ofereci, em silêncio, minha primeira medalha de ouro nos Jogos Estudantis do Rio Grande do Norte, disputando pela então Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte.

Basta, ainda hoje, ver peças tipo “Stauton”, ou mesmo um tabuleiro oficial, que volto no tempo para aqueles dias já longínquos quando um menino magro, tímido, e um ancião de mãos nodosas, emoldurados pela claridade solar que ultrapassava a janela da sala e escandia a fumaça dos muitos cigarros fumados ou esquecidos, jogavam intermináveis partidas nas quais somente a profunda gentileza do professor impedia uma humilhação contínua ao aluno.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
domingo - 29/06/2025 - 05:26h

A estrada é o destino

Por Honório de Medeiros

Foto produzida pelo autor da crônica

Foto produzida pelo autor da crônica

Toda estrada é um destino. A estrada é o destino, seja metáfora, seja realidade. É nossa história de vida. O começo e o fim de algo inominado. Essência ou aparência. Ínfimo ou descomunal. Ordem ou caos individual.

Para lá onde fica a beira do abismo, limites do seu terreno pedregoso se encaminhava Seu Petronilo, tangendo uma velha, antiquíssima bicicleta caindo aos pedaços.

Parei o carro ao seu lado. Ele me olhou, ressabiado. Dei um bom dia caloroso e ele respondeu no mesmo tom, com o sotaque da Serra, tirando o velho chapéu de massa, respeitoso, condizente com seus aparentes noventa e tantos.

O Senhor vai tomar que rumo?

Meu Senhor, vou pelas beiradas até o Cabeço, se Deus me deixar.

Então eu tou no rumo certo, seguindo em frente.

Tá sim senhor.

Vou lá agora cedo, porque soube que na ponta da Serra, final do Cabeço, as pessoas têm visto umas luzes estranhas, quando chega a noite alta. Quero assuntar. É assim mesmo?

É sim senhor. Eu mesmo fui pastorar uma raposa, num terreninho que tenho por lá, onde crio uns porcos, coisa pouca, era noite de lua grande, e vi essas luzes coloridas rodopiando no céu, indo e voltando, para lá e para cá, bem umas cinco ou seis. Uns caçadores que tavam por perto também viram.

O Senhor teve medo?

Medo mesmo não, porque se tá no mundo é porque Deus quer, até me benzi umas tantas vezes, mas achei meio fora do conforme. Durou um bom pedaço. E eu olhando pro céu, me perguntando o que danado era aquilo.

No final deu tudo certo, não foi?

Mais ou menos. Enquanto eu cuidava das luzes no céu, a raposa cuidou dos meus porquinhos…

Não tive como não rir. Ele riu também, colocou o chapéu na cabeça, pediu licença e tangeu a bicicleta, tomando destino, firme e forte como as rochas que abundam no Cabeço.

Bom dia, Seu Petronilo, fique com Deus.

O Senhor também!

Honório de Medeiros.

Quinta da Aroeira, Cerro, 22 de junho de 2025.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 01/06/2025 - 10:10h

Tive medo

Por Honório de Medeiros

Foto em Natal, do autor da crônica

Foto em Natal, do autor da crônica

Nessa rua, da qual somente se percebe um vislumbre, durante o dia raros sãos os pedestres e mais ainda aqueles carros ansiosos, a passarem velozes, em sua busca frenética e atormentada.

Suas poucas casas, inclusive as comerciais, têm grades. Os vizinhos, poucos – ainda os há – não se conhecem, me disse o vigilante que a percorre durante a noite portando um apito, e, na cintura, um cassetete de madeira, para amedrontar os incautos.

Nunca vi crianças correrem em suas calçadas, gritando uma com as outras, brincando despreocupadas, vigiadas por pais amorosos a conversarem serenos, como ocorria na minha meninice.

Entretanto, outro dia vi uma criança grande dormindo no chão. Quis confortá-lo, mas tive medo.

