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domingo - 11/09/2022 - 10:20h

A cidade que nunca leu um livro – Romance – Capítulo 13

Armado e perigoso

Por Marcos Ferreira

Pouco depois do meio-dia, mal acabara o almoço, o telefone de Jaime tocou sobre a mesa. Era o sebista Gotardo Lins, proprietário do Sebo Bate-Bucha, localizado na Rua Jerônimo Rosado, no Centro. Gotardo, conforme adiantou por telefone, tinha um serviço de revisão de livro para Jaime — um volume de memórias de uma senhora conhecida por Bernadete Lino, residente em Caruaru, cidade do Agreste pernambucano, e aposentada do Banco do Brasil. “Essa mulher escreve bem; dá gosto ler o que ela produz”, antecipara Gotardo. “O texto dela é limpinho, romanceado. Aposto que não vai lhe dar trabalho”, arrematou o sebista empolgado com o fato de utilizar o selo da Bate-Bucha como editora numa parceria com uma conceituada gráfica de Recife.

Foto ilustrativa

Foto ilustrativa

Por volta das quinze horas, então, Jaime se abalou até o Sebo Bate-Bucha para conversar com Gotardo Lins e conhecer o livro de memórias da senhora Bernadete Lino, sobre o qual o sebista havia tecido comentários entusiasmantes. Pois, na maioria das vezes, os livros que Jaime pegava para consertar a gramática, a sintaxe e a ortografia eram uma dor de cabeça. Coisa de ferver os miolos do revisor.

Recorrendo a um mototáxi, Jaime trafegava pela Jerônimo Rosado rumo ao Bate-Bucha. Nesse momento, porém, a poucos metros do seu destino, avistou a loja de veículos novos e usados do seu arqui-inimigo Mauro Mosca, vulgo Rato Branco. O escritor bateu de leve no ombro do mototaxista e pediu que este parasse um instante. Ali defronte ao comércio Jaime viu uma grande picape cinza igual àquela usada por seus agressores na noite em que foi espancado na saída da Biblioteca Municipal. Além do veículo, distinguiu três indivíduos com os mesmos biótipos dos homens que o atacaram. Um deles, de apelido Quebra Osso, era segurança do extinto Diário do Oeste.

Com o tresoitão na cintura, o sangue de Jaime ferveu. Isto sem ele ter a menor certeza de que tais sujeitos seriam os responsáveis pela surra que lhe fora dada naquela noite violente, quando se ausentou do lançamento do livro do amigo advogado Luciano Aires. Jaime não mais continuou a viagem. Pagou a corrida e ficou ali de olho por trás de um carrinho de batata frita, comendo a iguaria devagar.

— Foram esses escrotos! — rosnou baixinho.

De fato, além da presença da picape cinza estacionada diante da concessionária de Rato Branco, os tipos conversavam animadamente e possuíam o porte físico dos agressores. Eram dois tipos bem fortes, um tanto mais baixos e robustos, enquanto o terceiro era de compleição um pouco mais alta e menos corpulento. Este, na visão de Peçanha, fora o que enfiara o cano da pistola em sua boca e dissera que “só não matava Jaime naquele instante porque recebera ordens para tão somente transmitir um recado”. Este último, portanto, mais magro e longilíneo, possuía mais ou menos a estatura de Jaime. Outro detalhe, porém, não indicava que aqueles indivíduos pudessem ser os homens que haviam espancado o escritor naquela noite de sexta-feira.

— Pulhas! E eu esse tempo todo achando que eram homens do prefeito Wallace Batista e do presidente da Câmara, Leonardo Amorim — murmurou enquanto comia lentamente a batatinha frita, ali por trás do carrinho.

Daí a pouco o próprio e desmilinguido Rato Branco surgiu no saguão. Os homens se dirigiram até Mauro Mosca risonhos e trocaram enérgicos apertos de mãos e tapinhas nas costas. Mesmo àquela distância, assistindo a tudo do outro lado da rua, foi possível a Jaime compreender que, talvez de maneira oficial, os três capangas trabalhavam para Rato Branco como corretores e na realização de outras atividades espúrias, como ameaçar e espancar desafetos do endinheirado Mauro Mosca. Peçanha também concluiu que a picape utilizada pelos homens era de propriedade do empresário, hoje bem-sucedido no comércio de compra e venda de carros novos e usados. Resumindo, os supostos agressores de Jaime eram mesmo capangas de Rato Branco.

Jaime saiu de trás do carrinho de batata frita, jogou o restante da iguaria num cesto de lixo ali próximo e cruzou a rua. Subiu os degraus do patamar do patamar e foi confrontar os quatro insicísuoa, que papeavam sem o menor receio de sofrerem aquela repentina abordagem de um velho desafeto, sobretudo no caso de Rato Branco. Jaime não ignorava que os indivíduos também estivessem armados, todavia o sangue quente e a confiança no seu trinta e oito o tornaram destemido.

Rato Branco empalideceu ao se defrontar com Jaime. Os demais homens tiveram a mesma reação. Peçanha, contudo, tinha o rosto afogueado, como se em brasa. Naquele exato instante Mauro Mosca compreendeu que Jaime estava a par de que ele fora o mandante da surra que o escritor sofrera há pouco mais de trinta dias. De cútis ainda mais pálida, entretanto, daí a pouco Rato Branco adquiriu uma tonalidade avermelhada, como se uma indignação por aquele arquirrival ter tido a audácia de pisar em seu estabelecimento comercial sem ser convidado, assim de maneira brusca e desafiadora. Mauro Mosca não teve dificuldade de concluir que a presença de Jaime em seu estabelecimento tinha fortes indícios de acerto de contas, ou algo pior.

