Exilado em Vila Negra
Por Marcos Ferreira
Buscando o máximo de privacidade, Jaime pediu a Luciano que dispensasse (ao menos por enquanto) os dois serviçais que cuidavam do imóvel: o jardineiro e a faxineira. Luciano, embora jovem, era um advogado bem-sucedido e de posses. Então ordenou aos auxiliares que não viessem trabalhar por um tempo, contudo lhes assegurou que os seus proventos continuariam sendo depositados em suas contas bancárias.
O causídico alegou que Jaime era um amigo e escritor recluso e que necessitava ficar sozinho para finalizar um romance em que vinha trabalhando há cerca de três meses. Os auxiliares se entreolharam e balançaram a cabeça de modo afirmativo.
Após o jardineiro e a doméstica irem embora, Luciano meteu a mão no bolso da calça, retirou um maço de notas de cem reais preso em uma dessas borrachinhas elásticas e entregou a soma em dinheiro a Jaime. Este, visivelmente constrangido, relutou em aceitar aquela quantia, porém Luciano o convenceu do contrário dizendo que ele não poderia ficar ali sem uma grana para se manter e postar seus originais nos Correios de Vila Negra. “Deixe de cerimônia, meu caro”, disse o advogado.
Luciano continuou com um pequeno sorriso:
— Ok, Jaime. Vamos entrar. Quero lhe mostrar o apartamento. — Falou Luciano com a mão apoiada no ombro do escritor. — É no décimo nono piso, com vista panorâmica para a cidade. Imagino que vai gostar. Aqui estará seguro. Sobretudo agora que você mandou os comparsas de Rato Branco para os quintos. A menos que ele contrate outros pistoleiros, penso que talvez você não precise usar esse colete desconfortável o tempo todo nem ficar ininterruptamente com sua arma na cintura. Tente relaxar, querido. Isso vai ser bom para a sua paz de espírito. O pior já passou. Ninguém imagina que você está aqui. Os caras morreram, não restaram testemunhas.
— Acontece, Luciano, que eu me preocupo com Laura. Receio que Rato Branco mande alguém ir atrás dela, talvez para obrigá-la a revelar onde estou. Laura não merece que nada disso respingue sobre ela. Nem o Reginaldo Marinho e muito menos você. Veja só: o seu carro está com buracos de bala em diversos locais. A Polícia Rodoviária pode abordá-lo para saber o que aconteceu. Outro detalhe é que você não pode mais voltar para Mondrongo com essa pistola. Se você for parado no posto rodoviário, e fizeram uma inspeção, é muito provável que encontrem a arma.
— Tudo bem, homem. Ao menos por agora a arma ficará com você. Quanto aos tiros que perfuraram meu carro, se porventura me pararem na Polícia Rodoviária Federal, direi que fui vítima de uma tentativa de assalto na noite anterior e que consegui fugir da ação dos bandidos. Fato este que é parcialmente verdadeiro. A seguir apresentarei a minha carteira da OAB e suponho que não terei problemas para prosseguir no meu percurso. Já você, logo que for possível, faça a postagem dos seus originais. Existe uma agência dos Correios a duas quadras daqui, na Major Moisés Resende. Basta você seguir na rua do posto de gasolina e virar à direita. É quase na esquina.
Luciano apontou para o outro lado da rua e disse:
— Veja! Há um restaurantezinho naquele imóvel azul com um toldo e uma placa na calçada. Vendem comida boa por um preço razoável.
Quando entraram, Jaime ficou impressionado com todo aquele requinte. Tudo limpo e harmonioso. Apartamento com três quartos, sala e cozinha amplas, varanda com excelente vista para boa parte da cidade, além de uma mobília de primeira qualidade.
Também avistou, dispostos numa estrutura de alvenaria e vidro, cerca de mil livros muito bem organizados e sem nenhum indício de poeira. Jaime então recordou-se dos míseros quinhentos volumes que vendeu ao sebista Antoniel Silva.
— Fique à vontade, meu caro — confortou-o Luciano. — Infelizmente, por força do trabalho, tenho que voltar imediatamente para Mondrongo. Como defensor público, hoje tenho que comparecer a uma audiência inadiável. Aqui, como percebe, o sossego é tão grande que às vezes até incomoda ou nos entedia. Os dois apartamentos vizinhos estão vazios, disponíveis para aluguel. Portanto, o silêncio é absoluto. Se porventura surgir algum problema, você tem o meu telefone e pode ligar a qualquer hora. Você não está sozinho nesse momento complicado de sua vida. Estamos juntos, Jaime. Quem sabe após essa poeira toda baixar possamos pensar em nós dois.