Natal, algum dia de 2024.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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segunda-feira - 19/05/2025 - 08:26h
Livro

“Potiguariana” mostra acervo do Instituto Histórico e Geográfico do RN

Livro é um trabalho denso sobre acervo do IHRGN (Reprodução do BCS)

Livro é um trabalho denso sobre acervo do IHRGN (Reprodução do BCS)

Gustavo Sobral e André Felipe Pignataro reuniram suas pesquisas e escritos sobre as peças do acervo do Instituto Histórico e Geográfico do RN (IHGRN) em mais um novo livro sobre a história do Rio Grande do Norte. Trata-se de “Potiguariana IHGRN: peças e histórias da coleção do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte”.

Uma história contada pelos objetos, documentos e obras do acervo do Instituto. Tem o retrato de Felipe Camarão, doado por Alberto Maranhão em 1902 ao Instituto, o Pelourinho da cidade do Natal, o bilhete enviado por Lampião às vésperas da invasão a Mossoró, e a primeira edição do jornal O Natalense, entre tantas e tantas outras relíquias no museu da instituição.

“Fundado em 1902, o Instituto é mais antiga instituição cultural do Rio Grande do Norte em atividade, é biblioteca, arquivo e museu e o seu acervo merece ser conhecido, propagado e estudado. Este livro procura ser uma contribuição”, explicam os autores.

O trabalho conta ainda com a colaboração de Honório de Medeiros que escreve sobre o bilhete de Lampião; Pedro Simões sobre o Barléu; Igor Oliveira sobre numismática; além de um cuidadoso registro fotográfico assinado por Maria Simões que apresenta o Instituto por imagens.

O livro é uma edição da Biblioteca Ocidente (2025, 75p) de Francisco Issac Dantas com designer de Gabriel Araújo e está disponível em edição digital aqui no site www.gustavosobral.com.br , basta fazer o download gratuito. A versão impressa pode ser adquirida diretamente no site da editora: //revistagalo.com.br/selo-bo/

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Categoria(s): Cultura
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domingo - 11/05/2025 - 04:44h

A luz de Honório de Medeiros

Capa do livro de Honório de  Medeiros (Foto: BCS)

Capa do livro de Honório de Medeiros (Foto: BCS)

Por Carlos Santos

Enquanto duelo contra meus moinhos de vento (ou gigantes), representados por uma virose, me fortaleço com as reflexões sábias de Honório de Medeiros.

Ele não é Sancho, jamais serei Quixote – e vice versa. Somos irmãos com algum traço de sanidade. E olhe lá.

“Os que dizem não” é seu mais novo livro. Trata-se de um ensaio sobre seres humanos singulares e o pensamento que contraria o rumo da grande maioria da massa gente, através dos milênios.

Faz-me lembrar “O homem medíocre” (1913), do filósofo e escritor argentino José Ingenieros, ensaio que descreve o indivíduo conformista, alienado e comum, atraso à humanidade. É preciso nadar contra a correnteza.

Minha cura em grande avanço, que se diga, passa pela leitura dos que lançam luz na proa. Honório é guia. Rompe as trevas e encara de frente a mesmice coletiva endêmica.

Cá no sertão, à sombra de uma árvore frondosa, dou uma pausa. Mas, meu descanso é a batalha.

Carlos Santos é criador e editor do Blog Carlos Santos

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Categoria(s): Crônica
domingo - 06/04/2025 - 07:30h

Os que dizem não

Por Gustavo Sobral

Foto da capa física do livro

Foto da capa física do livro

Honório de Medeiros descobre o ensaio como forma de expressão e o usa como exercício para expor como a ciência, a história, a filosofia e a literatura trataram a figura do fora do comum, o outsider. Numa forma toda sua, apresenta em livro um ensaio erudito para um tema rebelde.

Um passo de alguém que, ao estudar casos concretos de figuras fora da curva como Massilon e Jesuíno Brilhante, agora sai dos casos em particular para pensar o arquétipo. Também é, observando a obra do autor e o seu último livro, o De uma longa e áspera caminhada (2022), mais um abraço ao exercício de pensar polifônico.

Ler Honório de Medeiros é também ler todos aqueles que foram eleitos para acompanha-lo. Uma bibliodiversidade impressionante e instigante. Talvez, você termine a leitura como uma listinha de autores e livros para ler, porque é um livro que também nos leva para fora.

A leitura corre como um thriller, os assuntos vão se sucedendo, se completando, ou abrindo janelas paralelas (e não). O outsider está lá, como também o seu contrário, o homem comum, e não faltam eles, os cangaceiros, tema caro ao autor, e, nesta parte em especial, o autor é narrador, e temos mais uma camada deste livro.