— O que você deseja aqui, seu mequetrefe?! — vociferou Rato Branco com as faces avermelhadas e olhando ao mesmo tempo para os comparsas, como buscasse nestes a validação e o encorajamento para as suas palavras hostis.

Os elementos assumiram posições diferentes no salão, de maneira que Jaime Peçanha se viu meio que cercado por eles. O escritor sabia que, dos três, ao menos o mais alto e magro estava armado, pois fora este que enfiara o cano da pistola em sua boca naquela noite. Era provável, ainda, que os demais estivessem portando arma de fogo. Talvez a exceção fosse apenas o próprio Rato Branco.

— Estou aqui, roedorzinho sem-vergonha, para lhe dizer que já descobri toda a sua armação, estou por dentro de tudo que você aprontou contra mim, sobre aquela sua ação covarde e traiçoeira no mês passado, juntamente com esses seus puxa-sacos que aí estão — disse Jaime em tom destemido, e com os olhos injetados de ódio. — Quero que saiba que isso não vai ficar de graça. Você e esses canalhas vão me pagar pelo que fizeram. Seja por meio da justiça ou na própria pele. Não tenho medo de vocês, estou preparado para o que der e vier. Não tenho nada a perder.

Após o desabafo raivoso de Jaime os homens se caquearam, levaram as mãos à cintura como se fossem puxar ou meramente exibir suas armas, porém Rato Branco ergueu a mão reprovando a atitude e os sujeitos interromperam a ação. Havia uma certa quantidade de clientes na local e talvez Mauro Mosca tenha preferido não gerar nenhum incidente que pudesse escandalizar a sua clientela.

Jaime trouxe a verdade à tona perante eles:

— Naquela noite, por intermédio dos seus percevejos, você me fez acreditar que o ataque que sofri havia sido coisa do prefeito Wallace Batista, do vereador Leonardo Jardim e de outros políticos situacionistas, os quais sempre critiquei na minha coluna na Tribuna Mondronguense. Lembro muito bem quando esse aí (Jaime apontou para o elemento com estatura parecida com a sua) me disse exatamente estas palavras, pondo o cano de uma pistola enfiado na minha boca, ordenando que eu desse um fim num dossiê que venho escrevendo contra o prefeito e que eu parasse de publicar tais “acusações levianas na mídia contra os políticos de bem do município, homens que lutaram bravamente ao lado do povo para livrar a cidade da velha oligarquia dos caciques políticos, que dominaram Mondrongo ao longo de várias décadas”.

— Está maluco! Por acaso não tomou os seus remédios hoje? Retire-se imediatamente daqui, seu fracassado! — explodiu Rato Branco. — Saia agora ou eu chamo a polícia. Você não é bem-vindo de maneira algum.

— Tomo meus remédios direitinho. E você, que não é nenhum tolo, sabe que pessoas que tomam esse tipo de medicação são inimputáveis. Portanto, eu posso acabar com a sua raça qualquer dia, pois estou preparado para isso, sem sofrer maiores consequências perante a Justiça. Não imagine mais que agora eu ando de mão abanando, como na noite em que esses seus paus-mandados me atacaram na saída da Biblioteca. Eu lhe garanto que agora ao menos um de vocês vai ficar estirado no chão. No mais, porém, saiba que seus dias estão contados, Rato Branco. Pode crer.

A situação começou a ficar fora de controle:

— Vejam isto — Jaime ergueu a camisa e expôs a coronha do enorme trinta e oito. Os capangas de Mauro Mosca fizeram o mesmo movimento. Todos estavam armados, e não apenas o indivíduo que botara o cano da pistola na boca do escritor. Em desvantagem numérica, então, Jaime se satisfez em ficar no plano da exibição do revólver, fato este que de certa forma dava a entender que ele também não estava ali para brincadeira, disposto a qualquer tipo de atitude. Peçanha agora era visto não mais apenas como um saco de pancadas, mas como homem de ação, armado e perigoso.

— O que está esperando?! Retire-se da minha loja!

— Eu vou, sim. Mas saibam que vocês vão me pagar.

— Saia logo, antes que eu mande lhe dar outra surra.

— Era só o que eu precisava ouvir, Rato Branco.

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Marcos Ferreira é escritor

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Categoria(s): Conto/Romance

Comentários

  1. Amorim diz:

    Bravo Sensível e fabuloso Amigo!
    Um abraçaço

  2. Bernadete Lino/ Caruaru-PE diz:

    Hoje fui tomada pela surpresa: ser citada na história e com referências tão elogiosas fez subir o “sarrafo” (termo usado no atletismo para mostrar que a exigência só cresce quando se compete; o que não é o meu caso. Aconteceu). Agradeço! Sabe que me deu uma ideia? Um livro de memórias. Houve um tempo em que comecei a fazer uma espécie de diário. Depois deixei pra lá! Na verdade eu tenho duas habilidades: uma com as palavras e a outra com números. Todos do meu entorno (família), se aproveitam disso. Já corrigi várias monografias. Sou a senhora “planilha”. Vivo organizando tudo! Por conta disso fico bem com as matérias humanas e as exatas, o que parece antagônico. Mas eu acho que tudo converge para o mesmo ponto por mais que a gente se distancie do centro: cada um é como é. Fato! Continue escrevendo! Fico muito feliz com os seus textos! Gratidão a você e ao João Bezerra de Castro, um amigo maravilhoso!!!

  3. Raí Lopes diz:

    Mentira tem pernas curtas… diz o ditado. Entretanto, a estratégia do Rato caiu por terra. Também! Foi muito descuidado não planejar o caminho que Jaime costumava andar – e que ficava na mesma rua que o seu comércio. E deixar à vista carro e capangas do ato praticado. Bem feito! Rsss.

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