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domingo - 05/01/2020 - 09:05h

Para tentar entender os homens

Por Inácio Augusto de Almeida

No bar do Wellington, Lopes, Sandoval e Izaías continuavam tomando cerveja. A noite já adiantada. No céu, as estrelas formavam uma linda colcha de retalhos. Apenas o barulho do motor da geladeira era ouvido, quando o Lopes, fechando a mão, pigarreou. E, respirando fundo, começou:

– E estava Kung Fu-tse sentado num banquinho de três pernas, quietinho, meditando sobre os homens e suas relações, tanto para com a família como para com o estado, buscando uma definição, quando sem mais nem menos adentra ao pequeno recinto um brutamonte, que vendo aquele homem franzino, resolve escolhê-lo para mostrar a todos o quanto era valente.

E espanca Kung Fu-tse.Ainda no chão, Kung Fu-tse não demonstra estar surpreso com aquela atitude. Entende o ato de covardia. Só não consegue compreender uma coisa. E pergunta ao brutamonte:

– Por que fizestes isto comigo? Eu nunca te fiz o bem.

Sem entender, o brutamonte renova a agressão.

Kung Fu-tse renova a pergunta:

– Por que fazes isto comigo. Quando eu te fiz o bem?

O brutamonte apenas gargalha. Sente-se vitorioso, um mandarim. E na sua ignorância festeja a vitória.

Esta pequena história aconteceu há mais ou menos 2500 anos. Sim, cinco séculos antes do nascimento de Cristo. E que grande lição nos deixou Kung Fu-tse.

Lopes, o grande Boêmio (faz questão da maiúscula no boêmio), terminou de falar e ficou a analisar a reação dos seus ouvintes. Izaías, apenas coçou a cabeça. Sandoval foi que arriscou um palpite de uma forma meio tímida.

– Lopes, este Kung Fu-tse não é o grande filósofo Confúcio?

– Aí, inteligência brilhante. Eu sabia que você conhecia o verdadeiro nome do maior pensador que já passou na face da terra.

Izaías, meio tímido, para não ficar calado, arrisca:

– Lopes, e a história? As pancadas que ele levou do brutamonte?

Lopes abriu o seu largo sorriso. E virando-se para Wellington, pede outra cerveja. É preciso fazer o suspense, e nisto o grande Boêmio é imbatível. Encheu o copo, respirou fundo, bebeu um gole e resolveu continuar.

– Izaías, não me diga que você estava pensando que eu estava falando do Kung Fu daquele seriado da TV. Por favor…

– Não, Lopes, eu sabia que era do Confúcio que você falava.

Sandoval riu. Um riso discreto, mas riu. Lopes observou o riso do Sandoval e muito bem humorado, continuou:

– Vou repetir as palavras do Kung Fu-tse.

Sandoval não agüentou e explodiu:

– Lopes, deixa de qualiragem. Chama o homem de Confúcio mesmo.

Izaías, enchendo-se de moral, emendou:

– Aposto como o Lopes aprendeu hoje o nome do homem e fica bancando o erudito.

O bom Boêmio passa a mão por cima dos olhos, descendo por todo o rosto até ficar apertando o queixo. No gesto mostrava que buscava o autocontrole.

– Então os meus amigos não entenderam a moral da história?

Sandoval, que já estava com mais de seis cervejas na cabeça, não agüentou:

– Deixa de ser besta, Lopes. Para com esta cascaria. Vai, diz logo o que tem de dizer.

– É, fala logo, disse Izaías.

– Não entenderam. Não entenderam. Mas eu vou trocar em miúdos.

Wellington ria a não mais poder. Pela pose do Lopes e por estar entendendo bulhufas daquela lengalenga do Lopes.

– O que acontece se alguém a quem nunca vimos nos agride?

– Ficamos surpresos, apressou-se Izaías.

– Pronto. Aí está a resposta.

– Pera aí, Lopes. Mas ele disse, Confúcio disse. Aliás, você disse que Confúcio disse que nunca tinha feito bem ao brutamonte. Ora, se ele tivesse feito o bem, por que o homem iria agredi-lo?

Sandoval ouviu a argumentação do Izaías e baixou a cabeça. Lopes percebeu que Sandoval já tinha alcançado o sentido da história.

E foi com ar professoral, falando mais do que pausadamente, que o grande Boêmio, não sem antes colocar a mão no ombro do Izaías, disse:

– Voltemos às palavras do grande Confúcio. Prestemos atenção no que ele disse: “POR QUE ME AGRIDES SE EU NUNCA TE FIZ O BEM?”

O bom Boêmio fez a pausa, Sandoval já não agüentava o riso preso.

– Você tem quantos anos, Izaías?

– Minha idade?

– Claro.

– Vinte anos.

– É por isso. Claro que é por isso. Quando você tiver quarenta, cinquenta, você não pedirá que lhe expliquem nada.

– Lopes, eu acho é que você não sabe explicar a fala do Confúcio.

Os olhos negros ficaram bem abertos, as sobrancelhas levantadas, o dedo em riste. Lopes era o retrato da indignação. Sandoval já não conseguia prender o riso.

– Quando você tiver os cabelos brancos, menino, vai saber o que acontece quando se faz o bem a alguém. O que se deve esperar. Entendeu agora a surpresa do Confúcio? Confúcio, claro, não é assim que vocês querem que eu chame o Kung Fu-tse. Mas não é por isso que devemos deixar de fazer o bem. Não devemos é esperar gratidão. Já a ingratidão, esta não deve causar surpresa a ninguém.

Sandoval parou de rir. Izaías começou a iluminar o rosto. E Wellington mostrou a sua dentadura mais do que branca. Aliás, a única coisa que tinha de branco, além da alma.

Inácio Augusto de Almeida é jornalista e escritor

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Categoria(s): Crônica

Comentários

  1. Odemirton Filho diz:

    Entender os homens, seus sentimentos e arroubos
    não é tarefa das mais fáceis. A alma humana é imperscrutável.
    Abraço.

  2. Q1naide maria rosado de souza diz:

    Maravilha de Crônica, Sr.Inácio. Parabéns!

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