O livro de Honório de Medeiros é curioso, interessante, novidadeiro, tanto na opção da forma, o ensaio; quanto na eleição do tema, o outsider, sendo ele mesmo, o autor, um outsider ao produzir uma obra incomum. Singular e inclassificável. É o livro do ano.

Publicação caprichada da editora Biblioteca Ocidente, comandada por Francisco Issac Dantas, pode e deve ser adquirido, digital ou impresso, no site da editora: //revistagalo.com.br/selo-bo/os-que-dizem-nao/

Uma resenha sobre o livro anterior: O fio que conecta a trama e uma apreciação da trilogia:  A trilogia de Honório de Medeiros

Gustavo Sobral é jornalista e escritor. Publicou e organizou diversos livros, dentre os quais “As Memórias Alheias” e “Os Fundadores”

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Categoria(s): Cultura
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domingo - 30/03/2025 - 06:32h

Pão nosso de cada dia

Por Marcos Ferreira

Foto do autor da crônica

Foto do autor da crônica

Presumo que poucas pessoas se interessem por esse conteúdo, por essa informação. Pois se trata, a bem da verdade, de uma sensaboria, algo de quem parece não ter coisa melhor para dizer. Teimoso, porém, vou contar esta história insípida. É que hoje acordei cedo. Cedinho mesmo: pouco depois das quatro da madrugada. A bexiga estava de fato nas últimas, então fui ao banheiro e não consegui reaver o sono. Volta e meia isso acontece; uma emergência fisiológica. Ainda assim, com o quarto na penumbra e naturalmente frio, retornei para a minha rede e os cobertores.

Vocês sabem que em ocasiões dessa ordem, quando a gente se encontra insone por inteiro ou parcialmente, mil e uma maluquices nos vêm à cabeça. Então nos alcança um monte de besteirol, pessoas e meio mundo de lucubrações. No meio disso, fato corriqueiro, vêm ao meu juízo determinados temas que julgo aproveitáveis, com certo potencial para converter em uma crônica garranchosa.

Recordei-me, por exemplo, de uma dúzia ou mais de amigos que têm (coloco-me no meio deles) esse alumbramento visceral, comunhão, enlace com o exercício da escrita. Sim. É o que estou dizendo. Somos, de forma saudável, reféns espontâneos e um tanto orgulhosos dos vencilhos, das amarras da escrita. Como no verso de Camões, é estar preso por vontade, é servir a quem vence o vencedor. O bardo caolho é fora de série, extraordinário, um fenômeno da poesia. É incomparável.

Então penso, após todo esse nariz de cera, nos meus pares, nos meus amigos literatos, homens e mulheres dominados pelo micróbio da literatura. Alguns desses indivíduos inéditos em livro (por razões que a própria razão desconhece) seguem fugindo da raia, fazem ouvidos moucos ao chamado da Literatura. Lembro, mas que isso fique apenas entre nós, de figuras preciosas e cheias de hesitações como nosso querido arquivo ambulante Rocha Neto. E não apenas o Rocha. Há outros desertores da tinta e do tinteiro nesta Macondo nordestina. Faço aqui a vez de dedo-duro.

O que tanto esperam (insisto que esse assunto fique só entre nós) os senhores Marcos Araújo, Bruno Ernesto, Odemirton Filho, Ailson Teodoro, Raquel Vilanova e, entre outros, Bernadete Lino? Pois é, meus caros. A senhora Bernadete Lino, pernambucana que mora em Caruaru, tem o que verter para o papel. Ela, que me oferece a honra de sua amizade e tem um forte elo com nossa terra, possui uma biografia muito bonita. Estou certo de que um livro seu de memórias, considerando a clareza de seu pensamento e intimidade com nosso idioma, seria uma ótima contribuição às letras. João Bezerra de Castro, gramático vocacionado, pode afiançar o que digo.

A labuta da escrita, perdoem esta metáfora talvez de mau gosto, representa o nosso pão de cada dia, mesmo em se tratando (repito) de personagens que ainda não estrearam em livro. De repente alguém pode saltar e dizer que estou cobrando dos outros uma produção que eu próprio não reúno. Quem isto afirma não está de todo errado, considerando que sou autor de um só livro publicado.