— Por enquanto, Luciano, ainda estou zonzo.
— E não é para menos… Você está abalado.
— Sou grato demais por tudo que você tem feito por mim. Até mesmo colocar a sua própria vida em risco para me ajudar. Então, quando as coisas estiverem mais tranquilas, prometo que pensarei em nosso relacionamento bruscamente interrompido. Eu só lhe advirto que não posso deixar Laura por conta disso.
— Entendo. E não lhe pediria uma coisa dessas. O que me importa é que a nossa ligação sobreviva e perdure. Laura nem ninguém precisam saber de nada. Isso é uma coisa apenas nossa. Pois eu pressinto que é algo especial.
Jaime deu alguns passos pelo apartamento, foi até a varanda, fixou os cotovelos no parapeito devidamente guarnecido por uma tela de proteção, e depois se deteve por algum tempo diante da estante de livros. Cogitou sacar algum da prateleira, todavia desistiu de fazê-lo, pois imaginou que a verve de outro autor pudesse interferir negativamente em sua concepção sobre A Cidade que Nunca leu um Livro.
Súbito, então, num ímpeto de gratidão ou de desejo, Jaime avançou sobre Luciano e o beijou na boca por uns breves segundos. Depois, com a cabeça baixa e as mãos nos ombros do advogado, murmurou que também sentia algo de especial por Luciano e que ainda não sabia direito como lidar com tal sentimento. Sobretudo porque tinha plena certeza de que era apaixonado por Laura como nunca fora por nenhuma outra mulher.
— Eu lhe compreendo — falou Luciano colando a testa na de Jaime. — E lhe repito que você não tem que deixar Laura para ficar comigo. Eu só não desejo que você coloque um ponto final em nosso relacionamento por se sentir pressionado por alguém ou por sua própria consciência. Sou perdidamente apaixonado por você, Jaime Peçanha. Amo tudo que é seu: seu cheiro, sua voz, tudo, tudo.
— Bom, agora você precisa ir — falou Jaime. — E tome cuidado na estrada. Vou tomar um banho, descansar um pouco e ainda na manhã de hoje irei àquela agência dos Correios que você me indicou para postar os meus originais. Como eu já disse, vou enviá-los para o Rio e São Paulo. Qual é mesmo o nome da rua da agência postal? Lembro-me tão somente de que é após o posto de gasolina, entrando à direita. O resto eu já esqueci. Às vezes consigo me lembrar de coisas bem distantes no tempo e não gravo informações mais recentes. Como esse nome da rua que você falou.
— É a Major Moisés Resende. Um carioca filho da puta e alcaguete da ditadura homenageado em Vila Negra não sei por que diabos.
— Deixe comigo, Luciano. Não vou esquecer.
E os dois se despediram com outro beijinho.
ACOMPANHE
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Prólogo;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Capítulo 2;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 3;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 4;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 5
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 6;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 7;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 8;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 9;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 10;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 11;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 12;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 13;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 14;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 15;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 16;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 17;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 18;
Leia também: A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 19.
Marcos Ferreira é escritor
Um capítulo de calma. Só não consigo visualizar o futuro do Jaime. Parece perdido! O que virá na sequência?
Neste capítulo Jaime reconhece o valor de um amigo leal e de um amante que não se importa com a bixessualidade de Jaime.
Nesse romance o autor aborda sem rodeios um tipo de familia nada tradicional e que já é uma realidade na vida real.
Aos poucos a sociedade vai aceitando esses novos formatos de famílias.
Parabéns Marcos Ferreira pelos elaborados e bem construídos capítulos dessa vivíssima e literária saga ACERCA das peculiaridades do Pais de Mossoró .
Quem sabe, a partir de 2023 com LULA. na Presidência, possamos vislumbrar novos caminhos de reconstrução do País de MOSSORO e do País chamado Brasil…!!!
ABS.
FRANSUELDO VIEIRA DE ARAUJO
OAB/RN. 7318
Boa tarde, nobre escritor!
A saga de Jaime Peçanha vem crescendo em cada novo capítulo. São textos bem alinhados, e sempre com um fator surpresa, no desenrolar da trama. Parabéns, Marcos Ferreira! Abraços!
Talvez agora ele consiga ordenar seus passos… Porém, é muita coisa ao mesmo tempo. Acho que vai levar um certo tempo para ele se encontrar (ou se perder de vez) dentro desses redemoinhos todos. E aja cabeça para costurar, Marcos.