Todavia, para quem não sabe, possuo quase dez títulos inéditos nos gêneros romance, contos, poesia e crônicas, tudo isso à espera de melhores horizontes financeiros ou da possibilidade de ser pego no pente-fino de concursos literário que oferecem premiação em dinheiro e, no mais das vezes, publicam a obra vencedora. Este é o caminho que percorro há tempos.

Ressalto, claro, que estou a anos-luz da fecundidade, da prenhez e dos recursos econômicos de autores de minha estima como Clauder Arcanjo, Ayala Gurgel e o prolífero e versátil Marcos Antonio Campos, três mosqueteiros, três espadachins bem-sucedidos nos salutares duelos com a arte do fazer literário.

Além desses três, e não menos meritórios, temos no País de Mossoró e no estado manejadores da língua portuguesa bem-aventurados como Vanda Maria Jacinto, Fátima Feitosa, Dulce Cavalcante, Margarete Freire, Lúcia Rocha, Júlio Rosado, Caio César Muniz, Cid Augusto, Jessé de Andrade Alexandria, Crispiniano Neto, François Silvestre, Carlos Santos, Inácio Rodrigues Lima Neto, Airton Cilon, Thiago Galdino, Marcos Pinto, Francisco Nolasco, David Leite, Honório de Medeiros, Antonio Alvino e, devido às condições da memória, outros mais que ora não recordo.

Todos, com um nível maior ou menor de arrebatamento, buscam esse pão nosso de cada dia que resulta em crônicas, contos, romances, poemas. No que me toca, enquanto cativo deste mister de arranjar palavras e exibi-las em páginas com um mínimo de qualidade, produzo coisas desse tipo: uma crônica um tanto quanto prolixa, mas sempre com a mão na massa do verbo do qual nos alimentamos.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
domingo - 09/03/2025 - 04:10h

Os habitantes do BCS

Por Marcos Ferreira

Imagem ilustrativa da Web – Creative Sign

Imagem ilustrativa da Web – Creative Sign

Duvidar, não duvido. Pois decerto existe no Brasil e no mundo quem desconheça o significado da nossa familiar sigla BCS, tão notória, por exemplo, quanto SUS, FBI, CIA, ONU ou a temida e extinta KGB, agência de espionagem e polícia secreta da igualmente morta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Alguém ariscará dizer, entre outros equívocos, que se trata de Banco Central da Suíça. É possível, portanto, que existam indivíduos neste planeta que nunca tenham ouvido falar no Blog Carlos Santos (BCS). Além disso, alguns terráqueos não têm conhecimento (ignorância não menos grave) do rol de colaboradores do referido Blog.

Todo domingo, desde tempos imemoriais, cabeças singulares da intelectualidade mossoroense e de além fronteiras do RN exibem as suas tintas neste ilustrado espaço de opinião, arte e cultura. Temos aqueles que marcam presença de modo bissexto, esporádico, contudo há um punhado de articulistas que muito raramente deixam uma lacuna nestas manhãs domingueiras que contam ainda com o brilho e categoria de um sem-número de leitores e comentaristas de alto nível.

Os habitantes do BCS, tanto os cronistas, os poetas, os ficcionistas e, repito, o precioso rol de leitores e comentaristas, mantêm uma sintonia e fidelidade admiráveis. Encontramos neste gueto das palavras várias cucas talentosas, beletristas de responsa. Ninguém pode se queixar da produção intelectual que os homens de engenho deitam dominicalmente entre as quatro linhas desta vitrine da prosa, do verso e, como não poderia deixar de ser, com informes do atacado e do varejo da política norte-rio-grandense, nacional e mundial. Aqui, no tocante à informação e à cultura como um todo, os leitores dispõem de grande sortimento de ideias e debates.

Sendo um pouco indiscreto, permito-me citar os nomes de expressivos escribas que têm concorrido para o brilho e sucesso do BCS. Falo, entre outros, de malhadores de teclados como o próprio Carlos Santos, Marcelo Alves Dias de Souza, Honório de Medeiros, David Leite, William Robson, Marcos Pinto, Odemirton Filho, Bruno Ernesto, François Silvestre, Marcos Araújo e, mais recentemente, surge para enriquecer o escrete um tal de Ayala Gurgel. Este último, a meu ver, representa uma das mentes mais engenhosas e prolíferas da nova ficção norte-rio-grandense.

Quem quiser que diga que estou puxando o saco do BCS e dos seus habitantes dominicais. Não tem problema. O aplauso e a vaia são livres. Vivemos (ao menos até o momento) num país democrático. Sim. A democracia esteve seriamente ameaçada no governo anterior, todavia não sucumbimos ao golpismo.

Creio que em breve o “mito” (o espírito de porco, a degradante alma sebosa que infectou o Brasil, fez pouco-caso dos mortos pela pandemia e zombou de famílias enlutadas) está prestes a conhecer as acomodações de Bangu 8 ou da Papuda. Deixem estar.

Voltando à audiência e relevância do Blog, penso que não existem por aí muitos espaços assim, com tantos e tão bons poetas e prosadores. É um ambiente digital dos mais procurados pelo público leitor. Enfim, agora parodiando aquele frevo do Caetano Veloso, digo que só não vai atrás do BCS quem já morreu.

Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Crônica
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sexta-feira - 07/03/2025 - 12:42h
Lançamento

“Os que dizem não”, um livro de Honório de Medeiros

Livro é lançado como ebook e físico (Foto: Reprodução)

Livro é lançado como ebook e físico (Foto: Reprodução)

O escritor Honório de Medeiros está com outro livro à nossa disposição.

“Os que dizem não” é o seu novo trabalho literário. Segundo o autor, trata-se de “experiência de tentar conectar fios soltos em uma trama de urdidura complexa.”

“Pensadores existiram e existem que supõem ser o processo histórico impulsionado por seres humanos singulares.” Uma gente que nada de braçadas contra a corrente, enfrentam as circunstâncias adversas, impulsionando “o processo histórico.”

Físico ou virtual, a gente escolhe como mergulhar nessa obra.

O livro físico pode ser encontrado na Amazon ou na Uiclap. Já Ebook, através da Editora Biblioteca do Ocidente.

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domingo - 19/01/2025 - 03:34h

O Estado é invenção do tinhoso

Por Honório de Medeiros

Arte ilustrativa (Reprodução)

Arte ilustrativa (Reprodução)

O ESTADO – com “E” maiúsculo, é uma invenção do tinhoso.

Não existe de fato, não é uma “coisa”, é uma abstração, uma ruma de leis e homens no Poder, massacrando, espoliando, manipulando os outros – a imensa maioria, em proveito próprio…

No começo, disseram que o total do “pacto social”, pai do Estado, era necessário para defender os homens comuns dos criminosos,  das doenças, e da ignorância.

A Igreja entrou nessa, para alegria dos reis e seus cortesãos.

O tempo mostrou que é somente conversa fiada, coisa do tinhoso. O que eles – os criadores desse lero – queriam, era ficar por cima da carne seca, no bem-bom, fazendo maldade.

E assim tem sido, desde que o homem deixou de rastejar e passou a andar em pé. Nada mais, nada menos. Tanto é que nada mudou, de lá para cá.

Mas Deus tá vendo!

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
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domingo - 08/12/2024 - 08:14h

Vida alheia

Por Honório de Medeiros

Arte ilustrativa Web

Arte ilustrativa Web

Aboletada em um tamborete, na quina da tenda dos temperos, D. Tetê, queixo na mão, compensava a boca fechada com um olhar de águia, curiando os passantes.

Encostei na vizinhança dela, fiz um ar de enfado, e comentei: “detesto quem se incomoda com a vida alheia”.

“Eu também”, respondeu ela de bate pronto, ao mesmo tempo em que se ajeitava no tamborete, se preparando para assuntar.

Foi conversa longa, a nossa. Quase de pé de ouvido, ponteada por uma ou outra gaitada  quando, então, ela mostrava os dentes todos, brancos, limpos com raspa de juá, “desde menina”.

No final, concordamos que não devemos evitar uma ou outra cutucada na vida alheia, moderadamente, nem que fosse para se prevenir dos feitiços da maledicência descompensada dos outros. “Mal, com mal se paga”, ensinou-me ela.

“Temos que rezar, para pedir perdão por esse pecado, não é?”

“Conversa”, disse. “Deus sabe tudo. Ele sabe quem é para perdoar, e quem não é, não adianta pedir”.

Que mais eu poderia dizer? Fui derrubado feito garrote na pega, pela sabedoria de D. Tetê. Fazer o quê?

Tentei uma rasteira: “Se eu aparecer lá na Divisa, comerei uma galinha gorda e um arroz de graxa”? “Se você levar a galinha…”, respondeu, com um muxoxo.

“Tá certo, D. Tetê”. “Já vai? Que pressa é essa?”  “Sua sabença das coisas da vida, é de juntar menino, comadre. Eu levo a galinha gorda. E puxo o tema, para guardar seus ditos e ouvir sua gaitada…”

Juntei os sacos e me danei no mundo, olhando de vez em quando para trás, com medo da língua dela.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
domingo - 24/11/2024 - 18:24h

O sertão está no sertanejo

Por Honório de Medeiros 

Foto do autor da crônica

Foto do autor da crônica

“O Sertão está dentro da gente”, disse João Guimarães Rosa.

Pode ser. Quem sou eu, para discordar. Mesmo assim, discordo.

O Sertão está dentro do sertanejo.

Que outro homem andaria em um carrasco igual a esse, cheio de pedras, mato ressequido, poeira, espaço de preás, mocós, punarés, lagartixas, cobras, urubus e cangaceiros, aqui e acolá um juazeiro, no pino do meio dia?

Nenhum.

Entretanto, quando chove, ah!, bom Deus, quando chove, qualquer vivente se encanta com a beleza que desponta em cada canto dessa terra maravilhosa.

Não que a beleza se esconda quando a seca surge.

É outro tipo de beleza, da qual somente se dá conta, com a melancolia que lhe é própria, o homem do Sertão.

Cerro Corá, RN, 15 de novembro de 2024.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e Governo do RN

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domingo - 10/11/2024 - 19:48h

Luzes no céu entre as estrelas

Por Honório de Medeiros

Lagoa do Corá, em Cerro Corá (Foto: Honório de Medeiros)

Lagoa de Cerro, em Cerro Corá (Foto: Honório de Medeiros)

Contemplo a água, os biguás e os cisnes da Lagoa de Cerro. Como veem, estou satisfeito esperando o por do sol.

Lucas e Zé de Maria me garantiram que os sinais de inverno são bons. Eu tinha procurado meu Lunário Perpétuo, para tirar dúvidas, mas não o encontrei. Fiquei mais tranquilo depois da conversa com os meninos da Pousada.

O fura-barreira está construindo seu ninho em lugar alto; o mandacaru florou; as aroeiras estão cheia de cachos e a quentura do fim de outubro, tudo promete, me disseram eles. Falta consultar Genilson e o pessoal do Receptivo.

Sábado vou lá, puxar o tema. Vamos ver.

Daqui a pouco vou subir a encosta até a casa que Deus me permitiu construir com a frente para o nascente, e as costas para o poente. Ivanaldo, o faz-tudo, vai me por a par dos últimos acontecimentos. Vida que segue.

Tomara que de noite faça frio e eu veja luzes se deslocando no céu, entre as estrelas …

Cerro Corá,  31 de outubro de 2024.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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quarta-feira - 06/11/2024 - 04:02h
Acervo

Instituto Histórico começa trabalho sobre Oswaldo Lamartine

Oswaldo Lamartine teve acervo documental entregue por sobrinho (Foto: reprodução)

Oswaldo Lamartine teve acervo documental entregue por sobrinho (Foto: reprodução)

O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN) começou trabalho de grande importância à cultura potiguar. Levanta e organiza documentos diversos deixados pelo escritor Oswaldo Lamartine de Faria (1919-2007), autor de uma obra singular sobre o sertão do Seridó.

Uma comissão de integrantes do IHGRN recebeu de Murilo Paiva, sobrinho de Lamartine, material diversificado, como correspondência, manuscritos do autor e até fotografias.

O grupo é formado pelo escritor Gustavo Sobral, estudioso da obra de Lamartine e coordenador da comissão; pelo Diretor de Biblioteca, Arquivo e Museu (BAM), Pedro Simões; pelo Diretor do Departamento de Pesquisa, André Felipe Pignataro; e os sócios Honório de Medeiros e Mara Macedo.

Ainda há o reforço da colaboração consultiva da pesquisadora Ângela Almeida.

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domingo - 29/09/2024 - 12:20h

Père Lachaise

Por Honório de Medeiros

Père Lachaise em foto do autor da crônica (Honório de Medeiros)

Père Lachaise em foto do autor da crônica (Honório de Medeiros)

Père Lachaise. Tarde de frio, vento, e neblina. Tudo cinza, como convém a um cemitério. Ninguém à vista, exceto duas mulheres que se dirigem a mim e me perguntam se lhes posso informar onde está sepultado Azzis, “Le philosophe Azzis”. “Não, desculpem-me, não sei”. Elas se vão. Cochicham. Admiro-lhes o talhe elegante, a beleza madura, até mesmo os guarda-chuvas.

Tento decifrar o mapa do cemitério para ir em marcha batida na busca dos meus mortos queridos. Caminho. É um alumbramento. Em cada canto, história. Túmulos de grandes homens ou mulheres disputam espaço com anônimos. Enterneço-me com a lápide pousada no chão e rodeada de flores murchas. Foi recente o sepultamento.

No canto, solitário, um ursinho de pelúcia cumpre a dura tarefa de velar o morto e render-lhe as homenagens que alguém lhe destinou. Fotografo.

Sigo em frente. Ofereço as flores que carrego comigo a Honoré de Balzac. Rezo, não, converso com ele. Pergunto-lhe por Alexandre Dumas e lhe digo de minhas manhãs, tardes e noites, ainda menino, quase adolescente, preenchidas pelo gênio de cada um deles.

Mais além, rendo minhas homenagens a Oscar Wilde, mas me assusto com alguém que surge de repente, como uma aparição, ao meu lado, e cruzando o braço esquerdo sobre o peito, eleva o direito à face, esconde-a com a mão e põe-se em um isolamento absoluto em relação ao resto do mundo.

A tarde cai lentamente. Anoitece. Tenho que ir, embora não deseje. O instante é mágico. Olho e não vejo ninguém.

Sento em um banco às margens de uma das vias principais e me lanço em uma divagação sem nexo, constituída de fragmentos do presente e do passado: é plena madrugada, estou deitado de costas olhando para a torre da igreja do cemitério e para as estrelas logo acima; agora é a Mossoró da minha adolescência e infância, a Igreja é a de São Vicente, meus amigos de então conversam ao meu lado, mas ninguém dá por mim. Sou adolescente e adulto. Angústia.

Levanto-me e vou embora. A chuva molha meu rosto. Cumprimento a guarda. Chego à rua. A Paris movimentada vem ao meu encontro. Eu sigo mecanicamente, enquanto tento guardar as cores, os cheiros, as sensações, os fatos daquela minha caminhada.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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Categoria(s): Crônica
domingo - 22/09/2024 - 08:28h
Resenha do Cangaço

Honório de Medeiros fala sobre cangaceiros, política e coronelismo

Na página Resenha do Cangaço, no YouTube, editada e apresentada pelo professor e pesquisador/historiador Lemuel Rodrigues, o convidado dessa sexta-feira (20) foi o escritor Honório de Medeiros.

O bate-papo correu solto entre os dois. Na mesa, literatura, volantes, cangaceiros, a política brasileira e do RN nas primeiras décadas do século passado, coronelismo, o ataque do bando de Lampião a Mossoró em 1927, Jesuíno Brilhante e outros temas que se interligam no tempo e na história.

Tem muita coisa boa nessa conversa.

Aproveite a boa prosa.

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domingo - 15/09/2024 - 10:00h

A corrida para o cinza

Por Honório de Medeiros

Foto do próprio autor da crônica

Foto do próprio autor da crônica

O sertanejo nordestino raiz não é muito chegado a que lhe peçam favores. Faz parte de sua cultura que cada um cuide de si, pois Deus cuida de todos.

Entretanto, gosta de ser solidário sem que lhe peçam, pois tal gesto nasce de uma decisão sua, depois de ponderação cuidadosa, na qual o passado do vivente é muito levado em conta.

É claro que isso está desaparecendo na torrente destrambelhada dos tempos:  o rio da vida e suas correntezas estão sendo amoldados pelo chicote castrador das modernidades tecnológicas, que desfaz o que tem substância, transformando-o em farinha rala.

Então é essa corrida para o cinza, onde tudo é igual, e quando aparece um vermelho, amarelo ou verde, com seus matizes, um avalanche de insipidez os desmancha e as cores vivas e belas desaparecem lentamente para que tudo afunde em ordem sem progresso.

Tudo isso me veio à cabeça dia desses, quando de visita ao Serrame do Sertão do Norte de Baixo, mais precisamente na Serra do Camará, lá no Sítio Feijão, quando de uma conversa desapegada, tipo miolo-de-quartinha, que rebentam em qualquer calçada onde tenha mais de um desocupado.

Pois Seu Antônio de Luzia saiu com uma daquelas que até os sabiás cantores,  dos cajueiros que ficam defronte, espiando a conversa, emudeceram. Não é exagero, não. Pode até ser que eles tenham calado o bico espantadas por seu Antônio ter falado.

Ele começou uma das suas raras conversas, no fim da tarde, quase na hora coalhada, dizendo assim: “Outrora…” Todo mundo parou para escutar, mas eu notei que João de Cota ficou mais cismarento que os outros.

Depois do dito, quando saímos caminhando no rumo das ventas, que é como chamamos esse descambo para o centro, João de Cota me perguntou: “Homem de Deus, o que danado é esse ‘outrora'” que Seu Antônio falou?

Fiquei macambúzio um pedaço. Como dizer para ele que essa palavra, mais que uma palavra, é uma era que estava desaparecendo?

Uma era encoivarada por uma atualidade despida daquela magia que as coisas arcaicas possuem e exalam, como uma água-de-cheiro antiga, uma toada de viola perdida no ontem, o sabor de uma comida da nossa meninice, preparada na banha de porco, que se foi sem deixar rastro, o sorriso gaiato de uma bela mocinha que passa para a missa dominical sustentando um olhar e um meio sorriso a dizer tudo, sem prometer coisa alguma?

É difícil. Muito. Sei que respondi secamente: é o mesmo que “antigamente”, ele até se assustou, e não é do meu feitio, mas eu estava mentindo, pois não era somente isso.

Tanto não era tal qual, que amanhã, um por de sol nunca vai ser igual àquele que eu via naquele instante, enquanto caminhava na roça, os sabiás cantando, a noite se indo, enquanto e uma ou outra estrela despontava, ainda tímida, e nos fazia companhia, a zombar de nossa ignorância…

Ô Deus, que saudade.

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domingo - 08/09/2024 - 10:28h

Balaio de gatos

Por Honório de Medeiros

Gatos (Foto do autor da crônica)

Gatos (Foto do autor da crônica)

Os três bem juntinhos, enrodilhados uns nos outros. O vigia observando.

Minha sombra se projeta por sobre a trilha, enquanto na margem esquerda, da mata que margeia o lago, escuto o deslocamento do gato Rei, que nunca aparece.

Já contei, lá, certa vez, treze. Dizem que vai a vinte ou mais.

Seu T me disse que tanto gato assim, liderados pelo gato Rei, sempre entre a água, de um lado, e o bosque de pedras do outro, com a estradinha no meio, tem a ver com a história dos três rapazes.

Eu vinha de um samba, contou ele, lá pelas três da manhã e, no mesmo canto vi, em sentido contrário, três rapazes vindo.

Não falavam nada, não vi seus rostos, só andavam. Roupa comum. Passei por eles, dei com a mão, olhei pelo retrovisor, olhei pelo outro, pelo vidro traseiro, e nada.

Tinham sumido. Parei o carro, desci, botei os olhos para tudo quanto era canto, e nada. Me arrepiei todo, me benzi, entrei no carro, o coração saindo pela goela, e disparei.

Você já tinha ouvido essa história, perguntei. Já, mas não  me lembrei, na hora. E o que mais me impressionou, depois, foi que eu não me lembrava do rosto deles.

Era como se eu não tivesse visto. E não vi. Seu T não é homem de mentiras. Não que eu saiba.

Cerro Corá, Estrada dos Flamboyants, 1 de maio de 2024.

Honório de Medeiros é professor, escritor e ex-secretário da Prefeitura de Natal e do Governo do RN

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